quarta-feira, 25 de junho de 2014

A CANÇÃO DE OUTONO / VERLAINE REVISITADA - POESIA.NET






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São Paulo - Brasil - quarta-feira, 25/06/2014
Número 312 - Ano 12


A Canção de Outono revisitada
Paul Verlaine


«Esse passado é meu. 
Posso mudá-lo.» 

(Izacyl Guimarães Ferreira) *





Paul Verlaine


Paul Verlaine



Caros,

Em junho de 2003, há exatos onze anos,
 publiquei o poesia.net n. 24
que discutia sobre três traduções do poema
 "Chanson d’Automne" do
 mestre simbolista francês Paul Verlaine. 
Descobri agora mais duas 
traduções dessa página antológica e resolvi 
atualizar aquele boletim, 
incluindo-as na discussão. Para diferenciar 
o que escrevi agora do que
 é apenas transcrição do boletim antigo, 
destacarei com pincel marcador 
o texto mais recente.


                      •o•

"De la musique avant toute chose" — 

a música antes de qualquer coisa. 
Com este verso definitivo, o francês
 Paul Verlaine (1844-1896) abre o 
poema "Art Poétique", de 1885, considerado
 um verdadeiro manifesto da
 poesia simbolista. De fato, Verlaine colocou
 a música acima de tudo. Ele
 queria um verso fluido, ritmado, solúvel no ar.

Exemplo disso é essa pequena jóia, a 

"Chanson d'Automne", publicada em 
seu livro Poèmes Saturniens (Poemas Saturninos),
 de 1866. A música está
 de tal forma entranhada nesse poema que traduzi-lo 
para o português parece
 tarefa impossível. Por isso mesmo, transcrevo aqui
 três versões dessa canção 
de outono, escritas por poetas brasileiros de diferentes 
gerações: Alphonsus de
 Guimaraens (1870-1921), Guilherme de Almeida (1890-1969) 
e Onestaldo de 
Pennafort (1902-1987).

                      •o•


Adiciono agora, neste boletim de revisitação ao poema,

 dois novos tradutores, 

de duas gerações mais recentes: o poeta e cronista 

mineiro Paulo Mendes Campos
 (1922-1991) e o jornalista, poeta e tradutor paulistano Nelson
 Ascher (1958-). Veja,
 ao final desta coluna, mais informações sobre todos os tradutores.


                      •o•


Vamos à leitura. Ainda que você conheça o francês 

apenas de orelhada, dá para
 perceber as artimanhas sinfônicas empregadas por Verlaine. 
Basta escutar a primeira 
estrofe. Há ali como que um violão, inicialmente executado 
nas cordas mais graves: 
sanglots longs,violonsautomne. De repente, a ação se transfere
 para as cordas médias
 (coeurlangueur) e retorna à nota inicial (monotone).

A música se desenvolve aparentemente mais suave na segunda

 estrofe e, na terceira, se]
 rende ao sopro do "vento mau". Ali, as palavras oscilam como 
uma folha ao vento (deçà, delà,
 pareil a la) que afinal se acomoda no chão. Bem, não sou músico, 
mas isso é o que meu 
ouvido me diz.

Agora, como traduzir (verter, recriar, transcriar etc. etc.) esse 

poema em português?
 A seguir, algumas observações sobre as traduções ao lado.

                      •o•

Onestaldo de Pennafort conseguiu equilibrar bem texto e

 música na 
primeira estrofe. O trio sons-violões-outono dá conta do recado. 
No entanto,
 perde-se um pouco da mudança de tom: as palavras dor e langor
 não fazem o mesmo 
papel sonoro de coeur/langueur. Outro ponto forte da versão de
 Pennafort é a manutenção 
do bailado da folha seca ao vento: de cá pra lá,/ como faz à/
 folha morta. Também vale destacar
 que, dos três, Pennafort foi o único a manter a métrica original, 
ou seja, estrofes com versos de
 4-4-3-4-4-3 sílabas. Os outros trabalharam com 5-5-2-5-5-2 
(Guimaraens) e 4-4-2-4-4-2 (Almeida).


                      •o•

Os dois tradutores recém-chegados juntam-se a Pennafort:

 tanto Paulo Mendes Campos como 
Nelson Ascher conservam o esquema métrico original de Verlaine.

                      •o•

Em sua tradução, Guilherme de Almeida introduziu, no início, a

palavra "lamento", para corresponder 
ao original sanglots (soluços). Para dar o tom de corda grave, ele
 também optou por violões,  e não 
violinos, como fez Guimaraens. Violino é o correspondente de violon
mas, no contexto, desafina a
 orquestra. Nesse item, Alphonsus de Guimaraens mostrou-se o 
mais fiel ao sentido das palavras
 (por exemplo, usou "soluços"). Em compensação, foi o que menos
 se aproximou da melodia verlainiana.

Guilherme de Almeida foi o único a manter o ar de desconsolo

 indicado pelo verso "Qui m'emporte",
 na última estrofe. Mas é um jogo terrível: ele ganha esse 
dar-de-ombros e perde a flutuação da folha ao vento.


                      •o•

A versão de Paulo Mendes Campos merece algumas 

informações especiais. Durante algum
 tempo, o poeta manteve na hoje extinta revista Manchete um
 espaço no qual publicava, além 
de crônicas, poemas próprios e traduções. A tradução 
reproduzida aqui saiu na edição de 28/03/
1964 com o título "Arieta". 

Mas Mendes Campos não produziu somente esta versão.

 Lembro-me de ter lido certa vez na própria 
Manchete uma página na qual ele mostrava diferentes
 soluções para os mesmos trechos da "Canção 
de Outono". Recordo, vagamente, que ele experimentava
 com os timbres. Não consegui localizar esse 
artigo da revista. 

De todo modo, no site do Instituto Moreira Salles, encontram-

se fac-símiles de cadernos do poeta onde
 se podem ler dezenas de tentativas manuscritas dessa
 tradução. Em vez de "Os longos trinos / Dos violinos /
 Do outono", há outras versões, entre as quais "Soluços finos / 
De violinos / Do outono". 

A rigor, os soluços ou trinos de violinos, embora sejam fiéis

 ao instrumento original, falseiam o timbre do
 trecho inicial da canção:Les sanglots longs / des violons / de
 l’automne. Essa sequência com aliterações
 em L e o som fechado produz, como já vimos, a ideia de notas 
graves, e não agudas: trinos, finos, violinos. 

Os dois primeiros versos da segunda estrofe também não

 parecem muito felizes. A palavra "alvar" (branco,
 esbranquiçado) corresponderia ao original blême (pálido). 
Perfeita no campo do significado, essa escolha no
 entanto quebra a aparente espontaneidade da canção. Mendes 
Campos logra melhor resultado na terceira estrofe. 
Mantém o ritmo e reproduz o bailado da folha levada pelo vento.

                      •o•

Mudam-se os tempos e com eles as palavras e os conceitos

 poéticos e musicais. O que antes parecia fluido e
 natural pode hoje soar estranho e fora de tom. Por isso, os 
especialistas 
em tradução afirmam que as obras 
clássicas precisam ser  retraduzidas de tempos em tempos, 
para ajustar os autores antigos às visões de época. 

Creio que a tradução de Nelson Ascher, a mais recente de todas, ]

exemplifica bem essa ideia. O tradutor reproduz
 com perfeição os esquemas métrico e rímico da canção outonal. 
Exibe também grande fidelidade ao que diz o
 texto em francês. No entanto, o recurso dos enjambements — 
seja pela da quebra de palavras no final do verso 
(assom-/bram, mor-/to), seja pela quebra da frase (ao soar / da 
hora enquanto, pouco importa / aonde) não permite
 sentir a música no padrão verlainiano. Essa música, aliás,
 constituiu o eixo de referência do boletim de 2003. 

É óbvio que, depois de Verlaine, o campo da música já se 

expandiu bastante. Talvez a canção de Nelson Ascher 
tenda para o dodecafonismo, enquanto a de Verlaine, 
sem a menor dúvida, é tonal, popular e cantável.

Mas isso é natural. Ascher emprega em sua tradução alguns 

recursos poéticos (como a quebra de palavras) que 
não seriam sequer imagináveis para um Alphonsus de Guimaraens.
 Eu diria que nem mesmo Paulo Mendes Campos
 ousaria usá-los. As soluções de Ascher já têm como referência 
uma série de transformações por que passou a poesia
 no século XX: o modernismo, as infinitas liberdades formais 
propostas pelas vanguardas, a poesia concreta. É uma 
tradução pós-tudo.

                      •o•

Talvez eu esteja sendo maçante com essas observações quase 

técnicas. No entanto, o objetivo é mostrar
 como é difícil chegar a uma tradução que, idealmente, traga para o
 idioma de destino tanto o significado direto
 das palavras como outros sentidos e impressões que elas podem
 carregar — a música, por exemplo.

Deixo bem claro que não estou comparando as três (mais duas)

 traduções com o objetivo de apontar "a melhor".
 A idéia é, de certo modo, comprovar a lição drummondiana: 
não há vencedor inequívoco nessa luta com as 
palavras. Só é possível algum tipo de barganha: para ganhar
 algo aqui, o tradutor tem de abrir mão de outro 
detalhe acolá.
                       •o•

Em algum ponto mais acima, afirmei que a canção de Verlaine

 é cantável. Numa pesquisa na internet encontrei 
uma lista com dezenas de melodias, em registro erudito ou popular
, aplicadas ao poema. Para terminar, incluo 
abaixo a versão mais popular do poema musicado.

Trata-se da versão do cantor e compositor francês Charles Trénet 

(1913-2001), lançada em 1940. Grande 
cancionista, Trénet é famoso graças a músicas como "La mer",
 "Douce France" e "Que reste-t-il de nos 
amours", todas compostas por ele, sozinho ou com parceiros. 



Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado




A Canção de Outono revisitada
Paul Verlaine

Outono 1


CHANSON D'AUTOMNE


          Paul Verlaine

Les sanglots longs
Des violons
     De l'automne
Blessent mon coeur
D'une langueur
     Monotone.

Tout suffocant
Et blême, quand
     Sonne l'heure,
Je me souviens
Des jours anciens
     Et je pleure.

Et je m'en vais
Au vent mauvais
     Qui m'emporte
Deçà, delà,
Pareil à la
     Feuille morte.





Folhas de outono



CANÇÃO DO OUTONO

          Tradução: Alphonsus de Guimaraens

Os soluços graves
Dos violinos suaves
     Do outono
Ferem a minh'alma
Num langor de calma
     E sono.

Sufocado, em ânsia,
Ai! quando à distância
     Soa a hora,
Meu peito magoado
Relembra o passado
     E chora.

Daqui, dali, pelo
Vento em atropelo
     Seguido,
Vou de porta em porta,
Como a folha morta
     Batido...




Folhas de outono


CANÇÃO DO OUTONO

          Tradução: Onestaldo de Pennafort

Os longos sons
dos violões,
     pelo outono,
me enchem de dor
e de um langor
     de abandono.

E choro, quando
ouço, ofegando,
     bater a hora,
lembrando os dias,
e as alegrias
     e ais de outrora.

E vou-me ao vento
que, num tormento,
     me transporta
de cá pra lá,
como faz à
     folha morta.


Pássaros de outono




CANÇÃO DE OUTONO

          Tradução: Guilherme de Almeida

Estes lamentos
Dos violões lentos
     Do outono
Enchem minha alma
De uma onda calma
     De sono.

E soluçando,
Pálido, quando
     Soa a hora,
Recordo todos
Os dias doidos
     De outrora.

E vou à toa
No ar mau que voa.
     Que importa?
Vou pela vida,
Folha caída
     E morta.


Outono




CANÇÃO DE OUTONO

          Tradução: Paulo Mendes Campos

Os longos trinos
Dos violinos
     Do outono
Ferem minh'alma
Com uma calma
     Que dá sono.

Ao ressoar
A hora, alvar,
     Sufocado,
Choro os errantes
Dias distantes
     Do passado.

E em remoinho,
O ar daninho
     Me transporta
De cá pra lá,
De lá pra cá,
     Folha morta.


Outono




CANÇÃO DE OUTONO

          Tradução: Nelson Ascher

Violinos com
seu choro assom-
     bram o outono
e eu, corpo mor-
to de torpor,
     me abandono.

Quase sem ar,
desmaio ao soar
     da hora enquanto,
lembrando em vão
os dias de então,
     caio em pranto.

E o vento cruel
leva-me ao léu
     pouco importa
aonde, em vaivém,
vago que nem
     folha morta.




 chanson-trenet
O cantor francês Charles Trénet  interpreta a "Chanson d'Automne", musicada por ele, na gravação original de 1940



                    

                      •o•










OS TRADUTORES

Alphonsus de Guimaraens






Alphonsus de Guimaraens
(Ouro Preto, 1870-Mariana, 1921). Advogado 
e poeta, foi um dos principais nomes do simbolismo 
basileiro, com uma poesia de traços místico-católicos.


Guilherme de Almeida






Guilherme de Almeida
(Campinas, 1890-São Paulo, 1969). Advogado, jornalista,
 poeta e tradutor. Traduziu 21 poemas de As Flores do Mal
 e publicou-os no volume Flores das Flores do Mal.


Onestaldo de Pennafort









Onestaldo de Pennafort 
(Rio de Janeiro, 1902-idem, 1987). Poeta, jornalista e
 tradutor. A ele Carlos Drummond de Andrade dedicou
o poema "Dentaduras Duplas", do livro Sentimento do Mundo (1940).

literário. Tem traduções  poéticas reunidas nos volumes 
O Lado Obscuro (1996) e Poesia Alheia (1998).


Nelson Ascher









Nelson Ascher
(São Paulo, 1958). Jornalista, poeta, tradutor e crítico 




Paulo Mendes Campos





Paulo Mendes Campos
 (Belo Horizonte, 1922-Rio de Janeiro, 1991). Poeta,
 jornalista e grande cronista, também traduzia poemas 
e os divulgava em suas crônicas.


  Paul Verlaine, "Chanson d'Automne"
    In Poèmes Saturniens (1866)
Traduções:
    •  Alphonsus de Guimaraens (1870-1921)
    •  Guilherme de Almeida (1890-1969)
    
•  Onestaldo de Pennafort (1902-1987)
    •  Paulo Mendes Campos (1922-1991)
    
•  Nelson Ascher (1958-)
______________
* Izacyl Guimarães Ferreira, "Terapia", in Declaração de Bens (1980)

    





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Carlos Machado, 2014

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