João Cabral, Manuel Bandeira e Carlos Drummond (no alto); Solano Trindade (centro); Cecília Meireles, Haroldo de Campos e Francisco Carvalho (embaixo)
Caros,
Em outubro de 1973, durante um debate sobre música popular e poesia erudita na PUC-Rio, o poeta João Cabral de Melo Neto disse o seguinte:
“Eu não posso hoje ler nenhuma sequência de Morte e Vida Severina sem que a música me fique soando no ouvido. Hoje, estou resignado a tirar das minhas Poesias Completas o auto de Natal Morte e Vida Severina, pois creio que ele pertence mais ao Chico do que a mim”.
Obviamente, João Cabral quis mostrar-se lisonjeiro com o jovem — e já consagrado — compositor Chico Buarque, também participante do debate. No entanto, não resta a mínima dúvida: a música de Chico Buarque ajudou muito a popularizar, no palco e no rádio, o excelente e hoje clássico auto de Natal do poeta pernambucano.
Afinal, dentre todas as artes, a música é a que exibe maior capacidade de envolver as pessoas. Basta considerar que o primeiro contato com uma canção pode ser totalmente involuntário. A melodia invade os ouvidos, e pronto: você se rende a ela. É algo puramente sensorial. Com a poesia, o romance, ou qualquer arte textual, a história é bem diferente.
Não existe leitor por acaso. Leitor, mesmo, é alguém que toma a decisão de empreender a leitura. Isso implica que ele ou ela vai dedicar sua atenção ao texto. Pressupõe-se também que seja capaz de dominar os códigos ali existentes. Com a música, porém, não é necessário ter nenhum domínio. Na verdade, ela — a arte dos sons — é que domina.
Isso em parte explica o sucesso internacional de canções populares, mesmo quando têm letras em idiomas de pouca divulgação. (Estou falando, é claro, de fenômenos que vão além das erupções efêmeras e puramente contábeis que a indústria do entretenimento é capaz de fabricar.)
Portanto, ao dizer aquelas palavras, o poeta João Cabral de Melo Neto, além de lisonjear o parceiro compositor, conhecia muito bem os poderes que a música tem. Cabral, aliás, era famoso por não gostar de música.
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Uma conversa a respeito de poesia e música popular levou-me a este boletim, que reúne dez poemas brasileiros transformados em canções populares. Juntam-se, aqui, sete poetas e nove compositores: Manuel Bandeira, em parcerias com Antonio Carlos Jobim e Gilberto Gil; Carlos Drummond de Andrade, com Milton Nascimento, Belchior e Paulo Diniz; Cecília Meireles e João Cabral de Melo Neto, ambos com Chico Buarque; Solano Trindade com João Ricardo; Haroldo de Campos com Caetano Veloso; e Francisco Carvalho com Fagner.
O critério básico para figurar nessa lista foi simples: músicas de recorte popular escritas com base em poemas publicados. Portanto, ficaram de fora canções como “Azulão”, que tem letra de Bandeira e música de Jayme Ovalle. Nesse caso, Bandeira deixa bem claro em seu Itinerário de Pasárgada: “texto que escrevi para uma melodia de Jayme Ovalle”. Outro critério foi a disponibilidade do poema-canção no YouTube. Assim, pode-se falar dele com a possibilidade imediata de ouvi-lo.
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Um detalhe: vale deixar claro que considero poesia de livro e letra de música duas artes distintas, embora obviamente tenham pontos comuns. Como diz um dos mestres do ramo, o letrista mineiro Fernando Brant, as duas artes não são a mesma, mas são primas.
Edu Lobo, outro mestre da canção popular, concorda: letra e poema são artes diferentes. "Muitas vezes você pega grandes poetas que jamais fariam letra de música. (...) Fazer letra de música é outra história... Envolve musicalidade, você precisa entender disso, ter o ouvido legal, compreender como é que a frase musical se desenha". [Edu Lobo, no documentário Vinicius (2005), de Miguel Faria Jr.]
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A seguir, 10 poemas que viraram canções. A ordem não tem nenhuma importância.
1. Drummond e Paulo Diniz
O primeiro poema da lista é “José”, de Carlos Drummond de Andrade. Publicado originalmente em 1942, é um dos mais conhecidos do poeta e tornou-se inclusive responsável pela adoção popular da expressão “E agora, José?”, usada no dia a dia como se fosse um refrão de domínio público. “José” foi musicado pelo compositor pop pernambucano Paulo Diniz (1940-), conhecido por um bom punhado de sucessos no início dos anos 70, mas principalmente por “Eu quero voltar pra Bahia”.
Embora se possa supor que o ouvinte de Paulo Diniz não seria exatamente o leitor de Drummond, vale registrar o empenho do compositor pernambucano de incluir textos de grandes poetas em seu trabalho. Além de “José”, ele musicou e gravou versos de Manuel Bandeira (“Vou-me Embora pra Pasárgada”); Jorge de Lima (“Essa Negra Fulô”); Gonçalves Dias (“Canção do Exílio”); e Augusto dos Anjos (“Versos Íntimos”). Mas não para aí: Gregório de Matos, Adélia Prado, Ascenso Ferreira e Ferreira Gullar também se tornaram parceiros de Paulo Diniz. Portanto, palmas para ele.
2. Cecília Meireles e Chico Buarque
O texto seguinte é o “Tema de Os Inconfidentes”, extraído do Romanceiro da Inconfidência (1953), de Cecília Meireles. A canção foi escrita por Chico Buarque para o espetáculo teatral Os Inconfidentes, de Flávio Rangel, que foi à ribalta em 1968. A letra consiste numa feliz montagem de trechos extraídos de três poemas do livro de Cecília: os Romances V, LIX e XXXI. Ao transcrever a letra, ao lado, assinalei quais partes vêm de quais poemas.
3. Drummond e Milton Nascimento
Publicada pela primeira vez em Novos Poemas (1948), a “Canção Amiga”, de Carlos Drummond de Andrade, contém uma proposta de fraternidade e convivência harmônica entre as pessoas. Três décadas depois, Milton Nascimento associou uma melodia aos versos de Drummond e gravou-os no álbum Clube da Esquina 2, um dos pontos mais altos de seu trabalho musical.
4. Solano Trindade e João Ricardo
Surgido em 1944 no volume Poemas de uma Vida Simples, do poeta e ativista negro pernambucano Solano Trindade (1908-1974), o texto “Tem Gente com Fome” dá voz ao trem da Estrada de Ferro Leopoldina, que vai pelo caminho denunciando as precárias condições de vida dos subúrbios cariocas. João Ricardo, líder do grupo Secos & Molhados, transformou o poema numa letra de rock, gravado por Ney Matogrosso em 1979. Trinta e cinco anos depois de publicado em livro, o grito do trem ainda fazia sentido. E, infelizmente, ainda faz agora. Talvez haja menos fome de pão, mas quantas outras fomes ainda nos cutucam corpo e alma...
Nascido em Portugal, João Ricardo vive no Brasil desde 1964. Ele também revelou especial inclinação para musicar poemas. Os dois primeiros discos do Secos & Molhados, de 1973 e 1974, trazem canções com poemas de Cassiano Ricardo, Manuel Bandeira, Fernando Pessoa, Oswald de Andrade e Solano Trindade (nesse caso, “Mulher Barriguda”) e até um texto de Julio Cortázar, todos musicados por João Ricardo. Há ainda um poema de Vinicius de Moraes, “A Rosa de Hiroxima”, com melodia de Gerson Conrad, outro integrante do Secos & Molhados.
5. Haroldo de Campos e Caetano Veloso
Na maioria dos casos, os poemas que os compositores escolhem para musicar são peças que apresentam certa regularidade formal, o que lhes facilita a empreitada. Em “José”, embora as estrofes não sejam uniformes, predominam os versos de cinco sílabas. Em “Vou-me Embora pra Pasárgada”, todos os versos têm sete sílabas. Isso não vale para “Circuladô de Fulô”, cantiga de um cantador de feira nordestina que Caetano Veloso desentranhou de uma página do poema em prosa Galáxias, de Haroldo de Campos.
Num texto em que não há pontuação nem mesmo maiúsculas para ajudar a leitura, Veloso extraiu um refrão e desenvolveu o canto mastigado do repentista. O texto opera com duas vozes. No refrão e na última das partes musicais, quem fala é o cantador. Nas outras duas, um narrador descreve a cena.
Na transcrição do poema, mantive o padrão usado por Haroldo de Campos em Galáxias, que é o texto corrido sem parágrafos, como uma caudal sem fim. Separei, no entanto, os blocos que correspondem às partes definidas pela música de Caetano. Vale destacar que, dos quatro blocos aqui mostrados, somente o primeiro (que é também o refrão) e o segundo têm no poema original uma sequência imediata. Os outros dois, embora situados na mesma página, são trechos salteados.
As primeiras páginas de Galáxiasdivulgadas amplamente, incluindo o “Circuladô de Fulô”, foram publicadas no livro Xadrez de Estrelas, de Haroldo de Campos, em 1976. Contudo, o poeta data o “Circuladô” de 1966. Ele também conta que apresentou o texto a Caetano em 1969, durante o exílio do cantor em Londres. A gravação da música é de 1975.
6. Drummond e Belchior
O cantor e compositor cearense Belchior é talvez o campeão na arte de transformar poemas em canções. Em 2004, ele lançou um CD duplo, As Várias Caras do Drummond, no qual apresenta 31 canções compostas sobre versos do poeta itabirano. As caras do título se explicam também pelo fato de que o projeto inclui um álbum com 31 retratos de Drummond pintados pelo compositor. Desse CD selecionei o baião “Cota Zero”, feito em cima do micropoema modernista que está no livro de estreia do poeta, Alguma Poesia (1930). Ah, acreditem: as caras do título também têm a ver com a revista Caras, que se associou a Belchior no projeto.
7. Manuel Bandeira e Tom Jobim
Modernista de primeira água, Bandeira lançava mão de variados recursos musicais em sua poesia. Poemas como “Rondó do Capitão” e “Os Sinos” são daqueles que escancaradamente pedem melodia. “Trem de Ferro” (de Estrela da Manhã, de 1936) também se inclui nesse grupo. Vários compositores musicaram o delicioso “Café com pão / Café com pão” de Bandeira. Mas a versão que aparece aqui tem a assinatura de nosso mais celebrado maestro popular, Antonio Carlos Jobim.
Jobim também gravou o “Trem de Ferro” em disco próprio, mas a versão destacada ao lado está num CD de Olivia Hime: Estrela da Vida Inteira – Manuel Bandeira (1986). Para esse disco, Olivia convidou um bom punhado de compositores (Dorival Caymmi, Gilberto Gil, Francis Hime, Milton Nascimento, Joyce e outros) e pediu-lhes que compusessem melodias sobre poemas de Bandeira. Algumas canções já existiam antes do projeto, como parece ser o caso dessa de Jobim, mas ele participou da gravação de Olivia.
8. João Cabral e Chico Buarque
“Funeral de um lavrador” é uma das canções que valeram a Chico Buarque o elogio de João Cabral de Melo Neto citado no início deste boletim. Divulgada na peça de teatro e depois também gravada por Chico em 1968, a música foi adotada pela juventude como uma denúncia da miséria no Nordeste e, ao mesmo tempo, um protesto contra a ditadura.
9. Manuel Bandeira e Gilberto Gil
No projeto de Olivia Hime para musicar poemas de Manuel Bandeira, coube a Gilberto Gil a tarefa de tornar cantáveis os versos de “Vou-me embora pra Pasárgada”, talvez a página mais conhecida do poeta recifense. O poema, como já vimos, também ganhou melodia de Paulo Diniz — e possivelmente deve ter outras trilhas sonoras por aí. Apenas um resmungo: Olivia pronuncia PaSSárgada, quando o S entre duas vogais pede o som de Z. Som que, aliás, é o pronunciado pelo próprio Bandeira ao ler o poema.
10. Francisco Carvalho e Fagner
O cantor e compositor cearense Raimundo Fagner (1949-) pôs melodia em cinco poemas de seu conterrâneo Francisco Carvalho (1927-2013). As canções estão no CD Donos do Brasil, de 2004. Entre elas selecionei “O Bicho Homem”, texto do qual não consegui identificar a origem exata. Na antologia Memórias do Espantalho – Poemas Escolhidos, lançada no mesmo ano do disco, Francisco Carvalho reuniu textos de 19 de seus livros até então. Essa coletânea inclui “O Bicho Homem” e indica Centauros Urbanos como livro de origem. Consultei Centauros e o poema não está lá. E mais: a versão cantada por Fagner é mais longa, tem umas quatro ou cinco estrofes além das publicadas na antologia. É provável que Fagner tenha se baseado na versão original, depois reduzida pelo poeta nos poemas escolhidos. A transcrição ao lado é a do disco de Fagner.
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Certamente dezenas de outros poemas que viraram canções poderiam ser citados. Eu mesmo seria capaz de lembrar várias outras. "Ismália", do poeta simbolista mineiro Alphonsus de Guimaraens, tem dezenas de versões cantáveis. O compositor baiano Alcyvando Luz (1937-1998) musicou poemas de Drummond, entre os quais o conhecido "Memória", de Claro Enigma. José Miguel Wisnik agregou melodia ao poema "Anoitecer", também de Drummond. Francis Hime transformou em valsa um texto de Castro Alves. E João Bosco, no samba "Pagodespell", juntou dois poemas-minuto do modernista Oswald de Andrade: "Escapulário" (melodia de Caetano Veloso) e "Relicário" (melodia de Bosco, mas com sacada de Chico Buarque para usar o poema como letra).
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
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OS COMPOSITORES
Paulo Diniz Pesqueira, PE, 1940 |
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Chico Buarque Rio de Janeiro, RJ, 1944 |
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Milton Nascimento
Rio de Janeiro, RJ, 1942 |
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João Ricardo Portugal, 1952 |
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Caetano Veloso Santo Amaro, BA, 1942
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Belchior Sobral, CE, 1946
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Tom Jobim Rio de Janeiro, RJ (1927-1994) |
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Gilberto Gil Salvador, BA, 1942 |
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Raimundo Fagner Orós, CE, 1949 |
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10 poemas que viraram canções
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Sete poetas, nove compositores
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• Carlos Drummond de Andrade + Paulo Diniz
Paulo Diniz, José (1972), música dele sobre poema de Drummond
JOSÉ
E agora, José? A festa acabou, a luz apagou, o povo sumiu, a noite esfriou, e agora, José? e agora, você? você que é sem nome, que zomba dos outros, você que faz versos, que ama, protesta? e agora, José?
Está sem mulher, está sem discurso, está sem carinho, já não pode beber, já não pode fumar, cuspir já não pode, a noite esfriou, o dia não veio, o bonde não veio, o riso não veio não veio a utopia e tudo acabou e tudo fugiu e tudo mofou, e agora, José?
E agora, José? Sua doce palavra, seu instante de febre, sua gula e jejum, sua biblioteca, sua lavra de ouro, seu terno de vidro, sua incoerência, seu ódio — e agora?
Com a chave na mão quer abrir a porta, não existe porta; quer morrer no mar, mas o mar secou; quer ir para Minas, Minas não há mais. José, e agora?
Se você gritasse, se você gemesse, se você tocasse a valsa vienense, se você dormisse, se você cansasse, se você morresse... Mas você não morre, você é duro, José!
Sozinho no escuro qual bicho-do-mato, sem teogonia, sem parede nua para se encostar, sem cavalo preto que fuja a galope, você marcha, José! José, para onde?
• Cecília Meireles + Chico Buarque
Chico Buarque e MPB4, tema da peça Os Inconfidentes. Música de Chico com trechos do Romanceiro da Inconfidência
TEMA DE "OS INCONFIDENTES"
Toda vez que um justo grita, um carrasco o vem calar. Quem não presta, fica vivo; quem é bom, mandam matar. Quem não presta, fica vivo; quem é bom, mandam matar. [do Romance V]
Foi trabalhar para todos... — e vede o que lhe acontece! Daqueles a quem servia, já nenhum mais o conhece. Quando a desgraça é profunda, que amigo se compadece?
Foi trabalhar para todos... Mas, por ele, quem trabalha? Tombado fica seu corpo, Nessa esquisita batalha. Suas ações e seu nome, por onde a glória os espalha? [do Romance LIX]
Por aqui passava um homem — e como o povo se ria! — que reformava este mundo de cima da montaria.
Por aqui passava um homem... — e como o povo se ria! — Ele, na frente, falava e, atrás, a sorte corria...
Por aqui passava um homem — e como o povo se ria! — "Liberdade ainda que tarde" nos prometia.
Por aqui passava um homem... — e como o povo se ria! — No entanto, à sua passagem, Tudo era como alegria.
Por aqui passava um homem — e como o povo se ria! — "Liberdade ainda que tarde" nos prometia. [do Romance XXXI]
Toda vez que um justo grita, um carrasco o vem calar. Quem não presta fica vivo; quem é bom, mandam matar. Quem não presta fica vivo; quem é bom mandam matar. [do Romance V]
• Carlos Drummond de Andrade + Milton Nascimento
Milton Nascimento canta Canção Amiga (1978), composição dele sobre poema de Carlos Drummond de Andrade
CANÇÃO AMIGA
Eu preparo uma canção em que minha mãe se reconheça, todas as mães se reconheçam, e que fale como dois olhos.
Caminho por uma rua que passa em muitos países. Se não me veem, eu vejo e saúdo velhos amigos.
Eu distribuo um segredo como quem ama ou sorri. No jeito mais natural dois carinhos se procuram.
Minha vida, nossas vidas formam um só diamante. Aprendi novas palavras e tornei outras mais belas.
Eu preparo uma canção que faça acordar os homens e adormecer as crianças.
• Solano Trindade + João Ricardo
Ney Matogrosso,Tem Gente com Fome (1979). Música de João Ricardo sobre poema de Solano Trindade
TEM GENTE COM FOME
Trem sujo da Leopoldina correndo correndo parece dizer tem gente com fome tem gente com fome tem gente com fome
Piiiii
Estação de Caxias de novo a correr de novo a dizer tem gente com fome tem gente com fome tem gente com fome
Tantas caras tristes querendo chegar em algum destino em algum lugar
Só nas estações quando vai parando começa a dizer se tem gente com fome dá de comer se tem gente com fome dá de comer se tem gente com fome dá de comer
Mas o freio de ar todo autoritário manda o trem calar Psiuuuuuuuuuu.
• Haroldo de Campos + Caetano Veloso
Caetano Veloso canta "Circuladô de Fulô", canção criada sobre trechos do poema em prosa "Galáxias", de Haroldo de Campos
CIRCULADÔ DE FULÔ
circuladô de fulô ao deus ao demodará que deus te guie porque eu não posso guiá eviva quem já me deu circuladô de fulô e ainda quem falta me dá
soando como um shamisen e feito apenas com um arame tenso um cabo e uma lata velha num fim de festafeira no pino do sol a pino mas para outros não existia aquela música não podia porque não podia popular aquela música se não canta não é popular se não afina não tintina não tarantina e no entanto puxada na tripa da miséria na tripa tensa da mais megera miséria física e doendo doendo como um prego na palma da mão um ferrugem prego cego na palma espalma da mão coração exposto como um nervo tenso retenso um renegro prego cego durando na palma polpa da mão ao sol
o povo é o inventalínguas na malícia da mestria no matreiro da maravilha no visgo do improviso tenteando a travessia azeitava o eixo do sol
e não peça que eu te guie não peça despeça que eu te guie desguie que eu te peça promessa que eu te fie me deixe me esqueça me largue me desamargue que no fim eu acerto que no fim eu reverto que no fim eu conserto e para o fim me reservo e se verá que estou certo e se verá que tem jeito e se verá que está feito que pelo torto fiz direito que quem faz cesto faz cento se não guio não lamento pois o mestre que me ensinou já não dá ensinamento
• Carlos Drummond de Andrade + Belchior Belchior lançou em 2004 um CD duplo com 31 poemas de Drummond musicados. A canção "Cota Zero" é parte desse disco
COTA ZERO
Stop. A vida parou ou foi o automóvel?
• Manuel Bandeira + Tom Jobim
Olivia Hime, com Tom Jobim e coro, canta a música de Jobim para o poema "Trem de Ferro", de Manuel Bandeira
TREM DE FERRO
Café com pão Café com pão Café com pão
Virge Maria que foi isso maquinista?
Agora sim Café com pão Agora sim Voa, fumaça Corre, cerca Ai seu foguista Bota fogo Na fornalha Que eu preciso Muita força Muita força Muita força
Oô... Foge, bicho Foge, povo Passa ponte Passa poste Passa pasto Passa boi Passa boiada Passa galho De ingazeira Debruçada No riacho Que vontade De cantar!
Oô... Quando me prendero No canaviá Cada pé de cana Era um oficiá Oô... Menina bonita Do vestido verde Me dá tua boca Pra matá minha sede Oô... Vou mimbora vou mimbora Não gosto daqui Nasci no sertão Sou de Ouricuri Oô...
Vou depressa Vou correndo Vou na toda Que só levo Pouca gente Pouca gente Pouca gente...
• João Cabral de Melo Neto + Chico Buarque
"Funeral de um Lavrador" é um trecho de Morte e Vida Severina, de João Cabral, musicado em 1965 pelo jovem compositor Chico Buarque
FUNERAL DE UM LAVRADOR
— Essa cova em que estás, com palmos medida, é a conta menor que tiraste em vida.
— É de bom tamanho, nem largo nem fundo, é a parte que te cabe deste latifúndio.
— Não é cova grande, é cova medida, é a terra que querias ver dividida.
— É uma cova grande para teu pouco defunto, mas estarás mais ancho que estavas no mundo.
— É uma cova grande para teu defunto parco, porém mais que no mundo te sentirás largo.
— É uma cova grande para tua carne pouca, mas a terra dada não se abre a boca.
• Manuel Bandeira + Giberto Gil
Olivia Hime interpreta a canção "Vou-me Embora pra Pasárgada", composta por Gilberto Gil em cima dos versos de Bandeira
VOU-ME EMBORA PRA PASÁRGADA
Vou-me embora pra Pasárgada Lá sou amigo do rei Lá tenho a mulher que eu quero Na cama que escolherei Vou-me embora pra Pasárgada
Vou-me embora pra Pasárgada Aqui eu não sou feliz Lá a existência é uma aventura De tal modo inconsequente Que Joana a Louca da Espanha Rainha e falsa demente Vem a ser contraparente Da nora que nunca tive
E como farei ginástica Andarei de bicicleta Montarei em burro brabo Subirei no pau-de-sebo Tomarei banhos de mar! E quando estiver cansado Deito na beira do rio Mando chamar a mãe-d'água Pra me contar as histórias Que no tempo de eu menino Rosa vinha me contar Vou-me embora pra Pasárgada
Em Pasárgada tem tudo É outra civilização Tem um processo seguro De impedir a concepção Tem telefone automático Tem alcaloide à vontade Tem prostitutas bonitas Para a gente namorar
E quando eu estiver mais triste Mas triste de não ter jeito Quando de noite me der Vontade de me matar — Lá sou amigo do rei — Terei a mulher que eu quero Na cama que escolherei Vou-me embora pra Pasárgada.
• Francisco Carvalho + Fagner
Musicado e gravado por Fagner em 2004, O Bicho Homem é um texto do poeta cearense Francisco Carvalho, falecido este ano
O BICHO HOMEM
Que bicho é o homem de onde ele veio para onde vai? Onde é que entra de onde é que sai?
Que raio lhe acende a chama da fúria? O que é que sobra da cesta básica de sua penúria?
Que bicho é o homem do que se enfeita? Que mão o ampara no chão de enigmas em que se deita?
Que bicho é o homem que mama no seio da reminiscência? E que embala a morte em seu devaneio?
Que bicho é esse que carrega o fardo de uma dor medonha? Que sucumbe ao charco mas ainda sonha?
Que bicho vagueia na treva hedionda? Que pantera esguia será mais veloz do que a própria sombra?
O homem que tece as malhas da lei. Que bicho é o homem que transforma em pêssegos as fezes do rei?
Que bicho é o homem que ama e desama que afaga e magoa? E que às vezes lembra um anjo em pessoa?
O homem que vai para a eternidade num saco de lixo. Que bicho é o homem de salário fixo?
Que bicho é o homem que trapaceia? Que às vezes pensa Que é mais brilhante do que a papa-ceia?
Que bicho é esse que escreve as vogais das cinzas do pai? — De onde ele veio e para onde vai?
Que bicho é o homem que se interroga? léguas de volúpia sonhos e utopias tudo se evapora?
Que bicho é o homem de argila e colostro que lavra e semeia? mas só colhe insônias em lavoura alheia?
Os rastros do homem no vento ou na água são rastros de fera. Mas que bicho é esse que se dilacera?
O homem suplica os deuses concedem. Que bicho é o homem que sempre regressa às praias do Éden?
Que bicho é o homem que escreve poemas na aurora agônica e depois acende a fogueira atômica?
Que bicho te oferta um ramo de rimas e à sombra dos mortos semeia gemidos por sete Hiroximas?
Que bicho te espreita aos olhos dos becos onde os cães insones mastigam as sombras dos antigos donos?
Que bicho é o homem que rasteja e voa que se ergue e cai? — De onde ele veio e para onde vai?
Que bicho é o homem de onde ele veio e para onde vai? Onde é que entra de onde é que sai?
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