quarta-feira, 6 de março de 2013

FRANCISCO CARVALHO - 'RETRATO VISTO DE LONGE'

poesia.net - São Paulo.

Retrato visto de longe
Francisco Carvalho


ESTUDO
Subitamente descobrimos o acaso
 
na nuvem que passa pelo pássaro
 
ou no pássaro que soturnamente percorre a nuvem.

De repente aprendemos a flor das coisas
 
e os seus movimentos na paisagem.
 
De repente trocamos a imagem pela paisagem
 
a palmatória pela parábola.

De repente descobrimos que os espelhos nos evitam
que o amanhã pertence aos outros
que da janela somos observados
por super-homens de celulóide.
De repente é o metal do amor que silencia
no coração onde tudo é paisagem.

Subitamente compreendemos
que as palavras envelhecem com os homens
que o amor também envelhece
quando as palavras envelhecem.
                    De Os Mortos Azuis (1971)


RETRATO PARA SER VISTO DE LONGE
Sou um ser, o outro é metade
 
que não sabe de onde veio.
 
Sou treva, sou claridade.
 
Solidão partida ao meio
 
e entre os dois a eternidade.

Sei quem sou, não me conheço.
 
Parado, estou sempre indo
 
para um país sem regresso.
 
Sou fonte e estou me esvaindo,
 
fluir sem fim nem começo.

Coração partido ao meio,
 
pulsando em cada metade.
 
O lirismo do espantalho
 
a espuma do devaneio.
 
Entre os dois a eternidade.
                    De Pastoral dos Dias Maduros (1977)


FINGIMENTO

Não adianta fingir
que o tempo não passou
com os seus pendões vacilantes
de cortejo fúnebre.

Fingir que o rosto não foge
 
ao sarcasmo dos espelhos.
 
Que os deuses não zombam
 
do sorriso trincado dos velhos.

Fingir que ainda restam
 
vestígios da antiga chama.
 
— Sob o desenho das rugas
 
só o silêncio nos ama.
HERÓI

Herói não é o que vai irrigar as lavouras 
da morte nos campos de batalha.
 
Não é o que volta das trincheiras minadas
 
de explosivos com medalhas no peito
 
mutilações no corpo e na alma.

Herói não semeia tulipas de sangue
 
ramalhetes de napalm e rosas de átomo.
— Não é o aventureiro que fez xixi na lua.

— Herói é o que vai todas as tardes à padaria
 
mais próxima buscar o pão ainda morno
 
para testemunhar o mistério da vida.

RECATO

Guarda o teu poema no fundo de uma gaveta.
Que as traças o devorem sem deixar
o mais débil vestígio de tua humanidade.

O que pensas do amor, da vida e da morte
não interessa a ninguém.
Todos estão demasiadamente distraídos
e preocupados com as precárias
liberdades do corpo e as metamorfoses da alma.

Digam o que disserem os graves e os cínicos
os bêbados e os bastardos
os que te cumprimentam todas as manhãs
com mentirosa cordialidade...
— Guarda o teu poema no fundo de uma gaveta.


 
ARGILA ERÓTICA 
8


Um dia percebemos que as amadas se evaporam
 
no ar como se nunca tivessem existido.
 
Sombras de pássaros na água

elas emigram para lugares distantes
ou talvez para alguma estrela
dessas que flamejam nos trapézios do céu.

As amadas passam como o vento
são inconstantes como as brisas que derrubam
as folhas mortas de um pomar.

Semelhantes a esses gatos de pelúcia
que nos arranham com seus bigodes de mercúrio
e vão-se lambuzar no pires de leite.

As amadas, quando vão embora,
 
deixam apenas a memória do perfume
 
como um punhal cravado em nosso peito.


14


Penso: logo tua chama
incendeia o meu pensamento
logo me entregas
as pálpebras da orquídea submersa
logo o dia amanhece
em todas as conchas do teu dorso
logo os meus olhos
esvaziam o cálice de tua nudez
logo te aproximas
coroada de algas e de espumas.
Penso: logo existes
metamorfose da rosa em meu sangue.
                    De Centauros Urbanos (2003)


AS CURVAS DE EROS

De repente nos damos conta
de que o rosto
foi comido pela solidão
fera insaciável.
De repente nos debruçamos
sobre o adeus
e os caminhos da infância extraviada.
De repente um desejo
ladra em vão
às matilhas da lenta madureza.
De repente mastigamos
palavras amargas
palavras cujo sumo foi espremido
pelos dedos da morte.
De repente voltamos a acender o fogo
azulado do mito.
De repente a mentira
põe os seus ovos de ouro em nossa algibeira.
De repente o coração
é uma serpente enroscada nas curvas de Eros.
De repente o sexo
é uma palavra sem nexo.
                    De Rosa dos Eventos (1982)

CALAFRIO

O amor
é um calafrio
que nos percorre
o corpo
e deságua
na foz
de um secreto rio.
                    De As Verdes Léguas (1979)

BALADA TRÁGICA 

A que se chamava Raimunda morreu na segunda
A que se chamava Vanessa morreu na terça
A que se chamava Marta morreu na quarta
A que se chamava Jacinta morreu na quinta
A que se chamava Violeta morreu na sexta
O que se chamava Bernardo morreu no sábado
O que se chamava Deolindo ressuscitou no domingo.
                    De Barca dos Sentidos (1989)
Clique na imagem para ver a animação e ouvir o poema "O Bicho Homem", 
musicado e cantado por Raimundo Fagner

ENGENHARIA DO POEMA
Fazer o poema 
é estar em conflito
 
com o sangue que corre
 
nas veias do mito.

É sair do corpo
 
e estar de permeio.
 
O punhal na bainha
do teu devaneio.

Fazer o poema
 
é estar na palavra.
 
Como a efígie do morto
 
na faca amolada.

Fazer o poema
 
é agarrar o agora
 
para pô-lo inteiro
 
dentro da metáfora.
                    De As Verdes Léguas (1979)

DIALÉTICA DO POEMA

Fazer um poema
não é dizer coisas profundas.
É ver as coisas como as coisas não são.

Fazer um poema não é viajar no espelho.
É ir à procura do rosto do homem
perdido na escuridão.

É descer às raízes do sangue e do mito.
Fazer um poema é estar em conflito
com os dedos da mão.
                    De O Silêncio é uma Figura Geométrica (2002)

 

Francisco Carvalho
•  "Retrato para ser visto de longe", "Estudo", "As curvas de Eros",
    "Calafrio", "Balada trágica", "Engenharia do poema"
 
    e "Dialética do poema"
 
   
 In Memórias do Espantalho — Poemas Escolhidos
   
 Imprensa Universitária da UFC, Fortaleza, 2004
•  "Fingimento", "Herói", "Recato", "Argila Erótica"
   
 In Centauros Urbanos
   
 Imprece, Fortaleza, 2003
______________
* Francisco Carvalho, “Tanatologia”,
 
  in
 Rosa dos Eventos (1982)
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* Imagem 1:
 Pássaro
* Imagem 2: Leveza
* Imagem 3: Honório Fusco - "Mulher de Argila 5"
* Imagem 4: xyz photo - "Old Age of Dandelion"
* Imagem 5: "O Bicho Homem" - Animação de José Inácio Vieira de Melo

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