Número 286 - Ano 11
|
São Paulo, quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013
|
Eugénio de Andrade Caros,
Já faz algum tempo que um autor português não aparece nas páginas deste boletim. É hora, portanto, de reparar esse lapso. Este número é dedicado ao poeta Eugénio de Andrade (1923-2005), um dos grandes nomes da poesia em seu país. Nascido em Póvoa de Atalaia, na região central de Portugal, Andrade fixou-se em Lisboa desde os 10 anos de idade. Em 1950, mudou-se para a cidade do Porto, em cuja região permaneceu até o fim da vida.
Eugênio de Andrade, nome literário de José Fontinhas, estreou em 1939 com a plaquete Narciso e, três anos depois, publicou o livroAdolescente. (Esses dois primeiros títulos foram posteriormente renegados pelo autor.) A consagração só lhe veio mais tarde, com a obra As Mãos e os Frutos, de 1948. Poeta essencialmente lírico, publicou quase trinta coletâneas de poemas originais, além de antologias, traduções, obras em prosa e escritos para crianças.
Os poemas transcritos ao lado foram extraídos da antologiaPoemas de Eugénio de Andrade, publicada no Brasil em 1999 pela Nova Fronteira, com seleção, estudo e notas do também poeta e crítico literário português Arnaldo Saraiva. Na seleção deste boletim, os poemas originalmente sem título são transcritos com o primeiro verso entre colchetes usado como título.
A lírica de Eugénio Andrade lastreia-se em coisas essenciais. Se você, antes mesmo de ler os poemas ao lado, passear os olhos por todos eles, vai notar uma sequência de substantivos marcados pelo dia a dia e pela experiência do mundo: fogo, trigo, pássaro, caminho; rosto, água, ouro, silêncio, espaço; verão, praça, muro, mar; navios, rios, hospitais, cidades; pedra, casa, barco, bosque; pele, boca, areias, palavras.
Supõe-se, portanto, que estamos com os pés firmes num universo conhecido. Não é bem assim. A poesia de Eugénio de Andrade sabe extrair desse mundo pedestre e prosaico a centelha mágica. Uma coisa é o mundo cru. Outra, bem transcendente, é o ambiente que se delineia com os versos: "Nem o branco fogo do trigo / nem as agulhas cravadas na pupila dos pássaros / te dirão a palavra."
Essas três linhas singelas não contêm a resposta a nenhuma pergunta. Não curam, não ferem, nem oscilam conforme as flutuações da Bolsa de Nova York. Apenas incomodam esteticamente o leitor atento, aquele que entra de peito aberto na aventura da poesia. E esse incômodo é tudo.
|
SOBRE O CAMINHO
Nada. Nem o branco fogo do trigo nem as agulhas cravadas na pupila dos pássaros te dirão a palavra. Não interrogues não perguntes entre a razão e a turbulência da neve não há diferença. Não colecciones dejectos o teu destino és tu. Despe-te não há outro caminho. De Véspera da Água (1973) OS AMANTES SEM DINHEIRO Tinham o rosto aberto a quem passava. Tinham lendas e mitos e frio no coração. Tinham jardins onde a lua passeava de mãos dadas com a água e um anjo de pedra por irmão. Tinham como toda a gente o milagre de cada dia escorrendo pelos telhados; e olhos de oiro onde ardiam os sonhos mais tresmalhados. Tinham fome e sede como os bichos, e silêncio à roda dos seus passos. Mas a cada gesto que faziam um pássaro nascia dos seus dedos e deslumbrado penetrava nos espaços. De Os Amantes sem Dinheiro (1950) SUL Era verão, havia o muro. Na praça, a única evidência eram os pombos, o ardor da cal. De repente o silêncio sacudiu as crinas, correu para o mar. Pensei: devíamos morrer assim. Assim: explodir no ar. De O Outro Nome da Terra (1988) "Na areia branca, onde o tempo começa" AS PALAVRAS INTERDITAS Os navios existem, e existe o teu rosto encostado ao rosto dos navios. Sem nenhum destino flutuam nas cidades, partem no vento, regressam nos rios. Na areia branca, onde o tempo começa, uma criança passa de costas para o mar. Anoitece. Não há dúvida, anoitece. É preciso partir, é preciso ficar. Os hospitais cobrem-se de cinza. Ondas de sombra quebram nas esquinas. Amo-te... E entram pela janela as primeiras luzes das colinas. As palavras que te envio são interditas até, meu amor, pelo halo das searas; se alguma regressasse, nem já reconhecia o teu nome nas suas curvas claras. Dói-me esta água, este ar que se respira, dói-me esta solidão de pedra escura, estas mãos nocturnas onde aperto os meus dias quebrados na cintura. E a noite cresce apaixonadamente. Nas suas margens nuas, desoladas, cada homem tem apenas para dar um horizonte de cidades bombardeadas. De As Palavras Interditas (1951) METAMORFOSES DA CASA Ergue-se aérea pedra a pedra a casa que só tenho no poema. A casa dorme, sonha no vento a delícia súbita de ser mastro. Como estremece um torso delicado, assim a casa, assim um barco. Uma gaivota passa e outra e outra, a casa não resiste: também voa. Ah, um dia a casa será bosque, à sua sombra encontrarei a fonte onde um rumor de água é só silêncio. EPITÁFIO Barcos ou não ardem na tarde. No ardor do verão todo o rumor é ave. Voa coração. Ou então arde. DESPEDIDA Colhe todo o oiro do dia na haste mais alta da melancolia. De Ostinato Rigore (1964) DESDE O CHÃO A pele porosa do silêncio agora que a noite sangra nos pulsos traz-me o teu rumor de chuva branca. O verão anda por aí, o cheiro violento da beladona cega a terra. Cega também, a boca procura trabalhos de amor. Encontra apenas o nó de sombra das palavras. Palavras... Onde um só grito bastaria, há a gordura das palavras. Palavras — quando apetecem claridades súbitas, o sumo estreme, a ponta extrema do teu corpo, arco, flecha, corola de água aberta ao fogo a prumo do meu corpo. Do chão ao cume das colinas, eis as areias. Cala-te. Deita-te. Debaixo dos meus flancos. A terra toda em cima. Agora arde. Agora. De Obscuro Domínio (1971) A CASAIS MONTEIRO, PODENDO SERVIR DE EPITÁFIO O que dói não é um álamo. Não é a neve nem a raiz da alegria apodrecendo nas colinas. O que dói não é sequer o brilho de um pulso ter cessado, e a música, que trazia às vezes um suspiro, outras um barco. O que dói é saber. O que dói é a pátria, que nos divide e mata antes de se morrer.Setembro, 72 De Homenagens e Outros Epitáfios (1974) "Até que uma pedra irrompa / e floresça"
ESPERA
Horas, horas sem fim, pesadas, fundas, esperarei por ti até que todas as coisas sejam mudas. Até que uma pedra irrompa e floresça. Até que um pássaro me saia da garganta e no silêncio desapareça.
De As Mãos e os Frutos (1935)
[FAZ UMA CHAVE, MESMO PEQUENA] Faz uma chave, mesmo pequena, entra na casa. Consente na doçura, tem dó da matéria dos sonhos e das aves. Invoca o fogo, a claridade, a música dos flancos. Não digas pedra, diz janela. Não sejas como a sombra. Diz homem, diz criança, diz estrela. Repete as sílabas onde a luz é feliz e se demora. Volta a dizer: homem, mulher, criança. Onde a beleza é mais nova. [ESTOU CONTENTE, NÃO DEVO NADA À VIDA] Estou contente, não devo nada à vida, e a vida deve-me apenas dez réis de mel coado. Estamos quites, assim o corpo já pode descansar: dia após dia lavrou, semeou, também colheu, e até alguma coisa dissipou, o pobre, pobríssimo animal, agora de testículos aposentados. Um dia destes vou-me estender debaixo da figueira, aquela que vi exasperada e só, ha muitos anos: pertenço à mesma raça. De Branco no Branco (1984) |
·
Textos extraídos de:
• Poemas de Eugénio de Andrade
Seleção, estudo e notas de Arnaldo Saraiva
Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1999
______________
* Bernardo Soares (Fernando Pessoa),
in O Livro do Desassossego
_
• Poemas de Eugénio de Andrade
Seleção, estudo e notas de Arnaldo Saraiva
Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 1999
______________
* Bernardo Soares (Fernando Pessoa),
in O Livro do Desassossego
_
Nenhum comentário:
Postar um comentário