terça-feira, 18 de setembro de 2012

ZORZO, F.A. - O GRAFITE E OS FLUXOS DA CIDADE



O GRAFITE E OS FLUXOS DA CIDADE

Francisco Antônio Zorzo - Professor da UFBA (Universidade Federal da Bahia - Brasil)

[Artigo publicado no jornal A Tarde, Salvador - Bahia - Brasil, 22 de Agosto de 2012, Salvador – Bahia]

Vale a pena tratar do caso da grafitagem, tal como ocorre no bairro do Rio Vermelho, como uma referência concreta para estudar a cidade e a visualidade. Pode-se tomar o efeito de uma série de obras pintadas nas ruas de Salvador para entender o problema dos fluxos urbanos. O grafite é um campo de múltiplos efeitos e fluxos comunicacionais na metrópole brasileira contemporânea.
Os grafites, que proliferam nos muros e paredes desse bairro de Salvador, merecem um acolhimento crítico por darem vista a um olhar que reflete o ambiente urbano. Essas figurações são feitas por um grupo de artistas que convivem na mesma cidade e que, mesmo sendo contemporâneos, oferecem uma diversidade de reações e capturas do imaginário urbano. Eles constroem um olhar que ultrapassa obviamente o espaço das paredes da cidade, proporcionando uma interação simbólica muito mais ampliada, cujas exibições são levadas às redes sociais e à mídia.
Os artistas da cidade fazem um trabalho de criação de signos para a coletividade, colocando em discussão o olhar. De um lado, eles exibem signos que criam uma estética contemporânea, mas, por outro, estabelecem, sob forma visual, uma fricção sobre a superfície da cidade, colocando-a em crise. A constatação de que o grafite e a pichação ocupam um espaço não dominado pelo sistema capitalista, liga-os ao debate teórico sobre a multiplicidade do sentido na construção da realidade.
Os grafiteiros oportunizam, no Rio Vermelho, o fato de que o bairro que articula diversas funções socio-culturais em Salvador. Vale lembrar que, justamente por cumprir uma função cultural, o espaço atrai a discussão política. Bem ou mal, é um lugar onde se procura produzir uma cena social, em que partidos políticos inserem seus comitês eleitorais. Artistas também sacam suas armas e fazem performances públicas. Esse forma de exposição conflituosa já é antiga no lugar, basta lembrar de uma pintura de um santinho de Nildão, grafitada no bairro, tempos atrás, com a mensagem “política é o fim, não vote em mim”.
Sob as mais diversas condições os grafiteiros constroem um olhar sobre os rumos da cidade. Os artistas fazem um trabalho de exposição para os cidadãos que usam a série de grafites e pichações como uma “janela indiscreta” da rua. De um lado artistas exibem signos chocantes e criam mensagens sempre renovadas, por outro, o público estabelece uma interação com tais mensagens, o que produz uma chispa de reflexão, mesmo que fugaz.
O olhar do cidadão, que percorre as ruas da cidade, a pé, de bicicleta ou de automóvel, tende a um acionamento rápido perante a contemplação do grafite, podendo ficar apenas no nível do devaneio. O fato de que o grafite está fixado sobre a parede, estendendo-se no plano vertical, compensa a velocidade do transeunte. A mensagem pode não ser entendida numa primeira olhadela, mas, se for o caso, com o tempo e as múltiplas passagens dos que circulam, uma percepção mais completa pode se efetuar.
Um aspecto muitas vezes recorrente que caracteriza a produção atual é que as imagens grafitadas exibem olhos e rostos que se dirigem ao espectador. Uma das mensagens mais frequentes que os grafiteiros e pichadores indicam graficamente é algo assim como:  “fique ligado ...”. Essa indicação pode estar sendo tematizada tanto na atenção a ser dada no campo do amor, da política, da luta pela sobrevivência ou até contra a violência.
Tendo em mente uma mostra dos casos observados na grafitagem, pode-se tentar fazer uma sistematização de dois tipos de olhar que estão pintados nas paredes do bairro. Os olhos inscritos nos muros da cidade, que predominam no bairro do Rio Vermelho podem ser divididos em dois tipos, os de atração e os de repulsão. Os de atração procuram acentuar, por exemplo, a sedução, a beleza e a graça das trocas de olhar. Já o olhar repulsivo reage ao imaginário urbano contemporâneo, denunciando a violência e a vigilância. Os olhos que repugnam podem ser vistos através das caveiras, dos olhos de monstros agressivos e dos olhares que exibem ânsias e medos.
Os tipos de olhos pintados nas paredes e muros da cidade tem um efeito de fluxo e refluxo. De um lado, os olhos grafados pelos artistas nos muros vem emergir da parede para o exterior e atingir o observador. O refluxo, de outro lado, ocorre na ativação do sentido derivado da recepção por parte do espectador. Esse espectador em parte é ativo, em parte passivo. O efeito desse refluxo pode chegar a ser muito agressivo, como é o caso em que o grafite tende a ser vandalizado pelo espectador irritado.
A série de grafites e pichações que está sendo composta por um grupo de artistas, sob diversas condições e recursos variados, está disposta em lugares sob constante de tensões e disputas. Não se trata de um lugar de possibilidades melodicamente ajustadas, mas um bloco espacial ocupado por elementos que se integram, forçosamente, mediante conflitos. No presente momento pré-leitoral, convém alertar, belos grafites estão sendo vandalizados e cobertos por propaganda eleitoral.
Assim, uma parede grafitada ou pichada tem um caráter específico e cria uma reação. Tal como uma série de quadrinhos, os muros grafitados enquadram um fluxo. Com esses exemplos que proliferam nas ruas de Salvador, ao longo do tempo, o urbano vai compondo-se segundo uma narrativa, na qual as paredes do bairro produzem um mapeamento cognitivo de uma experiência coletiva. Esse mapeamento expressa um desejo de produzir e criar. Portanto, a partir de tais imagens, pode-se obter não apenas um sentido de orientação para movimentação no espaço urbano, mas também formas de compreensão da realidade sociocultural mais abrangente.

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