segunda-feira, 24 de setembro de 2012

FCCV - BRINCANDO DE SER TRAFICANTE



 

Leitura de fatos violentos

 publicados na mídia 

Salvador - Bahia - Brasil  

Ano 12, nº 15, 24/09/2012 

BRINCAND
DE SER TRAFICANTE

De longe, se vê pessoas armadas vendendo drogas na boca, em um bairro da capital do Espírito Santo. A polícia se aproxima. De perto, encontra crianças com armas de brinquedo, construídas por elas mesmas com tubos de PVC, amarrados com fitas pretas emborrachadas. Elas portam uma vasilha que lembra uma assadeira retangular na qual se encontram trouxinhas de “droga de mentira”. Estão brincando de ser traficantes.

A notícia circula pelos noticiários de TV do dia 5 de setembro de 2012 em forma de espanto. Ao que parece foi a primeira vez que o jornalismo flagrou este “efeito da droga” em nosso contexto cultural. Não encontrou a cocaína pura, as barras de maconha, as pedras de crack ou o traficante mais procurado do estado.
Desta vez, foi encontrada a droga em estado ritual. As crianças brincam de ser pais, médicos, professores, policiais, advogados, cozinheiros e tantas outras ocupações típicas dos adultos e desempenham papéis correspondentes a estes campos profissionais em dramatizações lúdicas que são consideradas normais pelos adultos, aliás, elas são incentivadas a realizarem o mais verossimilmente possível estas fantasias que contribuem para a incorporação da ordem vigente e, portanto, para a reprodução da mesma.
Sob aplausos, os adultos em miniatura usam ternos, sapatos altos, maquiagem, portam celulares, bolsas de marca, decidem sobre assuntos familiares como a cor e a marca do carro ou o destino da viagem de férias, sobre o colo dos pais dirigem o carro. Ultrapassando a capacidade de brincar de ser adulto, a muitas delas são atribuídas funções de “gente grande” e aí são encontrados casos de crianças-esteios, aquelas que estão por aí, vendendo cocada para turistas, trabalhando para o tráfico ou para outras modalidades de organizações criminosas. Também estão sendo vendidas para casais que se apresentam como consumidores de filhos.
Os múltiplos encaixes abertos às crianças não tiram delas a possibilidade de observar a dinâmica cotidiana, inclusive aqueles aspectos que, para os adultos e para a ordem estabelecida, são reprovados. Assim, mesmo com toda a angústia, é necessário reconhecer a possibilidade de o comércio de drogas inspirar as crianças, afinal, constitui-se um dado visível não apenas nas telas como também nas ruas onde moram famílias com filhos de todas as idades.
O “susto jornalístico” se relaciona com uma inocência, não das crianças e sim dos adultos que aí são representados por experientes repórteres. Todos os dias são publicadas matérias que evidenciam a realização de algumas práticas criminosas nas ruas e, no caso do comércio de entorpecentes, pela própria natureza do empreendimento, há necessidade de se contemplar segredo e publicidade, na medida em que se trata de uma prática criminosa e, como tal deve ser escondida, negada, mas, como atividade comercial, precisa ter um ponto conhecido, uma referência para que seja procurada pelos consumidores. É possível que este esconde-mostra seja objeto de fascínio de crianças que muito cedo sabem distinguir as suas bocas da “boca”. Aprendem, por exemplo, a se calar sobre o endereço da “boca”.
Estranho seria se a meninada não incluísse em suas fantasias os rituais que conhecem na mesma proporção em que desconhecem as férias na Disney. A intimidade com o crime que não tem sido evitado às crianças das áreas mais pobres das grandes metrópoles brasileiras é que deve ser motivo de espanto. O resto, não obstante o amargor e o desencanto são favas contadas. E cabe evidenciar que não se deve atribuir a culpa às crianças: elas são inocentes no duplo sentido. Quando desobedecem as exigências da ordem estão fazendo travessuras e quando teatralizam o crime no meio da rua não se imaginam alvo de repressão.


Cabe ao Estado reconhecer que a naturalização do crime assume em nosso contexto a condição de aprendizado que começa como brincadeira com paus, canos, fita elástica, assadeira de bolo e trouxinhas de plástico cor de rosa cheios de pó de chocolate.


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