terça-feira, 22 de setembro de 2015

ANDRÉ CARAMURU AUBERT - POESIA.NET - S PAULO



poesia.net 339 - André Caramuru Aubert
Número 339 - Ano 13
São Paulo, quarta-feira, 16 de setembro de 2015
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«As leis não bastam. Os lírios não nascem / da lei.».
 
 
Dias de outubro e dezembro
André Caramuru Aubert
 
 
André Caramuru Aubert
André Caramuru Aubert

Amigas e amigos,
Já tive a oportunidade de dizer aqui no poesia.net — não me lembro bem onde nem quando — que considero a poesia uma atividade semiclandestina. Um exemplo disso ocorreu entre mim e André Caramuru Aubert, autor destacado neste boletim.


Conheci Caramuru (na época, se não me falha a memória, ele não assinava o Aubert) no jornalismo, no início dos anos 90. Eu era editor de uma revista de tecnologia digital e ele, colaborador, responsável por uma coluna sobre computadores Apple.


A coluna deixou de ser publicada, e nos perdemos de vista. Nunca me passara pela cabeça que aquele colunista, conhecedor de computadores Macintosh, alimentasse qualquer interesse por literatura, muito menos por poesia. O mesmo valia da parte dele em relação a mim.


Reencontrei-o este ano, durante o lançamento de um livro — de poesia, claro. Fiquei sabendo que ele também daria a público em breve um livro de... poesia. Contei-lhe que editava um boletim de poesia e que também havia acabado de lançar uma coletânea. O espanto foi mútuo. Éramos poetas clandestinos.
•o•

André Caramuru Aubert é paulistano, nascido em 1961. Historiador, tradutor e editor, ultimamente colabora no jornal literário Rascunho, no qual apresenta e traduz poetas estrangeiros. Prosador, Caramuru publicou os romances A Vida nas Montanhas, A Cultura dos Sambaquis e Cemitérios, todos pela Editora Descaminhos, especializada em livros digitais.
•o•

outubro / dezembro, o primeiro livro de poemas de André Caramuru, divide-se em três partes: “outubro”, “dezembro” — já anunciadas no título — e, como se fosse um CD musical, uma terceira chamada “bônus tracks”. As duas primeiras, fazendo jus aos nomes, contêm 31 poemas cada, cujos títulos se organizam como os dias daqueles dois meses, de 1 a 31. Na parte adicional, são apenas dez poemas, também numerados sequencialmente.

Para a pequena amostra de poemas ao lado, selecionei três “dias” de outubro e quatro de dezembro. Desde a estrutura calendárica, percebe-se que a coletânea de André Caramuru busca uma forma de abraçar o tempo, dando conta de acontecimentos miúdos, extraídos da memória ou observados em casa, na rua, no supermercado — enfim, na vida cotidiana.

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OUTUBRO

O primeiro poema da seção "outubro", “4. tempo”, provém da memória. Desenha um quadro no qual a avó “tenta segurar o tempo, que escorre entre seus dedos”. Em “11. domingo”, o narrador, enfastiado e sozinho em casa, “olha o tempo passar”. A nota que se destaca na “vida besta” desse domingo é o rugido distante de uma motocicleta.

“22. poema” é como uma anotação: algo que o narrador não disse à amada, e perdeu definitivamente a oportunidade de fazê-lo. Como se vê, as questões são diminutas, pedestres e nunca se levantam do chão. Nenhuma dúvida ou anseio transcendental, nada que se arvore a criar asas e saltar do trivial para o épico, ou mesmo para o sentimentalismo rasgado.

Para manter esse tom estudadamente menor, os poemas de André Caramuru são sempre prosaicos. Prosa, mesmo. Não há metáforas, nem mesmo outra figura de linguagem que confira ao discurso alguma nuance mais sublime. Trata-se de uma poesia que deseja permanecer no chão. Neste aspecto, torna-se clara a vinculação do poeta à produção lírica americana, muito marcada pela linguagem direta e completamente destituída de ênfase.

•o•
DEZEMBRO

Os dias de “dezembro” não são muito diferentes. “6” descreve uma caminhada pelas ruas de São Paulo e traz para o primeiro plano, como objeto de observação, uma mulher de pele muito branca — característica que conduz o narrador a concluir que ela mora num apartamento onde “quase não deve bater sol”. Mais uma vez, vidas miúdas, registros banais.

Em “17. p/b” é a memória que retorna. O narrador se põe a pensar por que certos episódios de suas lembranças ficaram registrados em preto e branco (o p/b do título). No dia seguinte, “18. celebrar a vida”, misturam-se cenas cotidianas a informações do noticiário. No primeiro movimento, o narrador acorda e se sente péssimo, “com a cara de Muamar Kadafi” — não o jovem, mas o derrotado e massacrado Kadafi. Resolve, então, sair para “celebrar a vida”. Entra num supermercado. Ironia nada sutil: então o supermercado é o lugar para “celebrar a vida”?

No centro de compras, vem uma exaustiva sequência de ofertas, preços, listas de produtos, “pacotes com doze unidades, pague onze”. Incrivelmente, o espaço mercantil e a música ambiente transformam o ex-malogrado Kadafi em alguém confiante, que sente “o privilégio de estar vivo”. Milagre! Outra ironia: até mesmo a música tocada no supermercado, não por acaso duas canções de contestação — “Samba de Orly” (Chico Buarque/ Toquinho/ Vinicius de Moraes) e “Get Up, Stand Up” (Bob Marley) — passam a funcionar, ao contrário, como elementos anestesiantes dentro da equação que iguala felicidade a consumo.

O último poema de dezembro mostrado aqui é “30. autocrítica”. Num texto que tem todo o jeito de lamentação e confissão de fracasso, o poeta faz na verdade uma profissão de fé. Com ácida ironia dirigida a autores clássicos, letristas da MPB, concretistas e surrealistas, ele na verdade afirma sua crença no tipo de poesia que escreve — aquela que segue os mesmos padrões dos poetas americanos que lê e traduz.

Não é à toa que, no prefácio de outubro / dezembro, o poeta Alberto Bresciani associa a poesia de André Caramuru Aubert à do americano William Carlos Williams, um dos pioneiros dessa poesia despojada, reduzida ao osso. Diz Bresciani: “Os dois poetas, convictos, dispensam efeitos especiais de última geração, selecionando cuidadosamente as palavras, as mais descomplicadas, para nomear o mundo”.

Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado
•o•




LANÇAMENTOS


Cada bicho com seu capricho
• 
Carlos Machado, poemas
• Geraldo Valério, ilustrações
 




Steve Mills- Steve Mills (1959), pintor fotorrealista americano, De pé (2008)





|------> Três dias de "Outubro"



4. tempo

no jardim interno da casa de interior,
repleto de folhagens coloridas
minha avó sentada, na cadeira de vime
tomando sol; um sol tépido de outono,
vestida com uma camisola de flanela quadriculada,
vermelha, branca e amarela, ela
tem os óculos de leitura dependurados por uma correntinha e
com uma das mãos segura um pedaço do jornal do dia, que não lê, e
com a outra tenta segurar o tempo, que escorre
entre seus dedos, mas não consegue.



Steve Mills- Steve Mills, Jarras de luz (2001)

11. domingo


enjaulado nesta sala, neste apartamento
neste domingo ensolarado de céu muito azul
eu olho o tempo passar
sem ter o que fazer, para quem ligar
pego uma cerveja na geladeira e
lá fora, longe, uma motocicleta ruge, quebrando o silêncio
eu vou até a janela
e olho.


Steve Mills- Steve Mills, Náutica



22. poema

                 para Clélia

Eu deveria ter dito
que os seus olhos castanhos
resumem, neles, tudo o que há no Universo,
tudo mesmo, toda a magia, o espaço e o tempo, a
                             [  energia, a música, tudo,
mas eu não disse
(talvez por ser tímido, ou por acreditar que a frase sairia
                             [ forçada e artificial),
e o momento passou.
Steve Mills-
Steve Mills, Xadrez chinês (2003)





|------> Dias de "Dezembro"


6.

7:30 da manhã, céu azul, e eu subo, distraído,
a escadaria do viaduto, e estou na Teodoro Sampaio, indo
tirar dinheiro no caixa-eletrônico, logo ali adiante (duzentos metros);
as pessoas
já se movimentam pela rua, vão
e vêm, o ponto de ônibus está repleto, a
banca de frutas vai sendo armada, e
de dentro de uma galeria sombria e profunda como uma gruta, sai uma mulher
que tem a pele muito branca,
e eu fico imaginando que o apartamento onde ela mora
provavelmente tem vista para o prédio ao lado, e na sala e nos quartos,
é certo,
quase não deve bater sol.
Steve Mills-
Steve Mills, Não lidos




17. p/b

será por causa das fotos, que as memórias da infância às vezes vêm em preto e branco?
que me vem em preto e branco o mundo que eu via, da janela do banco de trás do Gordini marrom, que numa longínqua tarde de domingo subia resfolegante a Anchieta, na volta de Santos?
que me vêm em preto e branco: o cheiro de queimado, o motor fervendo, a fumaça, o carro parado no acostamento, e
eu sentado, ali, numa pedra, olhando, pensando, esperando o tempo passar, enquanto meu pai, gringo, alto, de bermuda cáqui e camisa xadrez abria a tampa do motor, do qual ele nada entendia, e coçava a
           cabeça, enquanto a mulher dele, de vestido florido, óculos escuros e lenço na cabeça, lamentava aquilo tudo?
daquele domingo não restaram fotos, por que será que estas imagens vêm para mim, agora, em preto e branco?



Steve Mills- Steve Mills, Canetas e lápis (1995)



18. celebrar a vida

acordo, vou ao banheiro. olho meu rosto no espelho, me
         assusto: estou inchado, os olhos injetados, pareço
         Muamar Kadafi, estou com a cara de Muamar
         Kadafi, e não é o Kadafi jovem, confiante, cercado
         por um batalhão de seguranças altas, belas e
         búlgaras, mas aquele do fim, que apareceu na TV,
         perseguido, assustado, capturado num buraco de
         esgoto e linchado sem piedade. é este Kadafi que o
         espelho me mostra hoje.

vou para a rua, vou celebrar a vida. agora estou neste
         lugar, e meu carrinho prateado brilhante trisca o
         piso brilhante, avança, corre, derrapa nas curvas.
         as prateleiras brilham e eu celebro a vida. café do
         ponto a 9,99. antigamente batia um cheiro gostoso
         de pó de café quando eu passava por aqui, não
         mais, agora eles embalam a vácuo. não posso me
         esquecer do requeijão, do detergente de pia.
         oferta: camarão congelado a 39,49; isto é oferta?
         as prateleiras brilham. um casal de velhinhos
         presta muita atenção nos preços e discute
         sobre cada produto. será que a vida toda, deles, foi
         assim? oferta: azeitona verde fatiada 155 gramas a
         6,99. sou feliz. esqueço minha cara de Kadafi.
         oferta: papel higiênico neve, pacote com doze
         unidades, pague

onze, por 14,39. água de coco, vinho, achocolatados.
         oferta: cerveja importada irlandesa a 9,50. fico
         tentado mas não levo. ofertas: pão integral light,
         macarrão italiano de grão duro, abóbora japonesa
         descascada. sinto, em minhas entranhas, o
         privilégio de estar vivo. a música me embala e me
         conduz. eu derrapo nas curvas, eu batuco no
         carrinho prateado. Chico Buarque manda que o
         irmão pegue o avião, Bob Marley manda que eu me
         levante e me erga.



Steve Mills- Steve Mills, Começando de novo (2004)



30. autocrítica

eu sempre sonhei escrever um poema longo, imponente e
         épico, nem que não fosse, vá lá, como a Odisseia, a
         Divina Comédia, os Lusíadas, o Eugene Onegin ou,
         ainda, o Fausto. Mas que quando alguém lesse
         pudesse dizer, ah, este moço se inspirou no Cobra
         Norato, ou nos Cantos, ou no Waste Land, talvez no
         Patterson, quem sabe no Poema Sujo, ou ainda na
         Morte e Vida Severina, nas Dream Songs, ou no The
         Morning of the Poems.

eu também pretendi compor poemas como as canções tão
         lindas que os brasileiros criam, poemas que
         saíssem leves e líricos, falando de barquinhos que
         vão e vêm, de pegar trens azuis e de lugares onde
         o imperador fez xixi.

e teve uma época em que eu queria, como os poetas
         concretos, usar tesoura, cola e xerox e formar
         quadrados, círculos labirínticos e imagens de efeito
         com as letras e as palavras, mas

depois desisti, embora nunca tenha abandonado o desejo
         de saber redigir poemas meio surrealistas, meio
         vagos e pouco claros até mesmo para mim, tão na
         moda, tão em uso, daqueles que são mais ou menos
         desse jeito: pássaros voam, rios de fogo / a boneca
         estraçalhada / asfalto / luz / o que há? a moça
         pálida atravessa a rua, o velho / o que há? a vida /
         de dentro do buraco o bueiro me olha nos olhos /
         meus dentes apodrecem e caem / o sobrevoo.

no fim das contas, o que eu gostaria mesmo era de poder
         escrever poemas que impressionassem as pessoas,
         que as comovessem e as deixassem sem fôlego;
         que as levassem a rir de tristeza e a chorar de
         alegria; que fossem o sinônimo da arte em sua
         mais pura realização; e que, o mais importante,
         fizessem com que os homens (sofridamente) me
         invejassem, e as mulheres (ardentemente) me
         desejassem...

ah, eu queria tanta coisa! nada disso, porém, eu consigo;
         limitado que sou, só faço poemas sobre os meus
         fantasmas, e os danados teimam em ser simples,
         concisos, piegas e até (fazer o quê?) meio sem
         graça.

que pena.

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