Número 337 - Ano 13 |
São Paulo, quarta-feira, 5 de agosto de 2015
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«Nenhum tempo passou /
desde os cajás /
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Afonso Felix de Sousa
Máscaras de gosto e desgosto
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Afonso Felix de Sousa
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Giorgio de Chirico, italiano, Orfeu Trovador Cansado (1970)
[NOS RECANTOS TRANQUILOS ENCONTRAVA]
Nos recantos tranqüilos encontrava a poesia. Sobre mim e o rio debruçavam-se as árvores. Os pássaros eram ecos nos seus primeiros cantos.
Ruas de chuvas leves, nunca o inverno. Com o menino brincar vinham as tardes e vinha o céu. Adeus, nuvens cinzentas onde vagam os monstros meus da infância.
Já não vibram as músicas ingênuas na planície escutadas. A poesia difícil se tornou e vive em sombras.
Em mim que tanto amei hoje às palavras movem-se para ásperas mensagens e vão morrer na incompreensão dos gestos.
De Chirico, São Jorge Matando o Dragão (1940)
ESCRITO NA AREIA
De água somos. E pó. E choro. E riso. E há um sol que arde em nós. O sol aviva o chão, o chão que piso E nós pisamos. Sós.
De Chirico, Retrato de Clarice Lispector (1945)
TROCADERO, 1955
Enquanto eu te esperava, enquanto se desfazia a espuma no copo de cerveja, eu ia escrevendo palavras sem sentido e nenhum nexo numa folha de papel que, como a recortar um lagarto cujos pedaços continuassem teimosamente vivos, rasguei em pedacinhos, cada um deles com uma letra e cada sequência de letras, como se num sonho ou num poema dadaísta, dando um sentido ao que dentro e fora de mim se passava e se resumia num grito mudo de quem se despede e sabe que está se despedindo para sempre, e sabe também que numa despedida pedaços de nós como que amputados se destacam e vão ficando teimosamente vivos pelo caminho.
De Chirico, Pranto de Amor - Heitor e Andrômaca (1974)
MÁSCARAS
A vida nos põe no rosto máscaras de gosto e desgosto que o tempo afoga em espelho sem nexo e sem tamanho onde fica o reflexo do rosto de um estranho que se interroga
De Chirico, Piazza d'Italia (1913) TARDIA ELEGIA PARA SYLVIA PLATHSem bater à porta chego à soleira do teu delírio
Sem lira ou lírio feito um verme faminto me adentro por teus olhos e roubo e roo visões que se desfazem e se refazem e te apavoram e te alimentam enquanto vão te lambendo as línguas geladas da morte
Línguas do inferno oh the tongues of hell
Traduzo-te as palavras e o que há por trás das tuas palavras (What does it mean?) e sinto-te bela como se estivesse entrevendo
numa rua de Londres no outono de mil novecentos e cinqüenta e nove e próxima como se nos amássemos há três dias há três noites há milênios
Enquanto te traduzo línguas do inferno chegam às soleiras do coração da mente
Querem lamber-me e queima-me a tua febre e molha-me o suor de tua pele e tudo o que vês e deixas de ver e eu vejo de dentro de teus olhos vai-se cobrindo das cinzas de Hiroshima.
De Chirico, O Canto de Amor (1914)
50 ANOSProssegue o jogo mas já de cartas marcadas a ferro e fogo.
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Amigas e amigos,
Nascido em Jaraguá-GO,
Afonso Felix de Sousa (1925-2002)
foi poeta, cronista, jornalista e tradutor.
Publicou seus primeiros poemas em
jornais goianos no início dos anos 40.
Mudou-se para o Rio de Janeiro em 1947
e em seguida para Brasília, em 1962.
Profissionalmente, foi economista,
funcionário do Banco do Brasil,
jornalista do Diário Carioca e adido
comercial da embaixada brasileira em
Beirute, Líbano.
Sua estreia em livro se dá em 1948, com o livro
O Túnel, publicado no Rio de Janeiro.
Daí seguiu-se mais de uma dezena de
títulos, dos quais o último foi Chamados
e Escolhidos, reunião de poemas
publicada em 2001.
Afora a poesia autoral, Afonso Felix de Sousa
traduziu autores como o espanhol
Federico García Lorca (Romanceiro Gitano,
1957; Sonetos do Amor Obscuro e Divã do
Tamarit, 1988); o inglês quinhentista John
Donne (Sonetos de Meditação, 1985); e o
francês quatrocentista François Villon
(Testamento, 1987). Nota-se, portanto,
que o poeta dominava vários idiomas.
No plano pessoal, Afonso Felix de Sousa
foi casado com a também poeta e contista
amazonense Astrid Cabral.
•o•
Os poemas de Afonso Felix mostrados
aqui foram todos retirados do volume
Chamados e Escolhidos. Abre a seleção
o soneto “[Nos recantos tranquilos encontrava]”,
publicado originalmente na seção “Sonetos
Elementares” do primeiro livro do poeta, O Túnel.
Lírico e saudoso, esse texto constrói-se com base
nas recordações de infância do poeta.
“Com o menino brincar vinham as tardes /
e vinha o céu”.
Vem a seguir o quarteto “Escrito na Areia”,
integrante do livro À Beira de Teu Corpo (1988).
Aqui o poeta reflete sobre a condição humana e a
essencial solitude de cada indivíduo. “Trocadero,
1955” aparece na seção Poemas Dispersos, em
Chamados e Escolhidos. O texto parece registrar
uma impressão despertada por uma lembrança da
famosa Praça do Trocadero, em Paris.
É a indagação existencial, mais uma vez, que perpassa
os versos de “Máscaras”. O ser humano diante do
espelho e um feixe de perguntas inevitáveis.
Quem sou? Quem é esse estranho que vejo no reflexo?
“A vida nos põe no rosto / máscaras de gosto e desgosto”,
diz o poeta.
Em “Tardia Elegia para Sylvia Plath”, do livro
Quinquagésima Hora (1987), a pessoa que fala
dirige-se à poeta suicida e tenta penetrar na mente
dela e aproximar-se de suas angústias e delírios.
Vem, por fim, o poema “50 anos”, que dá um
tratamento sumaríssimo, de haikai, ao tema do natural
declínio do corpo após a quinquagésima rotação em
torno do sol. A partir daí, o jogo da vida se assemelha
a uma trapaça, porque já se sabe claramente quem
sairá vencedor. Um abraço, e até a próxima.Carlos Machado
•o•
LANÇAMENTO
Tesoura Cega • Carlos Machado Convido os amigos de Salvador
para o lançamento de meu novo
livro de poesia, Tesoura Cega,
publicado pela Dobra Editorial.
Quando: Sábado, 22/08/2015, das 10h às 13h
Onde: Livraria JHANA Shopping Boulevard 161 Rua Anísio Teixeira, 161 Salvador - BA Tel: (71) 3358-7416
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poesia.net www.algumapoesia.com.br Carlos Machado, 2015
Afonso Felix de Sousa
* In Chamados e Escolhidos
Record, Rio de Janeiro, 2001
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* Lenilde Freitas, "A Castro Alves", em Tributos (1994)
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- Imagens: trabalhos deGiorgio de Chirico (1888-1978), pintor italian
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