Em Terça-feira, 19 de Novembro de 2013 23:34, Carlos Machado escreveu:
Número 298 - Ano 11 |
São Paulo, quarta-feira, 20 de novembro de 2013
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Carmen Miranda convida
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MARTELO
O braço de pedra ergue um martelo de pedra e sonha descer sobre si mesmo.
Quando a busca é indecifrável — ... fica apenas um percurso.
O que um dia foi apreendido com paixão sobrevive como ponto de vista.
Ser tanto o autor desta estátua como a própria estátua.
HAMMER
The stone arm raising a stone hammer dreams it can descend upon itself.
When the quest is indecipherable, — ... what is left is a career.
What once was apprehended in passion survives as opinion.
To be both author of this statue, and the statue itself.
Paul Klee (1879-1940), suíço-alemão,
Em Torno do Peixe
CANÇÃO
Você sabe que é ali a toca onde o urso por algum tempo deixa de existir.
Entre. Afinal, você matou bastante e comeu bastante para ficar gordo o bastante e por algum tempo deixar de existir.
Entre. É preciso talento para viver à noite, e esconder dos outros esse talento, mas agora você fareja a temporada em que é preciso deixar de existir.
Entre. O que cresce dentro de você, para o bem ou para o mal, exige que por algum tempo você deixe de existir.
Não está chovendo lá dentro esta noite. Você sabe que é lá. Rasteje e entre.
SONG
You know that it is there, lair where the bear ceases for a time even to exist.
Crawl in. You have at last killed enough and eaten enough to be tat enough to cease for a time to exist.
Crawl in. It takes talent to live at night,
and scorning
others you had that talent, but now you sniff the season when you must cease to exist.
Crawl in. Whatever for good or ill grows within you needs you for a time to cease to exist.
It is not raining inside tonight. You know that it is there. Crawl in.
Paul Klee, Vista de St. Germain
ESTROFES TERMINANDO COM AS MESMAS DUAS PALAVRAS
Primeiro, me senti receoso porque havia entrado pela porta que dizia Tua Morte.
Nenhuma palavra de valor se desentranhava de tua morte.
És a ruína cujo braço enlaça a mulher jovem no bar póstumo, antes de tua morte.
Acima de ti, a grama ainda está faminta, alimentada por tua morte.
Mata quem matou teu pai, disse tua vida voltando-se de novo para mim antes de tua morte.
Difícil envelhecer e manter a fome. Ainda tinhas fome na hora de tua morte.
STANZAS ENDING WITH THE SAME TWO WORDS
At first I felt shame because I had entered through the door marked Your Death.
Not a valuable word written unsteeped in your death.
You are the ruin whose arm encircles the young woman at the posthumous bar, before your death.
The grass is still hungry above you, fed by your death.
Kill whatever killed your father, your life turning to me again said before your death.
Hard to grow old still hungry. You were still hungry at your death.
Paul Klee, Com o Sol Se Pondo
INJUNÇÃO
Como se os nomes que usamos para nomear os usos de prédios fossem raios x de nossas almas, guerra sem fim:
Palácio. Prisão. Igreja. Escola. Mercado. Teatro. Bordel. Banco.
Guerra sem fim. Porque nomear é possuir os sonhos de estranhos, que profanam
a igreja, que pede a extinção do bordel, agora teatro, agora escola; a escola despreza igreja, palácio, mercado, banco; o banco ao
recusar-se a nomear seus correntistas dá boas-vindas a todos, embora prisioneiros raivosos tentem a cada noite reduzir a pó mais uma pedra sob o palácio.
Guerra sem fim. Por conseguinte tempo após tempo;
Rasgue o tecido. Pregue-o. Não na parede. Rasgue através
da parede. Lá fora,
o tempo. Pregue-o.
INJUNCTION
As if the names we use to name the uses of buildings x-ray our souls, war without end:
Palace. Prison. Temple. School. Market. Theater. Brothel. Bank.
War without end. Because to name is to possess the dreams of strangers, the temple
is offended by, demands the abolition of brothel, now theater, now school; the school despises temple, palace, market, bank; the bank by
refusing to name depositors welcomes all, though in rage prisoners each night gnaw to dust another stone piling under the palace.
War without end. Therefore time past time:
Rip through the fabric. Nail it. Not to the wall. Rip through
the wall. Outside
time. Nail it.
De Star Dust (2005)
Paul Klee, Anatomia de Afrodite
FOME DO ABSOLUTO
A Terra você sabe é redonda mas parece chata.
Você não pode confiar nos sentidos.
Você pensa que já viu todo tipo de criatura porém não
esta criatura.
* Quando o conheci, sabia que
me havia desmamado de Deus, não da fome do absoluto. Ó boca
insaciável pronunciando o que é e deve permanecer inapreensível —
dizendo Você não é finito. Você não é finito.
HUNGER FOR THE ABSOLUTE
Earth you know is round but seems flat.
You can't trust your senses.
You thought you had seen every variety of creature but not
this creature.
* When I met him, I knew I had
weaned myself from God, not hunger for the absolute. O unquenched
mouth, tonguing what is and must remain inapprehensible —
saying You are not finite. You are not finite.
Paul Klee, Mulher Acordando
RIO
Estou aqui para consertar a porta.
O uso quase a destruiu. O desuso faria o mesmo efeito.
Não, você não está confuso, você não telefonou. Quem telefona ainda tem esperança.
Você crê que até hoje viveu sem a necessidade de portas.
Carmen Miranda na TV convida você para o Rio.
Vá dormir enquanto conserto a porta.
RIO
I am here to fix the door.
Use has almost destroyed it. Disuse would have had the same effect.
No, you’re not confused, you didn’t call. If you call you still have hope.
Now you think you have lived past the necessity for doors.
Carmen Miranda is on the TV, inviting you to Rio.
Go to sleep while I fix the door.
Paul Klee, Conquistador
SONHO REVELA EM NEON OS GRANDES VÍCIOS
AMOR e seu simulacro, sexo.
As palavras, como uma fogueira em caixa de vidro, reluziram no horizonte.
PODER e seu simulacro, dinheiro.
FAMA e seu simulacro, celebridade.
DEUS, sucedido pelo que sobrevive à fé, o desejo de ser
Santo.
Semeia as tuas obsessões, elas são os vícios que tentam tua alma.
Depois, vendo a palavra ARTE, acordei.
* Recusaste amor, poder, fama, santidade, tua tática, como a do modesto
César, é fingir indiferença e recusa. És adicto do que não podes possuir.
Não sabes dizer se os vícios, segredos, narcóticos
arruínam ou ampliam a mente com a qual apreendes o mundo.
DREAM REVEALS IN NEON THE GREAT ADDICTIONS
LOVE, with its simulacrum, sex.
The words, like a bonfire encased in glass, glowed on the horizon.
POWER, with its simulacrum, money.
FAME, with its simulacrum, celebrity.
GOD, survived by what survives belief, the desire to be
a Saint.
Seed of your obsessions, these are the addictions that tempt your soul.
Then, seeing the word ART, I woke.
*
Refused love, power, fame, sainthood, your tactic, like that of modest
Caesar, is to feign indifference and refusal. You are addicted to what you cannot possess.
You cannot tell if addictions, secret, narcotic,
damage or enlarge mind, through which you seize the world.
De Metaphysical Dog (2013)
Frank Bidart
Caros,
Tomei conhecimento do poeta americano Frank Bidart por acaso. Alguns anos atrás, li no New York Times a resenha de um livro dele. Lá, o resenhista citava um poema que me impressionou muito. Recentemente, li sobre novo lançamento de Bidart, e acabei adquirindo dois livros dele: Star Dust (2005) e Metaphysical Dog (2013).
Nascido na Califórnia em 1939, Frank Bidart é professor de inglês no Wellesley College, em Boston. Estudou na Universidade da Califórnia e em Harvard, onde se tornou aluno e amigo de poetas como Robert Lowell e Elizabeth Bishop. Estreou em 1973 com o volume Golden State, que passou em branco. Só dez anos depois, com o livro The Sacrifice, ele começou a conquistar maior atenção da crítica e dos leitores.
Uma curiosidade: ganhador de vários prêmios importantes, Bidart é, até agora, o autor do único folheto que se tornou finalista do Prêmio Pulitzer (Music Like Dirt, 2002). Depois, os catorze poemas desse opúsculo foram incluídos como uma seção do livro Star Dust.
Elogiadíssimo pela crítica, Frank Bidart já escreveu poemas assumindo o ponto de vista de diferentes personas, como “Ellen West”, mulher portadora de uma doença do aparelho digestivo, ou “Herbert White”, um psicopata. Homossexual assumido, o poeta também produz textos confessionais, sobre seus sentimentos ou sobre sua família. Em Metaphysical Dog, por exemplo, ele cita uma avó espanhola racista que não deixou a mãe de Bidart se casar com um médico libanês por ele ter a pele "muito escura".
•o•
Tanto quanto sei, o trabalho de Frank Bidart nunca foi divulgado amplamente no Brasil. Na internet, não consegui localizar nenhuma menção a ele em site de língua portuguesa. Então, com os dois livros de Bidart na mão, decidi arriscar-me na tradução de alguns dos poemas. Transcrevo ao lado sete deles com minhas tentativas de tradução.
Traduzir, naturalmente, é uma tarefa espinhosa. Veja-se, por exemplo, o caso do poema “Canção” (Song). Ao longo do texto, o poeta repete a expressão Crawl in como se fosse um refrão. Dois monossílabos e um imperativo: rasteje para dentro, engatinhe para dentro (da toca de urso). Não há como dizer isso em português de forma tão breve. Optei então por usar, no corpo do poema, o comando “Entre”. Só na última frase usei uma forma mais extensa: “Rasteje e entre”.
Outra reiteração no texto está na expressão cease to exist (deixar de existir). Bidart aprecia esse procedimento. No poema seguinte ele aparece no próprio título: “Estrofes terminando com as mesmas duas palavras”. Aqui, as palavras são “tua morte” (your death). Um detalhe: “Estrofes...”, assim como “Martelo” e “Injunção” são poemas que originalmente integravam o folheto Music Like Dirt. Esse título, segundo nota do autor, é o refrão de uma música do cantor e compositor de reggae jamaicano Desmond Dekker (1941-2006).
Escolhi o poema “Rio” pela sua estranheza e, obviamente, pela referência ao Rio de Janeiro e a Carmen Miranda. Trata-se de uma cena em que alguém, que não foi chamado, chega a uma casa dizendo: “Estou aqui para consertar a porta”. Nada se esclarece nem sobre o suposto prestador de serviço nem sobre o dono da casa. Não se sabe sequer se há problema na porta, nem que porta é essa. Um pequeno episódio trivial e absurdo.
O último texto é “Sonho revela em neon os grandes vícios”. Aí alguém sonha, acorda e depois analisa suas próprias atitudes diante do sonho. Uma peça freudiana. Neste poema, Frank Bidart lança mão de dois recursos comuns em seu trabalho. O primeiro é o uso de letras maiúsculas para enfatizar a leitura de certas palavras. No caso, AMOR, PODER, FAMA, DEUS e ARTE. O segundo recurso também situa-se no campo das marcações gráficas: trechos em itálico sinalizam a presença de outra voz, ou outro ambiente. Aqui, os letreiros em neon aparecem no sonho.
Um abraço, e até a próxima,
Affonso Manta • Antologia PoéticaDica para quem estiver em Salvador no próximo dia 28. O poeta Ruy Espinheira Filho (org.) lança a Antologia Poética de Affonso Manta (1939-2003), obra apresentada pelo poesia.net naedição anterior. O livro foi publicado pela Academia de Letras da Bahia com o patrocínio da Assembleia Legislativa do Estado.
Data: 28/11, quinta-feira Hora: 18h00 Local: Academia de Letras da Bahia Av. Joana Angélica, 198 - Nazaré Salvador - BA
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