Número 297 - Ano 11 |
São Paulo, quarta-feira, 6 de novembro de 2013
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«Que mistério há na carne? /
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Eu sou a roupa do crepúsculo
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LÁ VAI AFFONSO MANTA
Com estrelas na testa de rapaz, Com uma sede enorme na garganta, Lá vai, lá vai, lá vai Affonso Manta Pela rua lilás.
Coroa de alumínio sobre o crânio, Lapelas enfeitadas de gerânios E flechas no carcás.
Manto florido de madapolão, Bengala marchetada de latão, Desfila o marechal,
O rei da extravagância, o sem maldade, O campeão da originalidade, O peregrino astral.
(CM)
Arshile Gorky, americano-armênio,
Jardim de Sochi
O CAVALHEIRO SEM ANÉIS
Quando me visto de pôr-do-sol, Os anjos ficam loucos. Sobem nos trapézios de vidros E saem a girar...
Girar...
Sou o Cavalheiro sem Anéis. Sou órfão dos colarinhos de antigamente. Minha voz se perdeu nas listras do arco-íris. Meu sorriso nas cordas de um violino. Sou o Cavalheiro sem Anéis. Eu sou a própria roupa do crepúsculo.
Nem o vento sabe onde vou dormir.
(CMP)
O PRÍNCIPE LOUCO
para Ângelo Roberto
Acendeu uma rosa na cabeça E saiu a dançar, iluminado, Aquelas valsas tristes do passado, Dizendo: "Que a aflição desapareça!
Eu sou a profecia que não erra. Eu sou o rei ungido e coroado Eu vou fazer o sol ficar parado. Eu vou inaugurar a paz na terra.
Eu, o príncipe louco da Bahia, Vou restabelecer a monarquia, Num transe de poesia verdadeiro".
E foi pela cidade a declamar: "Algum dia o sertão vai virar mar!" Como se fosse Antonio Conselheiro.
(CMP)
Arshile Gorky, Organização
RETORNO
O seio da mãe que simboliza o
Carlos Anísio Melhor:
"Elegia a Hart Crane"
Nasceram-me gaivotas nos sentidos E, todo iridescente, fui ao mar Buscar a vida e o sonho milenar, Que jazem sob as águas esquecidos.
A luz da madrugada singular Banhava os areais adormecidos. E os ventos eram cães enlouquecidos Uivando nos rochedos ao luar.
Eu me elevei ao mais alto rochedo E, sem medir efeitos e sem medo, Gritei uma palavra ritual.
O mar abriu-se, então, de lado a lado. E eu mergulhei no abismo sossegado. Como quem volta ao seu país natal.
(CMP)
CAIS
para Gato
Eu vou amanhecer no cais da aurora, Com as minhas longas roupas de fumaça, Para encontrar meu coração que chora Por todos os caminhos onde passa.
Eu vou encher de vinho minha taça E bebê-la na mais propícia hora Até que o meu espírito se faça Risonho e colorido como a flora.
Na popa de um saveiro luminoso, Vou conhecer o cenário formoso Das ilhas do Recôncavo singelo.
E, quando na tardinha eu regressar, Verei o pôr-do-sol cair no mar De cima do fortim de São Marcelo.
(CMP)
O APRENDIZ
Sou pobre realmente. Tenho apenas algumas folhas de papel na alma E uma vontade — digamos, mansa — De hipnotizar borboletas. Oue coisa sei da vida? Pouca coisa sei da vida. O bastante para não correr.
(RP)
Arshile Gorky, Agonia
QUANDO ESTA NOITE PASSAR...
Quando esta noite passar Com sua carga de treva, Com seu espesso veludo Que te incomoda e te enerva,
A ti que estás todo preso Numa sinistra gaiola, Comendo o alpiste do dono Do mundo que te viola;
Quando passar esta noite Com seus frios caracóis De angústia e desesperança, Praga dos que vivem sós,
Quando esta noite passar, Faz teu canto na manhã, Que todo dia traz luz, E não é vã, não é vã...
(RP)
O REI DOS LÍRIOS O rei dos lírios quer me ver feliz E que eu desfrute de um prazer sem fim. Ele me deu cem mil maravedis E comprou um castelo para mim.
O rei dos lírios quer me nomear Embaixador no reino do Sião Para que eu possa lá me consolar Do tédio que corrói meu coração.
O rei dos lírios disse que vou ser Um nobre em sua corte sideral, Com direito a fazer e acontecer. Livre de tudo que me cause mal.
E vai me dar, em bom jacarandá, Uma cama onde eu possa dormir bem E esquecer esta angústia que em mim há. E por todos os séculos. Amém.
(RP)
ESSA MULHER
Essa mulher que paira docemente Nos meus sonhos de amor tão erradios; Essa deusa de lindos amavios, Que me seduz o coração e a mente;
Essa ninfa dos prados e dos rios, De rosto angelical e olhar ardente; Essa do brilho místico e inocente Estrela d'alva nos meus céus vazios;
Essa que me fez cartas delicadas, Com frases meigas, como as namoradas, E com doce emoção, como as amantes;
Essa mulher é como se uma aurora Me iluminasse pela vida afora E me sorrisse todos os instantes.
(CMP)
SETE
Sete colinas, sete serranias, Sete montes de olvido e de quimera, Sete neuroses e esquizofrenias, Sete luzes no céu da primavera.
Sete cores do prisma, sete dias, Sete anjos anunciando o fim da era, Sete dores mortais, sete agonias, Sete palmos de chão à nossa espera.
Sete livros secretos da doutrina, Sete passos na estrada peregrina, Sete cidades lá no Piauí.
E tu, que foste em mim sete moradas, E és agora somente as punhaladas Das sete angústias que sofro por ti.
(CMP)
DE UM RABISCO
Há que deixar em paz o poema. Ou o poema nos afeta. O poema há de ser perfeito. Ou ele come o poeta.
(CC)
Arshile Gorky, Retrato de Ahko
CRIAÇÃO
Crie canários verdes na varanda Onde os meninos brincam de ciranda.
Crie esses bois de chifres de açucenas Que pairam nos céus das manhãs serenas.
Crie cavalos da Andaluzia Em sítios de cristal e fantasia.
Crie raiz no amor de uma mulher E espere calmamente o que vier.
(CMP)
O PAI
Era em seu rosto curvo desenhada A figura do Pai. Morto faz muitos anos. Criava pássaros na varanda E meninos no quarto de dormir.
O Pai deixou muitas cartas na gaveta E silêncio No quarto de dormir.
O Pai de mãos ingênuas, Feito de porcelana. Olhar tão simples atrás dos óculos: Parecia usar cartola de mágico.
O Pai Acordava cedo como todo pássaro.
Às vezes interrompia o silêncio Com risadas inexplicáveis.
Caros,
O que é um poeta? A rigor, não sei.
A arte é sempre maior que as
definições. Mas a falta de uma definição —
ou de um manual de reconhecimento
— não constitui nenhum empecilho
quando estamos diante do trabalho de
um verdadeiro
poeta. E este é o caso do baiano Affonso
Manta (1939-2003).
Travei o primeiro contato com a poesia
de Manta no mesmo ano de sua morte.
Na época, publiquei o boletim n. 48,
dedicado a ele. Volto agora ao trabalho de
Manta após a publicação de suaAntologia
Poética, organizada por Ruy Espinheira
Filho (poesia.net n. 18 e n. 284).
A distribuição dos textos feita por Espinheira
Filho na Antologia ajuda a realçar o
quanto de sensibilidade e invenção lírica
existe no trabalho e na personalidade do poeta.
“Lá vai, lá vai, lá vai Affonso Manta /
Pela rua lilás”, escreve Manta.
No mesmo poema, ele se
autodefine como “o rei da extravagância,
o sem maldade”.
Dono de todos os sonhos e investido de
todas as forças líricas, no poema “O Cavalheiro
sem Anéis”,
ele também se retrata: “Eu sou a própria roupa
do crepúsculo”. Neste decassílabo forte e
desconcertante, a
aliteração em “p”, combinada com os erres de
“roupa” e dos encontros consonantais “cr” e “pr”,
provoca uma
sensação que só um poeta de ouvido refinado
sabe extrair das palavras.
O verso estimula a imaginação. Que cor teria
a roupa do crepúsculo? Talvez amarelo-sangue.
Talvez púrpura com
semitons de carmim, ou tudo isso mesclado.
No estrato dos sons e (sugestão de) movimentos,
a aliteração me leva a i
maginar o poeta vestido com a capa —
ou manta? —
do entardecer drapejada pelo vento.
Mas o texto, afinal,
não autoriza a disjunção entre poeta e
roupa: as duas entidades líricas são uma
coisa só.
Além disso, a proparoxítona
“crepúsculo” estabelece um
fechamento brusco,
mais agitado, como se uma lufada
de vento mais forte sacudisse a roupa.
É por isso que faz todo o sentido a afirmação
no início do poema: “Quando me
visto de pôr-do-sol / Os anjos ficam loucos”.
Não é todo dia, nem todo ano, nem todo
quinquênio que aparecem verso
s assim (pelo menos para este leitor, amador
-profissional, do poesia.net).
“Eu sou a própria roupa do crepúsculo”.
Beleza e angústia. Beleza angustiada.
“Nasceram-me gaivotas nos sentidos”.
“Pouca coisa sei da vida. / O bastante
para não correr”.
“Crie canários verdes na varanda /
Onde os meninos brincam de ciranda”.
Creio que os versos de Affonso Manta
falam por si mesmos. Mas é impossível
não destacar a musicalidade
e a esperança triste contidas na canção
“Quando Esta Noite Passar”. Até nos rabiscos,
simples anotações, o
poeta revela sua potência lírica e,
mais que isso, sua profunda consciência
sobre as possibilidades e limites
do fazer poético. “Há que deixar em
paz o poema. / Ou o poema nos afeta. /
O poema há de ser perfeito. /
Ou ele come o poeta”. Brilhante.
É por momentos de tal iridescência,
para usar um termo mantiano, que o poeta
Ruy Espinheira Filho diz
no prefácio da Antologia que Affonso
Manta foi um “conhecedor como poucos
da arte do verso”. E diz mais:
“Ele foi essencialmente poeta, como raros o
são. João Guimarães Rosa dizia que as pessoas
não morrem
: ficam encantadas. Affonso Manta não
esperou morrer para se encantar: foi um
encantado a vida inteira”.
•o•
Affonso Manta nasceu em Salvador (BA),
em 1939. Ainda bebê, mudou-se com a família
para Poções, onde o pai,
médico, iria trabalhar. Aos doze anos, volta
para Salvador. Lá, terminou o curso clássico no
Colégio Estadual da
Bahia. Depois, entrou em Ciências Sociais na
UFBA, mas não concluiu o curso. Professor,
jornalista, funcionário público,
Manta gostava mesmo era da boemia.
Como diz o poeta Ruy Espinheira Filho, era um
"boêmio impeninente". Viveu alguns
anos no Rio de Janeiro, como
inspetor dos Correios e Telégrafos.
Morreu em Poções, em 2003.
•o•
Apenas um ponto a lamentar.
Parte da coleção Mestres da Literatura Baiana,
aAntologia Poética de Affonso Manta
foi publicada pela Academia de Letras da
Bahia com o patrocínio da Assembleia Legislativa
do Estado. Como publicação
oficial, fora de comércio, não vai chegar às
livrarias. Chegará a bibliotecas e a uns poucos
felizardos, entre os quais me
incluo. Uma pena.
Poetas como Affonso Manta, assim como
vários outros poetas-poetas destes Brasis,
precisam ser retirados da virtual
clandestinidade em que se encontram e
divulgados para todo o país. Afinal, eles
representam uma parte do que há de mais
refinado no espírito brasileiro.
Um abraço, e até mais ler,
Carlos Machado
(OC)
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