FCCVFORUM COMUNITÁRIO DE COMBATE VIOLÊNCIA
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Parece que estamos longe de maio, daqueles dias em que milhares de pessoas correram às agências da Caixa Econômica Federal, buscando o que seria a última “prestação” do Bolsa Família. Eles acreditaram no boato de que o Programa Bolsa Família teria depositado, pela derradeira vez, os recursos a eles destinados.
De repente, as redondezas das agências da Caixa foram encobertas pela multidão de pessoas que se apinhavam em complexas filas. Muitos ali chegaram depois de contraírem empréstimos para garantir a mobilidade urbana, outros já estavam à porta do banco em plena madrugada com receio de não receberem os recursos por motivo de atraso, foram muitos os que deixaram os afazeres e se ajustaram à emergência bancária.
Em todos os casos, os milhares de perfilados se submetiam a uma ordem, a uma declaração não documentada, mas por eles reconhecida como válida. As filas excederam em muito aos excessos habituais. Enquanto isso, os meios de comunicação de massa anunciavam que o Bolsa Família não seria suspenso, mas, ainda assim, os beneficiados não desistiram da urgência e se mantiveram em seus desconfortáveis postos nas inacreditáveis filas, fazendo-se notar a confiança insuperável no boato.
O episódio evidenciou a grande abrangência da ação do Governo Federal quanto ao que se tem classificado de transferência de renda. Ao mesmo tempo, demonstrou que, não obstante o grande alcance e a duração (já vem desde Lula), os beneficiados não incorporaram a medida como direito das pessoas cujas rendas são insuficientes para a garantia da sobrevivência. O poder de convocação do boato, que informa que o programa social estaria chegando ao fim, sugere que os favorecidos pela medida têm esta possibilidade em suas cogitações. Chegam, inclusive, a imaginar que podem perder o recurso se não o retirarem logo que o mesmo se encontre à disposição nos cofres do banco.
Por que o boato é mais crível que a sequência de anos de recebimento dos benefícios? Respostas a questões dessa natureza costumam ter como formato a intolerante acusação de ignorância e falta de consciência por parte das pessoas mais pobres. Como pode passar tantos anos tirando o dinheiro em um banco e não aprender que uma vez depositado em seu nome, o dinheiro é seu?!
Contra esta acusação cabe recordar que um mesmo banco concentra serviços muito diferentes. Para uns, é lugar de especulações, para outros, seu sentido é limitado ao recebimento de salário, muitos tomam as agências bancárias como dor de cabeça, elas lembram as contas a pagar. Um mesmo sujeito faz usos diversos destas instituições ao passo que outros nem sabem como proceder a qualquer operação bancária. Desse modo, pode-se dizer da existência de pertencimentos muito variados ao sistema bancário. E, no que diz respeito aos beneficiados do Bolsa Família, o termo pertencimento comporta muitas aspas, algumas raspas e inúmeras farpas.
As críticas aos benefícios e aos beneficiados são tão freqüentes quanto a falta de problematização no que se refere aos altos lucros do capital financeiro que tocam a poucos favorecidos no Brasil. Ao contrário, este aspecto é colocado como uma qualidade da nossa política no que tange à capacidade de atração de capitais. E essa “virtude”, por sua vez, é vista como um diferencial positivo do País.
Contudo, passado o mal-estar provocado pelos furos técnicos que geraram as incertezas quanto à continuidade do Bolsa Família, as coisas voltaram aos trilhos, rumo à Copa das Confederações e a “luxuosa” utilização das obras, principalmente os estádios construídos conforme as exigências da FIFA. Mas, antes dos acontecimentos esportivos, surgiram as manifestações de rua em São Paulo com os protestos contra o aumento de vinte centavos na tarifa do transporte coletivo urbano.
As primeiras aparições foram marcadas pela contraposição policial cuja ofensiva não poupou nem mesmo alguns profissionais da imprensa. Esse ímpeto, que está relacionado com o hábito empreendido diante das “ações ordinárias” colocou o Estado de São Paulo em posição desconfortável quanto ao quesito democracia e sua expressão mais honrosa: participação popular. Como réplica a esta espécie de desfeita, o Secretário de Segurança de São Paulo ordenou que a polícia atuasse sem arma de fogo e com o sentido de proteger as manifestações, usando a violência apenas contra os “vândalos”.
A divisão entre manifestantes e vândalos foi acolhida de forma generalizada pela mídia que passou a caracterizar as manifestações pelo seu caráter pacífico e reivindicativo, contrário aos vândalos, à “vandalização” e às pessoas que se infiltram para “vandalizar”.
Muitas capitais brasileiras aderiram à mobilização pública e a Copa das Confederações passou a ser um acontecimento cheio de apreensões dada a inconveniência das bandeiras que criticavam a opção pelas obras da Copa e não pelas políticas públicas como a mobilidade urbana, a saúde, a educação, a segurança, enfim, os direitos básicos dos cidadãos.
É aí que aparece a ligação das filas de maio junto às agências da Caixa Econômica Federal e as manifestações de junho nas ruas das grandes cidades brasileiras. Se em maio prevaleceu a idéia de um mal-entendido, e o povo voltou às suas instáveis posições de beneficiários incertos, passivos e vulneráveis a quaisquer boatos; em junho, ele apareceu com outro ânimo, cobrando direitos, exigindo escutas públicas sobre as suas necessidades cotidianas.
Desde então, todo dia tem ruas ocupadas por cartazes e políticos preocupados com a desvalorização dos seus poderes, com a queda de seu capital eleitoral, com as suas inúmeras promessas anunciadas em palanques eleitorais. Agora a fila parece outra, agora parece que vai andar.
Leitura de fatos violentos publicados na mídiaAno 13, nº 08, 31/05/2013 | |
A MORTE E OS MENDIGOS
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De volta a 13 de dezembro de 2012. A Rádio Jornal 820 AM noticia: “Goiânia soma 11 mortes de moradores de rua em 38 dias”. O primeiro parágrafo da matéria é iniciado com a lista de oito nomes de vítimas e com a informação de que três dos 11 mortos não foram identificados.
Michel tinha como apelido Rondônia, nome do seu estado natal, “foi encontrado morto na porta de uma clínica”. Ao vê-lo no chão, um médico quis acordá-lo, porém não era mais uma manhã igual às outras, ele foi o décimo primeiro morador de rua que foi morto em pouco mais de um mês (38 dias) na cidade de Goiânia.
Um delegado da Delegacia Estadual de Investigações de Homicídio informou que a vítima era usuária de crack “e, possivelmente, foi assassinado com um golpe de objeto contundente na cabeça, ou seja, uma paulada”. Esta suposição do delegado é anterior ao laudo do Instituto Médico Legal.
Para o delegado, estas vítimas não são moradores de rua comuns, elas se distinguem por serem usuárias de entorpecentes. Segundo ele, as mortes estão relacionadas com os conflitos entre usuários. Não considera, portanto, que exista “um grupo de extermínio para matar moradores de rua. As mortes são geralmente a paulada, facada ou pedrada, o que o indica que o autor estava próximo e é conhecido da vítima”.
Em 18 de dezembro de 2012, entre as manchetes da edição do SBT Manhã, tem-se: “Número de moradores de rua mortos em Goiânia chega a 14”. Desta vez, de acordo com a polícia, a vítima foi ferida na barriga por tiros de arma de calibre 9 mm, de uso restrito da polícia. Suspeita-se de crime de execução.
Em meados de abril de 2013, o assunto já havia adquirido repercussão através de várias mídias de alcance em todo o País. No dia 15, é noticiada a morte de número 28, pelo Jornal Nacional, da Rede Globo de Televisão: “Mais um morador de rua foi assassinado em Goiânia – o 28º desde agosto”. No dia seguinte, o “bordão” é acrescido de “mais um” e “mais um”. E é chegada a trigésima vítima que também morrera no dia 15 e foi alvo de notícias em 16 de abril.
O caráter contábil das mortes e a insistência das autoridades policiais do Estado de Goiás em relacioná-las ao tráfico de drogas antes mesmo de averiguações mais consistentes sugerem, de modo indireto, um valor negativo mais profundo para as vítimas. De um modo geral, os moradores de rua são duramente estigmatizados, dando-se a impressão de que representa o último grau possível de estigmatização, entretanto, a mortandade em Goiânia abriu espaço para um tipo de morador de rua ainda mais desqualificado: o morador de rua envolvido com o tráfico.
Parece que estes sujeitos, em 12 de agosto de 2012, se reuniram em assembleia e decidiram se matar entre si. É como se tivessem deliberado pela antecipação da terceira guerra mundial no que tange à sua comunidade. Para caracterizar o conflito, definiram que usariam como armas: facas, porretes, pedras, ou objetos que evidenciassem que a ação violenta foi praticada por uma pessoa que estivesse próxima da vítima. Mas não, não pode ser esta a interpretação dos acontecimentos, afinal, de acordo com a opinião do delegado, “os crimes não têm relação uns com os outros”.
A tese policial, ao que parece, aposta em uma grande coincidência. E, de repente, cada morador de rua por seu lado, decidiu matar um colega. A tese da coincidência contribui para que seja superada a impressão de que há uma onda orquestrada de violência contra moradores de rua e, com isso, o problema ganha feição de “coisa deles”, eles que seriam os piores entre os piores. A pior seleção de seres humanos estaria se auto-exterminando, de modo incontrolável, cabendo à ordem pública fazer o exercício contábil e rotular as vítimas de qualificações compatíveis, de acordo com a moral hodierna, com as suas mortes e livrar todas as outras instâncias possíveis de qualquer suspeição.
Com esta espécie de salvo-conduto geral, segue o medo dos moradores de rua, o pavor de corresponder a “mais um mendigo morto em Goiânia”, ampliando o número e sem fechar a conta.
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