quarta-feira, 4 de março de 2015

S PAULO - POESIA.NET - SÔNIA BARROS





Em Quarta-feira, 4 de Março de 2015 0:17, Carlos Machado escreveu:



Número 327 - Ano 13
São Paulo, quarta-feira, 4 de março de 2015
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«Amor é compromisso / 
com algo mais terrível do que amor?» 

(Carlos Drummond de Andrade) *


Sônia Barros



Sônia Barros



Vermeer - A Leiteira (1665)


Vermeer, Moça com Jarro d'Água (1662-1663)





CONSTATAÇÃO

Descobriu sem tristeza
e, apesar de ter sentido
uma espécie de frio,
tampouco houve surpresa
no momento da descoberta:

não é a morte o pior verdugo,
com seus fios verde-musgo,
garras sob pele tenra,
hera primeva a esconder
no ventre o muro do fim;

carrasco a cavar na alma
maior ruína é a sina de ser só
— sol latente no coração da sombra —
que em nada se aproxima
do estado desejado de não ser.




Vermeer - Mulher com Criada segurando uma carta
Vermeer, Mulher com Criada Segurando Uma Carta (1673-1675)




FIO A FIO

           Para o Bruno

Ranger de rodas no asfalto
mastigando águas, língua
do vento a roçar o vidro
de tímpanos insones, dança
desencontrada de pálpebras, portas
e janelas, passos no andar de cima
inter(calados) com os pingos
no telhado da sacada.

No quarto ao lado,
a respiração-presença do menino
mistura-se à carícia do cheiro da chuva,
sobrepõe-se aos sons da escuridão
e faz nascer no peito
súbita alvorada.




Vermeer - Mulher de Azul Lendo uma Carta
Vermeer, Mulher de Azul Lendo uma Carta (1662-1663)




FUTURO

No esgoto,
catando restolhos,
a menina procura
cerzir o vinco
do estômago.

No alto,
o futuro a espia
com garras
e agulhas
           sem linha.




Vermeer - Moça com Brinco de Pérola
Vermeer, Moça com Brinco de Pérola (1665-1666)




MOÇA COM BRINCO DE PÉROLA

Além da pérola
na orelha da moça
de Vermeer,

o indevassável
desejo nos olhos:
sonho a arder.




Sônia Barros


Sônia Barros

Amigas e amigos,


A escritora paulista Sônia Barros 

(Monte Mor, 1968) é mais conhecida 
do público infantojuvenil, para quem
 já publicou quase duas dezenas de 
títulos, entre histórias de ficção e poesia. 
Nessa seara, Sônia Barros apareceu 
aqui no boletim n. 267. Mas ela também 
escreve versos para adultos. Sua estreia 
nessa área deu-se com o livro Mezzo 
Voo (2007), que serviu de base para
 o boletim n. 207.


Em Mezzo Voo, a poeta apresenta 

um lirismo delicado, mas inquieto, 
pronto para questionar, como escrevi 
oito anos atrás, “as minguadas ofertas 
do mundo”.

A autora retorna agora, trazida por

 sua segunda coletânea de poemas para adultos, Fios (2014). Publicado pela 
Biblioteca Pública do Paraná, esse 
volume foi o vencedor do Prêmio 
Paraná de Literatura 2014, 
categoria poesia.

•o•

De Fios selecionei seis poemas

 para a pequena antologia ao lado.
 O primeiro, “Fim da Linha”, descreve 
um episódio ferroviário certamente 
associado à memória do narrador: 
“O trem desapareceu, / nunca mais 
foi visto”, mas retorna do esquecimento 
para impressionar os sentidos de quem
 “carrega uma estação / de trem por dentro”.
 É curioso como, de todos os meios de 
transporte, o trem ocupa o mais amplo 
espaço no imaginário das pessoas. 
Pena que no Brasil a experiência 
ferroviária tenha sido sustada pela 
escolha do automóvel como meio de
 transporte fundamental.


Em “Vertente”, a autora se volta

 para o fenômeno da criação poética. 
Fala das “vozes que vêm para o poema
 / mas não foram convidadas”. 

Essas palavras ou opiniões intrusas
 são comparadas ao zurrar do sofrido
 asno-título do filme Balthazar (no Brasil, 
A Grande Testemunha, 1966), dirigido 
pelo francês Robert Bresson (1901-1999). 
Bresson, para quem não lembra, é mais 
conhecido pelo filme Pickpocket - 
O Batedor de Carteiras (1959). E atenção:
 "Há verbos 
que invadem, perfuram o osso / do poema
 e do poeta". Do lado de cá, pedimos licença
] à poeta e acrescentamos: e também dos
 leitores.


No poema “Constatação”, Sônia Barros

 penetra fundo no poço dos sentimentos 
para trazer de lá uma ideia inusitada: 
“não é a morte o pior verdugo”. O que 
maltrata, mesmo, o que cava “na alma /
 maior ruína é a sina de ser só”. Ou seja, 
a solidão dilacera mais que a morte. 
Do ponto de vista dos seres humanos,
 bichos gregários e dependentes de apoio
 e afeto, aí está uma constatação 
verdadeira e forte.


“Fio a Fio” é um exemplo de poema que

 parece construído a partir de um momento 
íntimo, um quase-nada, uma pequena emoção
 familiar. Aparentemente, sons externos
 (“ruído de rodas no asfalto”, “vento”,
 “passos no andar de cima”, chuva no
 telhado) criam dentro da noite um instante 
de apreensão, quase medo. Mas a respiração 
da criança “no quarto ao lado” transforma
 todas as preocupações na certeza de uma 
“súbita alvorada”. Sensível e refinado.


Em “Futuro”, o ponto de partida é uma 

cena que há muito (no mundo inteiro)
 gostaríamos de que fosse algo do passado.
 Infelizmente, ainda não é: a menina 
catando restos no lixo. E o futuro a espera, 
“com garras / e agulhas / sem linha”. 
Ou seja: sem fios para que se possa criar
 um enredo. Sinistramente, é como se o rumo 
dessa pequena vida já estivesse (irremediavelmente) traçado.


Um dos aspectos que se destacam

 no livro Fios é o diálogo com outras artes. 
Em “Vertente”, mais acima, vimos a 
referência a um personagem de cinema.
 Em “Moça com Brinco de Pérola”, o ponto
 de partida é o famoso quadro do holandês 
de Johannes Vermeer (1632-1675), que já 
rendeu romance e filme homônimos. Em 
seu brevíssimo poema, Sônia Barros destaca
 um “indevassável desejo” nos olhos da 
moça retratada pelo mestre neerlandês.


E viva a grande arte. É sempre um 

prazer (e um mistério) ver que um 
quadro seiscentista ainda desperta a 
veia criativa de poetas do século XXI.


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Carlos Machado, 2015


facebook-boletim 

Sônia Barros
   In Fios
   Biblioteca Pública do Paraná, Curitiba, 2014


Abraço, e até a próxima.

Carlos Machado

 

Johannes Vermeer (1632-1675), holandês, A Leiteira (1665)




FIM DA LINHA

O trem desapareceu,
nunca mais foi visto,
           só o apito percorre
           o trilho do ouvido,
vai e vem intermitente,
agulha a cerzir espaços,
           esgarçados lodaçais
           do esquecimento:
o ontem ressurgindo
no ritmo de espasmos,
           luz cortando sombras
           no túnel do pensamento,
ouvido inconsciente
de quem até hoje sente
           e carrega uma estação
           de trem por dentro.




Vermeer
VermeerMoça Tocando Guitarra (1669-1672) 




VERTENTE

Há vozes que vêm para o poema
mas não foram convidadas, surgem
como luz soprada por lábios de um sol improvável,
música inusitada a nascer num jorro que rasga
e fecunda o solo solitário das palavras.
Há verbos que invadem, perfuram o osso
do poema e do poeta — feito o zurrar de um asno,
como em Balthazar, de Bresson — e permanecem
tamanha a correnteza de seu gozo.




Vermeer - Moça com jarro d'água


•o•


p




______________
* Carlos Drummond de Andrade, "Mineração do Outro",
  in Lição de Coisas (1964)
______________
- Todas as imagens: pinturas do holandês Johannes Vermeer (1632-1675)




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