segunda-feira, 2 de março de 2015

LILITH, PRIMEIRA MULHER DE ADÃO

MEMÓRIA 5 ANOS DO  BLOGUE

LILITH, A PRIMEIRA MULHER DE ADÃO: “POR QUE DEVO DEITAR-ME EMBAIXO DE TÍ? POR QUE DEVO ABRIR-ME SOB TEU CORPO?”: MEMÓRIA E CONTEMPORANEIDADE DE UM MULHER INSUBMISSA



Vicente Deocleciano Moreira

A D’us, Shalom - שלום - Graça e Paz. Para Claude Lévi-Satrauss (1908 – 2009), In Memoriam

Dobro os joelhos
Quando você, me pega
Me amassa, me quebra
Me usa demais...

Perco as rédeas
Quando você
Demora, devora, implora
E sempre por mais...

Eu sou navalha
Cortando na carne
Eu sou a boca
Que a língua invade
Sou o desejo
Maldito e bendito
Profano e covarde...

Desfaça assim de mim
Que eu gosto e desgosto
Me dobro, nem lhe cobro
Rapaz!
Ordene, não peça
Muito me interessa
A sua potência
Seu calibre, seu gás...
Sou o encaixe
O lacre violafdo
E tantas pernas
Por todos os lados
Eu sou o preço
Cobrado e bem pag
o
Eu sou
Um pecado capital...

Eu quero é derrapar
Nas curvas do seu corpo
Surpreender seus movimentos
Virar o jogo
Quero beber, o que dele
Escorre pela pele
E nunca mais esfriar
Minha febre...

(Izabella Taviani – “Luxúria”)

https://www.youtube.com/watch?v=2A78nkY6LLk



RESUMO
Lilith foi criada, por Deus, como a primeira esposa humana de Adão, mas foi excluída do Gênesis pelos homens depois de ter sofrido o castigo divinopor causa de seu questionamento a Adão e às regras sexuais vigentes: “Por que devo deitar-me embaixo de ti? Por que devo abrir-me sob teu corpo?. Lilith, foi excluída da Bíblia porque ameaçava os tnteresses masculinos de dominação no sexo e na sociedade em geral. Lilith simboliza o desejo de reconhecimento da sexualidade feminina e da livre gestão erótica do clitóris. Ontem e hoje, aqui e ali, Lilith provoca medo e reações masculinas que vão desde a infibulação e a extirpação do clitóris até práticas contemporâneas mais sutis e menos sutis de repressão à sexualidade feminina inclusive em universidades
Palavras Chave – Lilith, Sexualidade Feminina, Mutilação, Excisão do clitóris, Repressão Sexual

ABSTRACT

Lilith was created by God, as the first human wife of Adam, but was excluded from the Genesis of men after suffering the punishment divinopor because of his questioning of Adam and sexual rules in force: "Why should I lie down beneath ti? Why should I open myself in your body?. Lilith, was excluded from the Bible because it threatened the tnteresses male dominance in sex and society in general. Lilith symbolizes the desire for recognition of female sexuality and the erotic free exercise of the clitoris. Yesterday and today, here and there, Lilith causes fear and reactions ranging from male infibulations and excision of the clitoris to contemporary practices more subtle and less subtl e repression of female seuality in universities inclusive.
Keywords - Lilith, Female Sexuality, mutilation, excision of the clitoris, Sexual Repression

INTRODUÇÃO

Qual a contemporaneidade da insubmissão feminina de Lilith, a primeira mulher humana de Adão? Por que os homens, as mulheres e a sociedade em geral têm medo de Lilith? Por que os homens, as mulheres e a sociedade em geral, ontem e hoje, aqui, ali e acolá, são tão capturados por esse medo que tentam – nos templos e nos textos laicos e religiosos - esconder Lilith, sufocar-lhe o grito de libertação e amputar-lhe o dedo que aponta para o futuro? Em que, por que, para que, como e onde Lilith ameaça a “supremacia” masculina e o status quo da sociedade contemporânea, sua ordem nacional/internacional e seus quadrantes axiológicos? Lilith - a primeira heroína bíblica, da tradição da sabedoria rabínica definida na primeira mulher/companheira humana de Adão.
Eva, a segunda heroína dessa influente tradição, foi a segunda companheira humana do primeiro herói (ou antiheroi?) bíblico.

No imaginário, Eva está sempre ao lado do bíblico companheiro, Eva, a segunda mulher de Adão, é mais conhecida e mais citada que Lilith; graças aos interesses e aos medos masculinos ancestrais que – num alto/baixo calão bem brasileiro - “cassaram” Lilith, que a excluíram da versão corrente do livro Genesis da Bíblia. 
Teria Lilith sido extraditada para utopos? Teria sido removida, consciente ou inconscientemente, no momento em que ocorreu a transposição da versão jeovítica para a sacerdotal antecessora, que foi, das modificações operadas pelos Pais da Igreja? Ou essa exclusão de Lilith, enquanto myhtos, teria ido responsabilidade da interferência do logos cristão/católico e seu ceticismo racional (as Sagradas Escrituras dos cristãos) sobre o texto cristalino da Torah assírio-babilônica e hebraica?

Entre os labirintos do não dito e do que não pode ser revelado, eis que Lilith vive. Resta-nos o reconhecimento das sensibilidades etnográfica e hermenêutica, dos testemunhos de fé,e da iluminação pelo carisma dos Rabis – testemunhos abrigados na Torah (o Ensinamento) e nos Midrash (a Procura) presentes na Misnach (acervo de Códigos)
Companheiro(a)s, desde outrora, significa(m) aquele(a)s que come(m) – come + moram - junto(a)s o mesmo pão: com + panheiro. Não há come + moração sem comida (bebida) sem a liturgia do comer e do beber ... juntos e unidos pelo mesmo pão: a festa dos pães ázimos (Chag haMatzot) que vem depois da Pessach dos judeus em 14 de Nissan; a reifeição que assinala o fim do mês de Ramadan entre os muçulmanos; os pães e o vinho na festa das bodas com a presença de Jesus Cristo, na Bílblia cristã).

O pão, evidentemente, também pode ser simbólico, metafórico. Assim, perguntamos: que pão comum uniu Adão e Lilith e, depois, Adão e Eva? O pão primeiro da solidão humana primitiva de Adão; e, depois do pecado da desobediência a Deus, o pão da angústia da finitude (morte) de Adão como problemas. E, ab origine, a solução adotada por Deus, isto é, a impossibilidade do amor. Deus se antecipa ao “Não há relação sexual” de Jacques Lacan. Antecipa-se ao “No coração de quem ama fica faltando um pedaço” do compositor e cantor Djavan.
“Não há relação sexual”, assegura Lacan. Vale dizer, pode até acontecerem relações sexuais – mas não relação sexual porque – na cópula sexual - um(a) companheiro(a) não completa o(a) outro(a) ... há sempre uma falta, uma incompletude, uma satisfação não plenamente satisfeita por melhor que tenha sido o ato sexual. entre os pares. Daí que “omina animal trist post coitum” (todo animal fica triste após o coito sexual). A “tristeza” da incompletude.

E assim, quando mais tarde me procure/
Quem sabe a morte, angústia de quem vive/
Quem sabe a solidão, fim de quem ama/
Eu possa me dizer do amor (que tive):/
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure
(Vinicius de Moraes – “Soneto da fidelidade”)

Deus fez Adão, quer dizer, o primeiro humano masculino à sua imagem e semelhança, e o fez macho e fêmea. “Filho de peixe peixinho é”, Adão andrógino que era, descendia do Deus/Pai também andrógino. Vamos usufruir do O Banquete, uma conhecida obra de Platão. Neste evento, entre comidas e bebidas filósofos estavam competindo pela apresentação da melhor tese sobre o amor. Venceu Aristófanes com a seguinte tese: havia um deus tão perfeito que era, num só corpo, masculino e feminino. Tal androginia não era apenas psíquica, era também somática.

Esse deus decidiu construir uma criatura humana à sua imagem e semelhança e, por conseguinte, também andrógino, também perfeito a ponto de a genitália masculina copular com a feminina num mesmo corpo. Depois, movido pelo ciúme e pela ira, esse deus separa as duas metades afastando-a bem longe uma da outra; desesperadas cada uma delas passa a copular com o chão e, a seguir, cada uma das partes começou a correr na busca da outra para voltarem a ser um mesmo corpo – porém jamais se encontrariam, jamais voltariam a se completar.
Aristófanes concluíra, então, pela impossibilidade do amor. Cada homem ou mulher ama a si mesma no seu companheiro, na sua companheira. A frase verdadeira é “Eu me amo em você” e não a falsa, conveniente e apaziguadora “Eu te amo”.

Andrógino, o primeiro homem estava só. Deus avaliou: “Não é bom que o homem esteja só”. O escritor (ou escritores?) desse momento bíblico estava, como um bom cronista, atento à realidade à sua volta. Isto porque, nas sociedades (camponesas por excelência) dessa época, homens (em maior escala que mulheres) mantinham relações sexuais com animais (o que depois passou a ser conhecido e patologizado como ‘zoofilia’, ‘bestialidade’ ...), reeditando e atualizando uma prática sexual muito comum entre os homens recém evoluídos do ancestral que, na frieza do clima e na carência de mulheres, faziam sexo com quadrúpedes disponíveis. 

Ainda hoje (2009 d.C), manter relações sexuais com quadrúpedes é comum em áreas rurais.
Vamos ao Genesis, primeiro livro da Bíblia judaica., ( II, 20): “Assim, o homem conferiu nomes a todos os animais, a todos os voláteis do céu e a todos os animais selvagens. Mas para o homem não achou ajudante que fosse semelhante a ele.”

Adão estava só e carente. Paternalmente, Deus permite que seu filho tenha relações sexuais com animais; e isto fica bastante claro na sutileza do texto que informa que o primeiro homem dá nome aos animais. Ora, dar nome (e conhecer), nesse espaço/tempo era – diríamos hoje (2009 d.C) - um eufemismo para afirmar a existência de relações sexuais. Dar nome e conhecer significam - ontem e hoje (2009) - uma mesma coisa: manter relações sexuais.
Em nossas sociedades contemporâneas, urbanas, modernas, internetizadas ... a mulher, ao casar com um homem, herda-lhe o sobrenome alterando, assim, a integridade de seu nome de solteira. Essa herança, esse novo sobrenome, significa o seguinte: o que deu o sobrenome e aquela que o recebeu mantêm relações sexuais legitimadas, legalizadas e sacralizadas. Isto dispensa e evita qualquer pergunta indiscreta vindo de quem quer que seja. “Quem dá o nome é porque come” – escancara o dito popular.

Quando o casal se separa, a maioria das mulheres exclui, formal e legalmente, o sobrenome do ex-marido, resgatando a integridade do nome de solteira. Afinal, supõe-se que ela não mais faz sexo com aquele homem. Há mulheres porém que, por várias razões, conservam o sobrenome do marido mesmo depois da separação, do divórcio – o que cria um certo mal estar pois ela já não mais faz amor com o ex-marido mas, simbolicamente, continua fazendo amor com ele.


NOTA METODOLÓGICA



Todo estudante das primeiras auroras de um curso de graduação universitária em Antropologia como eu fui faz algum(!) tempo, aprende com o mestre Lévi-Strauss o modus operandi da aceitação da diversidade e do exercício da descentralização do pensamento racional, científico para a compreensão do mundo e dos seres humanos do mundo. Para olhar nos olhos e no corpo de Lilith não hesitei nem sofri em utilizar compreensões arquetípicas em meio a outras da psicologia junguiana e, do outro lado, a castração, o insconsciente estruturado como linguagem e outros olhares da psicanálise freudiana-lacaniana. O que me pareceu melhor lanterna para enxergar Lilith – este foi o critério. Heresia? Lilith é de uma heresia contagiante.


Fui surpreendido pelo fato do quase linchamento e estupro da jovem Geisy Arruda, estudante da Universidade Bandeirantes de São Paulo (Uniban), pelos seus jovens colegas, na mesma última semana de outubro (2009 d.C) em que morreu Lévi-Strauss. Há limites de páginas para artigos e, então, me senti tentado e obrigado a reduzir as páginas e linhas sobre Infibulação e Excisão e dedicar algumas delas ao lamentável episódio, divulgado pelas mídias nacionais e internacionais. A aluna foi perseguida e julgada por estar usando um vestido curto dentro da mencionada universidade.


Em, 12 de novembro de 2009 (d.C), vi uma foto no jornal baiano Correio da Bahia (Salvador, 12 de novembro de 2009, p.8 ) que ilustra reportagem sobre protestos de estudantes da Universidade de Brasília (Unb). Estão quase todo(a)s nus/nuas, protestando contra o que os algozes (todos eles) fizeram com Geisy na cosmopolita São Paulo. Hoje, quando vi essa foto (Ver final deste artigo) me senti menos culpado e menos inadimplente com a simpática platéia daquele 18 de setembro em Alagoinhas – Bahia. A foto mostra uma jovem de seios nus, na Unb, exibindo um cartaz que diz: “É PRECISO TEMER LILITH, ELA FICA ENCOLERIZADA QUANDO TENTAM ...”



LILITH, DEPOIS DO ZOOFILISMO DE ADÃO


A fase zoofilista não faz de Adão um homem mais alegre nem menos solitário. O homem continua só.. Do mesmo barro adâmico, Deus faz Lilith e a entrega a Adão – como um pai entrega a filha (que ele mesmo fez e/ou criou) ao noivo, em determinados ritos de passagem do ritual do casamento. Há, porém, quem defenda que Deus teria utilizado “fezes e imundície ao invés de pó puro” (GRAVES Apud SICUTERI, 1990, p.28). Compreendemos tal afirmação diante da mulher que Lilith viria ser: contestadora e consciente de ser sujeito de sua sexualidade e de seu próprio prazer sexual. 


Tendo, enfim, uma companheira humana semelhante a ele, Adão agora está alegre e não mais está só. Tanta a felicidade, que ele chega a imaginar seu corpo e o corpo de Lilith um só corpo e as suas mãos entrelaçadas com as de Lilith estão amarradas com a ilusão de formarem uma única mão. Duas genitálias diferentes num só corpo ... é a doce ilusão do primitivo casal. Milênios e milênios antes, a verdade é que já intuíam a tese (vencedora) de Aristófanes: Lilith e Adão, cada um tem a certeza de que é a metade um de outro formando um só corpo.


Ainda hoje (2010 d.C), o sacerdote católico e o próprio curso de preparação de noivos católicos para o casamento reafirmam a ilusão de que houve e de que há/;haverá relação sexual, ao tentar convencer o casal, seja na preparação para as núpcias, seja no exato instante do ato ritual do matrimônio que eles são um só corpo, uma só carne. E incluem o “até que o morte vos separe”. Porém, sem o saberem, esta frase nada é a própria separação; a priori já estão separados desde ali, desde sempre e para sempre. Amém. Como se não bastasse, sacerdote – condenado ao celibato obrigatório - manda: “agora se beijem”, “os noivos agora se beijam” ... ou coisa que o valha; nesse beijo autorizado, permitido por Deus, cada um diz para o outro a mentira risonha do “eu te amo” Evidentemente, que o vexame público (a vergonha, tanta despesa com o bolo, bebidas, doces e salgados, etc. etc. jogado para o alto), seria a verdade tristonha da cada um falar bem alto na igreja: “eu me amo em você”. O paraíso dos suspiros e dos sorrisos transformado no inferno da indignação.



E, como se não bastasse a própria oratória, recorrem ao expediente bíblico (Bíblia cristã, o chamado Novo Testamento) das palavras de Cristo: “Não separe o homem o que Deus uniu”
Deixando 2009 d.C para trás (ou para frente?) e retornando ao in illo tempore, do casal primeiro, o fato é que Lilith (primeira companheira humana de Adão, depois do fracasso e do vazio d’alma que deixaram, nele, as práticas zoofilistas), está fazendo feliz o nosso carente herói.


Estão unidos numa só carne. Não ousemos separar “o que Deus uniu” nem lhes castigar com nenhum choque de realidade inventado pela tecnologia de Aristófanes.
Antecipando-se a Eclesiaste, Adão gozava com Lilith todos os dias desta vida vã. A lua de mel (Lilith vai ser chamada, depois – ironia à parte - de “Lua Negra”) teria sido mais doce, não fosse a contumaz impaciência demonstrada por Lilith. Com insistência, ela perguntava a Adão: “Por que devo deitar-me embaixo de ti? Por que devo abrir-me sob teu corpo?


“POR QUE DEVO DEITAR-ME EMBAIXO DE TÍ? POR QUE DEVO ABRIR-ME SOB TEU CORPO?”


“Por que devo deitar-me embaixo de ti? Por que devo abrir-me sob teu corpo?” (SICOUTERI, p. 35). O destaque a estas frases é proposital, embora saibamos que todo o destaque possível ainda será pouco, insuficiente, para chamar a atenção sobre a importância delas antes de tudo para compreendermos a mulher Lilith; e, de algum modo, porque ela não figura na Bíblia (Velho Testamento).


I - As frases usam o verbo DEVER num claro sentido de OBRIGAÇÃO. Questionam, pois, porque a mulher Lilith TEM que DEITAR e ABRIR-SE (abrir as pernas) debaixo do homem Adão. Os questionamentos carregam uma proposta “indecente” ao companheiro: Lilith quer deitar por cima de Adão e abrir as pernas em cima de Adão. Não quer se SUB- METER, quer dizer, se deixar meter por baixo. Lilith questiona, discorda da posição papai-mamãe. Esta posição – longe de parecer uma classificação grosseira, vulgar do presente – tem origem em tempos imemoriais quando o poder religioso, de algumas culturas, determinava a posição sexual de marido mulher – esta sempre embaixo daquele – para que o sexo cumprisse sua função reprodutiva – aliás, única função aceita no mundo da sexualidade, o prazer era considerado ilegítimo, proibido, indigno de seres humanos. Subvertendo a ordem, de que formas e posições


Lilith queria fazer sexo com Adão: 1 – Ele deitaria de bruços, ela ficaria por cima dele derrapando seu clitoris,nas formas curvas das nádegas e do anus de Adão. “Eu quero derrapar nas curvas do seu corpo” (Izabella Taviani – “Luxúria”);

2 – Ele ficaria de quatro pés enquanto Lilith “virando o jogo” (Izabella Taviani – “Luxúria”) roçaria seu clitória nas nádegas e com ele penetraria o ânus do companheiro; ou penetraria o ânus de Adão com um dedo enquanto o outro friccionaria seu próprio clitóris. Uma luxúria!

A exemplo dos adões de ontem e de hoje (2010 d.C), Adão não concorda com nenhuma dessas alternativas. Apega-se à gestão erótica, sexual, penetrocêntrica sim – mas ele/seu pêni/seus dedos/sua língua seguindo sendo os instrumentos de penetração. Ele no comando.
Ora, a palavra Lilith tem origem no sumério antigo Lulu que significa libertinagem, devassidão, luxúria ... atributos que, posteriormente, o Cristianismo registra e condena como pecado capital (ou pecado principal) ao lado da Ira, Gula, Inveja, Soberba, Avareza e da Preguiça. Lilith teria sido, desde sempre, o nome da primeira mulher de Adão, ou esse nome teria surgido depois da corajosa IN-SUBMISSÃO?


Talvez seja esta uma discussão não necessariamente acaciana, bizantina ... ou mesmo sumeriana. De todo o modo, salva-nos a leitura arquetípica do mito Lilith; assim sendo, o arquético, por definição geral, vem antes e segue depois de, no caso, Lilith. O arquétipo Lilith é maior do que a mulher Lilith não importa quando, porque e onde ela recebeu esse nome de origem tão pecaminosa aos olhos dos seguidores católicos (apostólicos romanos) de Jesus Cristo.


II – As frases são lapidares e definem a identidade de Lilith. São lapidares inclusive no sentido próprio de lápide tumular. Elas devem/deveriam ser gravadas a ouro no túmulo de Lilith. Com estas frases, ela “cava seu próprio túmulo”; as duas frases não abrem espaço para nenhum álibi. Com elas, Lilith se autocondena num processo que vai condená-la à morte – Deus como juiz.


III – As frases foram retiradas, censuradas, excluídas do texto bíblico (Genesis) porque ameaçavam o poder dos homens sobre as mulheres. Como foram os homens (em sua esmagadora maioria) os cronistas, ‘etnógrafo’s e ‘antropólogos’ ... enfim, os redatores da Bílbia, por certo eles não iriam “criar cobra para lhes morder as masculinidades – todas as masculinidades: do exercício do poder até o exercício da sexualidade. “Lua Negra”, Lilith será mesmo transformada em cobra, naquela serpente que vai despertar Eva para a desobediência (civil?) ao poder masculino - o de Deus- o criador do universo, segundo a Bíblia. Leiamos o seguinte trecho do Malleus Maleficarum (o conhecido “Martelo das Feiticeiras), escrito em 1484 pelos inquisidores Heinrich Kramer e James Sprenger:



Diz-nos ainda [São Tomás , IV, 34] que, pelo fato de o primeiro pecado que tornou o homem escravo do demônio ter sido o ato carnal, logo maior o poder conferido por Deus ao diabo com relação a este ato e não com relação aos demais. Não apenas isso: o poder das bruxas é mais aparente nas serpentes do que em outros animais, porque foi através da serpente que o demônio tentou a mulher. (KRAMER e SPRENGER, 1991, p. 122)



Por que Lilith teria sido satanizada, diabolizada, pela Igreja Católica, a julgar por essas palavras dos inquisidores? Como dissemos, anteriormente, Adão não aceita a proposta de IN-SUBMISSÃO que lhe apresenta Lilith. Ela é expulsa por Deus e por Ele extraditada para uma região do Mar Vermelho onde, segundo crença judaica tradicional, estavam os demônios. Lá ela conhece um desses demônios, de nome Sataniel (o nosso conhecido Satanás) e com ele faz o sexo que sempre desejou, ardentemente, fazer com Adão. Têm centenas de filhos, a cada ano desse intenso e incansável amor. É exatamente aqui, por ter mantido relações sexuais com Sataniel, que começa a satanização, a diabolização de Lilith.


Lilith está feliz e realizada em sua esplendorosa luxúria. Deus a transforma em uma serpente cheia de sangue e saliva. Uma serpente cheia de sangue e de saliva pode ser tanto o clitória como o pênis em seus mais incendiários momentos de desejo e de paixão. Lilith reaparece na serpente que, primeiramente, tenta (e é bem sucedida) Eva para que desobedeça a Deus. Cedendo à sedução de Lilith, Eva “peca’ e passa o fruto (o troféu) do pecado para Adão.


QUEM TEM MEDO DE LILITH?

Ter medo de Lilith é, sobretudo e antes de tudo, ter medo do clitóris de Lilith. Sim, do clitóris esse componente anatômico de importância decisiva para o prazer, para o orgasmo feminino. Um prazer e um orgasmo que – juntamente com a própria mulher toda ela – faz enigma para os homens, para as demais mulheres e para o mundo. Temido e perseguido, em suas dimensões sobretudo físico-anatômico-fisiológicas e simbólico-imaginárias - em diversos tempos, templos e culturas – o clitóris é o lugar príncipe da masturbação feminina. Vamos, mais uma vez, à contribuição do Malleus Maleficarum (o Martelo das Feiticeiras): Tais mulheres saciam os seus desejos obscenos não apenas consigo mesmas mas com aqueles que se acham no vigor da idade, de qualquer classe ou condição; causando-lhes, através de bruxaria de toda espécie, a morte da alma, pelo fascínio desmedido do amor carnal, de uma tal forma a não haver persuasão ou vergonha que os faça abster-se de tais atos. (KRAMER e SPRENGER, 1991, p. 122)

O ato de saciar os desejos “obscenos’ consigo mesma, ao se masturbar sozinha através da fricção (com o dedo, a mão ou algum objeto) sobre o clitóris pode representar, para muitos homens, uma provocação, um atestado de que elas não precisam deles ... tanto que eles estão excluídos daqueles instantes de prazer. Mas não só isso: o clitóris friccionado .e tudo quanto deriva desse ato - quando solitário – é, também, o empoderamento da mulher sobre seu próprio corpo; dispensa-se o poder masculino. O contemplar uma mulher se masturbando dessa forma na sua frente marca, na psique masculina, um turbilhão de sentimentos: um não-saber-o-que-fazer, sentimentos de impotência, exclusão erótica; e, também, perplexidade, mil interrogações mudas no momento em que ela é dominada pelo orgasmo, pelo gozo sexual que, por ser não-fálico (ou seja, impossível de ser dito, traduzido, relatado ...), deixa-o acorrentado na muralha da sua própria castração masculina.

O Martelo das Feiticeiras não é um tratado apenas sobre a masturbação feminina., sobre Lilith, bruxas, íncubos, súcubos e outros demônios poderosos ... todos poderosos com a permissão de Deus – graças a Deus! - para serem assim tão fortes e sedentos de pactos com as fraquezas do ser humano. Amém. No entanto, todo o texto dos inquisidores trai a perplexidade, as mil interrogações mudas, a prisão na muralha da castração (masculina) dos autores. Ao discurso que atua na condenação estão colados: o discurso do prazer em narrar o “ato indecente”, a “luxúria” e o discurso do voyeur que olha (sem ser olhado) a cena do sexo ou da mulher nua; a mão masculina que tenta acompanhar, com sua própria masturbação, a autônomia da masturbação clitoriana. E ele se irrita por não estar dando “as cartas”, por estar excluído desse modus operandi do orgasmo feminino.

Os inquisidores Kramer e Sprenger estão capturados um certo gozo sexual masculino mas não necessariamente ejaculatório. Estão presos a um gozo discursivo (fálico) sobre o gozo não-fálico da mulher, do ser feminino ... Feminino significa, literalmente minos fé, menos fé, fé de menos, ser de pouca fé ou menos merecedor de fé; evidentemente que esta é uma construção masculina acerca do feminino; o fato é que: “quem não sabe rezar xinga Deus”

O que quer uma mulher? – também os inquisidores – e por que não? - fazem esta pergunta. Caetano Veloso tem razão: “cada um sabe a dor e delícia de ser o que é”. A dor e delícia – ‘dor-delícia’ - é o próprio gozo na perspectiva psicanalítica freudiana-lacaniana.

INFIBULAR, EXTIRPAR O CLITÓRIS – ESTA É A ORDEM!

Lilith, seu ser insubmisso e particularmente seu clitóris provocam ainda (e desde sempre) reações de medo que não partem somente dos homens, mas também das mulheres e das sociedades e culturas. Porém, estas amedrontadas reações não têm se limitado aos discursos e ao plano simbólico. Existem homens e países (principalmente da África saariana, parte da Ásia e do Oriente Médio) que utilizam inúmeras justificativas sagradas e profanas para esconder, conscientemente, seus medos de Lilith e, então, partir para a infibulação e a excisão do clitóris de mulheres jovens não chegaram sequer à adolescência.

Infibular consiste em ‘costurar’ sem qualquer recurso anestésico os pequenos e mesmo os grandes lábios da genitália como recurso de garantir uma segunda pureza, virgindade, da mulher (a primeira é o hímen preservado) para aplacar e “apagar”-lhe a sexualidade. Deixa-se um pequeno orifício para o fluxo do sangue menstrual. Porém se este orifício for muito pequeno e ‘desconfortável ‘ à penetração do pênis do marido, este pode ampliar o tamanho fazendo uso de uma faca de ponta. Pais e mães exibem, com orgulho e cobiça financeira, as marcas da infibulação das filhas. Noivas que sofreram infibulação e excisão do clitória têm preços elevados no mercado de dotes daqueles países que avaliam tais práticas como patrimônios culturais e fazem uso da religião muçulmana para justifica-las perante Alá, a sociedade e o mundo. Por ocasião do parto, elas são desinfibuladas – mas, depois, são reinfibuladas não raras vezes a pedido insistente das mesmas. A infibulação chamada “faraônica” pode destruir a vulva, deixando no lugar desta uma cicatriz.

A excisão (extirpação) do clitóris é praticada geralmente por homens (há casos raros de mulheres praticantes). Pais (e mesmo mães) levam filhas pre-adolescentes e, ato contínuo, prendem por trás as pernas abertas da menina expondo-lhe a genitália a homens que utilizam instrumentos perfuro-cortantes como lâminas de barbear, navalhas, tesoura, lâminas flexíveis ... e espinhos de acácia para fazer a sutura. Também na excisão não se faz uso de anestesia – embora seja freqüente o emprego álcool e de urtiga (cansanção) para que uma dor maior (provocada pelo álcool ou pela urtiga) suporte a “menor” , o corte do clitóris. A excisão pode ser complementada pela infibulação dos pequenos lábios ou de toda a genitália.
Há mulheres, inclusive com formação universitária, que defendem estas práticas, têm orgulho de serem infibuladas ou excisadas. E acusam de racismo e de preconceito ocidental contra as mulheres qualquer crítica estrangeira a estes recursos de repressão física à sexualidade feminina.

“PU-TA!” , “PU-TA!”, “VAMOS ESTUPRAR!” ... : ESTA É A ORDEM!
"CA-LOU-RA"!, "CA-LOU-RA!", "VAMOS JOGAR ÁCIDO NA CARA DELA!" ... : ESTA É A ORDEM!

Estupradores e veterano(a) têm medo de Lilith.

O arquétipo de mulher insubmissa que Lilith encarna sobreviveu em São Paulo, Brasil, na última semana de outubro de 2009 d.C, na estudante Geisy Arruda da Universidade Bandeirante de São Paulo (Uniban) – “quarta maior universidade do Brasil em matrículas, está em 159º lugar entre 175 avaliadas” (CASTRO, 2009). Geisy não estava se masturbando nem praticava nenhum “ato carnal” à luz das convenções ou na contra luz das convenções, não questionava os homens com a pergunta: “Por que devo deitar-me embaixo de ti? Por que devo abrir-me sob teu corpo?”. Naquela última semana de outubro, em que o mundo perdera Lévi-Strauss, Geisy irritou os 700 estudantes universitários masculinos na genitália e na ideologia machista, da Uniban, porque usava um vestido curto nas salas e corredores da instituição de educação. Na avaliação de Suplicy (2009, p. A3),
Não. Não foi a impropriedade da roupa, mas o desejo, o medo e a raiva que a roupa despertou – igualmente, mas por motivos diferentes – em homens e mulheres. A inveja e o reprimido provocaram a mesma reação.

Contra Geisy, tais homens não julgaram, não praticaram condenação inquisitorial, não a infibularam ou extirparam o clitóris da jovem. Contra a vontade dela, xingaram-na - “pu-ta!”, ”pu-ta!” (BARROS E SILVA, 2009, p. A2), tocaram e machucaram, filmaram e fotografaram seu corpo.; Desesperada, Geisy se trancou na sala de aula e a turba – recém saída das trevas do século 16 – chutava a maçaneta da porta, pressionava porta e janelas e pedia a professores e funcionários, além de alguns poucos colegas, que a protegiam (até a chegada da Polícia que a escoltou até fora da universidade). Pênis talvez em riste, a turba pedia que seus providenciais protetores a entregasse pois queriam, explicitamente, estuprá-la: “vamos estuprar!”, “solta ela, professor!” (BARROS E SILVA, 2009, p. A2).

Para Calligaris (2009, p. E11),

O estupro (e o trote universitário que é sinônimo do trote da pior barbárie, contra calouras e calouros .. de cursos de Medicina e outros) é, para essas turbas, o grande remédio: punitivo e corretivo. Como assim? Simples: uma mulher se aventura a desejar? Ela tem a imprudência de “querer”? Ela ousa aventurar ser estudante de Medicina (ou de outro curso universitário), ela nos desafia , debaixo de nossos bigodes, mostrando desejo e querer? Pois vamos lhe lembrar que sexo, para ela, deve permanecer um sofrimento imposto, uma violência sofrida – nunca uma iniciativa ou um prazer. Pois vamos mostrar para ela quantos testículos mandam na universidade ...

A violência e o desprezo aplicados coletivamente pelo grupo só servem para esconder a insuficiência de cada um, se ele tivesse que responder ao desejo e às expectativas de uma parceira, em vez de lhe impor uma transa forçada.
A direção da universidade – após sindicância - resolve expulsar a aluna – fazendo lembrar a expulsão de Lilith, por Deus, para o Mar Vermelho a fim de que ela fosse conviver com os demônios que por lá viviam. Conclusão do processo inquisitorial, século XXI da era cristã:
“Foi constatado que a atitude provocativa da aluna buscou chamar a atenção para si por conta de gestos e modos de se expressar, o que resultou numa reação coletiva em defesa do ambiente escolar”. Geisy, diz a nota, ensejou “de forma explícita os apelos dos alunos” (BARROS E SILVA, 2009, p. A2).

Para a Uniban, então, a aluna teria provocado “de forma explícita os apelos dos alunos”. Lilith e seus detratores sobrevivem. Pressionada pela expectativa de prejuízo financeiro graças à possível redução do número de matrículas em 2010, pelo Ministério da Educação, a Ordem dos Advogados do Brasil, a União Nacional dos Estudantes, o Ministério Público, a imprensa e a opinião pública, a direção da Uniban marca entrevista coletiva onde revoga a expulsão. Agora, a promessa de que a aluna circulará por outro espaço distante do palco da tragicomédia anterior. Anterior sim, porque a segunda tragicomédia é enquistar a vítima, quase um cárcere privado. Os torquemadas e outros inquisidores continuarão a circular, livremente. Como se nada tivesse acontecido.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

“Por que devo deitar-me embaixo de ti? Por que devo abrir-me sob teu corpo?”. Enganou-se quem pensou que estas perguntas feitas a Adão por Lilith, sua primeira companheira humana, ficariam cada vez mais esmaecidas de tão distantes quanto desbotadas no tempo e no espaço – com o passar dos séculos e as transformações das sociedades e, principalmente, dos seus representantes masculinos. Um engano, certamente, de forte aroma iluminista.
Mais que uma memória mitológica, arquetípica, Lilith vive hoje porque insistem em sobreviver as formas mais antigas de violência contra a mulher e as “subsombras desumanas dos linchadores” (Caetano Veloso) tendem a sofisticar mais e mais suas fogueiras e seus baús de perversões e deles retirar armas que julgávamos enferrujadas e imprestáveis ao uso.
Não é nada confortável que, depois do itinerário crítico que fizemos pelos olhares e ações que as civilizações judaicas, cristãs e muçulmanas dirigiram contra Lilith, tenhamos agora que juntar nossas desculpas às desculpas de Calligaris:

Agora, devo umas desculpas a todas as mulheres que militam ou militaram no feminismo. Ainda recentemente, pensei (e disse, numa entrevista) que, ao meu ver, o feminismo tinha chegado ao fim de sua tarefa histórica. Em particular, eu acreditava que, depois de 40 anos de luta feminista, ao menos um objetivo tivesse sido atingido: o reconhecimento pelos homens de que as mulheres (também) desejam. Pois é, os fatos provam que eu estava errado. (CALLIGARIS, 2009, p. E11)

Mas nossa força e nossa vontade de lutar pelo direito às diversidades, e de suportar todas as adversidades, continuam vivas tanto quanto Lilith e Levi-Staruss continuam vivos – não importando as lógicas e as mitológicas que nos ajudam a acreditar nessas sobrevidas. E a acreditar que, como Fernando Pessoa/Alberto Caeiro, continuaremos construindo o caminho mesmo que não cheguemos a Córdoba. A foto – a seguir - e já referida na NOTA METODOLÓGICA nos ajuda a continuar caminhando ...

REFERÊNCIAS

ALCORÃO Sagrado. São Paulo, Tangará, 1975.
BARROS E SILVA, Fernando de. Os linchadores da Uniban. Folha de São Paulo. São Paulo, 9 de novembro de 2009. P.. A2.
BÍBLIA Sagrada. São Paulo, Vida, 1984.
CALLIGARIS, Contardo. A turba da Uniban. Folha de São Paulo. São Paulo, 5 de novembro de 2009. p. E11.
CASTRO, Ruy. Perna de fora. Folha de São Paulo. São Paulo, 11 de novembro de 2009. p. A2.
ESCOLÁSTICA, Maria. O gozo feminino. São Paulo, Iluminuras, 1995, 207 p.
HITE, Shere. O Relatório Hite: um profundo estudo sobre a sexualidade feminina / The Hite Report / Rio de Janei

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