sexta-feira, 13 de março de 2015

 A REINVENÇÃO DA NOITE PELOS SHOPPING CENTERS


Vicente D Moreira


Humanos, temos um horror atávico às trevas, à falta de luz. Quando a enérgica elétrica é suspensa em nossa rua ouvimos gritos; quando ela retorna ouvimos gritos. 

Da primeira faísca mãe da primogênita chama de fogo, passando pela mitologia judaica e cristã (... no início as trevas cobriam a face do universo; Deus disse: faça- a luz (fiat lux); e a luz foi feita" ...),  transitando pelos lampiões de gás até as últimas lâmpadas de LED permanece o nosso horror à escuridão, às trevas. que aprendemos a cultivar/cultuar/'culturar'. E a temer.


Nos shopping centers a noite é eterna e reinventada; nove horas da manhã ou nove horas da noite é sempre noite nas sempre iluminadas  lojas, vitrines e espaços comuns (ruas). Iluminadas à meia luz, até porque à noite impera a meia luz, a indefinição ... momento em que  'todos os gatos são pardos'.

Encerrado o expediente, as trevas retornam. mas, no início da manhã, seres humanos (vigias, seguranças, funcionários das lojas) ou seres maquinais (computadores) reeditam o gesto divino do 'fiat lux', refazem o mito do eterno retorno. 

Claro que os shopping centers de citações arquitetônicas e tecnológicas mais modernas constroem tetos que permitem a visita da luz solar. Mas a noite das vitrines, lojas e ruas continua reinventada. E eterna. Não se permite o excesso de luz e de verdade do sol. Sob a clareira iluminada pela luz solar dificilmente encontramos bancos para que sentem os consumidores; há automóveis expostos, bosques, pequenos quiosques. Alí. não é estimulado  o lazer contemplativo, ou seja, aquele em que contemplamos o mar, os transeuntes, os veículos, as árvores, arbustos ... sem pressa ...

Os consumidores caminhantes, são submetidos à   ilusão, à fantasia de, sob estas clareiras, estarem mergulhados na ecologia de uma qualquer  praça urbana; sim, com a segurança de que não gozam na versão real de uma praça na beira do mar ou à margem do asfalto.

Os bancos próximos a essas clareiras estão dispostos sob uma condição liminar em termos de iluminação: não recebem totalmente a luz do sol nem completamente a luz elétrica; são seres de fronteira. Por outro lado, eles estão implantados, dispostos, de modo que os olhos dos consumidores estejam olhando sempre para os olhos das vitrines. É nas vitrines que mora a felicidade; e elas não fazem por menos e dizem  (como a parodiar Chico Buarque):

'olhos nos olhos
quero ver o que você diz
quero ver como suporta
me ver tão feliz"

Qual o suporte que sustenta os olhos do consumidor e seu fascínio pelos olhos das vitrines? A infelicidade consumista. Uma dúzia de sacolas em cada mão, e os olhos infelizes nos olhos felizes da vitrine - o habitat da felicidade. 

Se Guimarães Rosa diz que 'perto de muita água tudo é feliz', a vitrine em sua noite eterna insufla: 'perto de muitas mercadorias tudo é felicidade'. E haja luzes, projéteis lançados sobre as mercadorias  com precisão milimétrica. E subliminar.

Os shopping centers modernos aprisionam  com odores, confortos táteis  e temperaturas agradáveis (orgia dos sentidos!) sseus consumidores em suas noites reinventadas, eternes e eclipsadas. Noites maternais e intrauterinas. Para onde eles olharem haverá sempre a repousante e aconchegante noite eterna das vitrines. Quando olham para cima podem ver o céu - e não automóveis, gente, barulho. Mas o céu é o limite, tanto quanto a ilusão de que os limites do cartão e do saldo bancário são um céu sem limites. E sem solaridades excessivamente claras. E incômodas. Tocatas de fuga.

"O sol e a morte não devem ser encarados de frente" - diria Pascal em visita à noite eterna dos shopping centers.

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