quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

S PAULO - POESIA.NET - JOÃO CABRAL




Número 325 - Ano 13
São Paulo, quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015
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«Cada vez que me debruço / 
sobre minha própria face / 
não me vejo como sou / 
mas como sou no disfarce.» 







AS CRIATURAS DE JOÃO CABRAL



João Cabral de Melo Neto
João Cabral de Melo Neto

Amigas e amigos,

Fevereiro chegou, e é hora de

 retomar as edições quinzenais 
do poesia.net. Este é, portanto, 
o primeiro boletim de 2015. 
Desta vez, já em nosso décimo
 terceiro ano de estrada, vamos
 empreender uma viagem de volta ao
boletim n. 1, revisitando 
a obra do poeta pernambucano
 João Cabral de Melo Neto (1920-1999).

Nome dos mais celebrados e 

influentes da poesia brasileira
 no século XX, Cabral dispensa 
apresentações. Para este
 boletim, selecionei alguns poemas
 que nos permitem fazer 
um breve passeio pela sua obra do 
poeta pernambucano.
•o•

Comecemos por um de seus textos

 mais conhecidos,
 “Tecendo a Manhã”,  do livro

 A Educação pela Pedra, de
1966. Nesse texto antológico, 

o poeta enxerga na rede de galos
 que cantam na madrugada um verdadeiro 

tear no qual os gritos
das aves se entrelaçam com os fios do sol 

e vão compondo
o tecido luminoso da manhã.

Observe-se um detalhe: em relação 

às aves, não aparece
nenhuma referência a “canto” ou “cantar”. 

E não é por acaso.
Para o efeito “têxtil” do poema, “grito” 

é mais indicado. Trata-se
de um vocábulo que parece conter, no 

estrato sonoro, a ideia de
algo mais fino — com jeito de fio, ou fibra

 — e portanto mais
adequado à trama com os raios de sol.

“Tecendo a Manhã” é, com toda a razão, 

um dos poemas
mais apreciados de João Cabral.

•o•

Praticante e proponente de uma poesia

 marcada pela
 concretude das imagens, Cabral tornou-se

 uma espécie de
 porta-bandeira da negação do lírico, 

um autor avesso à poesia
subjetiva e sentimental. Isso leva alguns

 a entender que a obra
 do poeta recifense passou em branco 

pelos temas do amor e
 do erotismo. Não é verdade.

Veja-se este texto, “Paisagem pelo Telefone”,

 publicado
originalmente no livro Quaderna (1960). 

Aqui, o poeta
descreve os devaneios eróticos de um 

homem que conversa
 com uma mulher — namorada? — pelo telefone. 

O desenvolvimento
 é típico do estilo cabralino: uma imagem

 puxa outra, todas sempre
construídas em cima de referências concretas.

Primeiro, a conversação telefônica

 com a mulher o faz
supor que ela se encontra numa sala

 com duzentas janelas,
“toda de luz invadida”. Para reforçar a ideia de

 completa ausência
de sombras, o homem supõe que a sala está 

aberta para uma praia
 pernambucana, “no prumo do meio-dia”.

 A paisagem marinha traz
à cena jangadas, velas brancas. Observem:

 nada de abstrações.

Na quadra que começa com “Pois, assim,

 no telefone”, o homem
 passa a dizer à interlocutora que também

 a imagina despida, naquela
 claridade do meio-dia nordestino:

 “eu diria / que estavas de todo nua,
 só de teu banho vestida”. Por fim, sedutor

 e malicioso, afirma que a
amiga é uma criatura que tem claridade própria. 

Por isso, diz ele, a
água do banho apenas “libera a luz que já tinhas”.

Também em outros textos deQuaderna,

 Cabral envereda
 pela dicção sensual, quase erótica. 

Um exemplo é o poema
“Jogos Frutais” (não transcrito aqui), 

no qual ele traça um
paralelo entre a mulher e diversas frutas

 nordestinas. Num
tom que às vezes lembra o Cântico dos 

Cânticos com sotaque
 pernambucano, ele canta: “És tão elegante quanto

 / um pé de cana, /
despindo a perna nua / de dentre a palha. / 

E tens a perna / do mesmo
metal sadio / da cana esbelta”.


 Num trecho de erotismo mais explícito,
diz: “Não és uma fruta fruta / só para o dente, 

/ nem és uma fruta flor,
 / olor somente. / Fruta completa: / 

para todos os sentidos,
/ para cama e mesa”.

•o•

O próximo poema vem do livro 

A Escola das Facas, de
 1980. Trata-se de “Forte de Orange, 

Itamaracá”. Nele, João
 Cabral de Melo Neto descreve o embate 

do tempo e seu
inescapável poder corrosivo contra as

 temíveis armas de
guerra dessa fortificação construída pelos

 holandeses em 1631.
Após a expulsão dos flamengos em 1654, 

o lugar foi abandonado
e depois ocupado pelos portugueses. 

Hoje, tombado, é atração turística.

Composto de 24 versos sem separação 

de estrofes, o texto é
todo marcado por rimas toantes em /u/ 

nos versos pares: hirsuto,
musgo, pulso, absoluto etc. Os oito versos

 finais descrevem, com
 toda a cerimônia das tragédias, a rendição

 inexorável das coisas
 diante do tempo. É o princípio da água mole 

em pedra dura aplicado
 a uma edificação militar que, quando construída, 

parecia eterna e
inviolável. No final, conforme o verso de Cabral, 


o ferro se rende
ao musgo.

Embora pouco citado, esse é um dos

 poemas mais
expressivos de João Cabral.

•o•


Seria pecado capital passar pela obra de

 João Cabral
de Melo Neto e não falar de Sevilha. 

Como se sabe, o poeta,
diplomata de carreira, morou nessa cidade 

espanhola e escreveu
 copiosamente sobre as gentes e costumes 

sevilhanos. Além de
poemas dispersos em vários livros, ele 

publicou uma coletânea,
 Sevilha Andando (1990), totalmente dedicada 

a essa cidade andaluz.
Desse volume pincei o poema 

“Uma Bailadora Sevilhana”.

Nas oito parelhas que perfazem o texto,

 quem fala é a mulher
referida no título, uma dançarina de flamenco.

 Fala de si e de sua arte,
 um dos símbolos da cultura espanhola — 

mais especificamente da
região de Andaluzia, comunidade autônoma

 localizada no sul da
Espanha, cuja capital é exatamente a Sevilha 

que tanto encantou
o autor de Quaderna.

Nos dois versos finais, a dançarina sevilhana

 faz uma síntese magistral: “dançar flamenco 
é cada vez; / é fazer; é um faz, nunca um fez”.
 Ela diz isso em tom de crítica a outra bailadora 

que, a seu ver,
“dança repetido; / dança sem se expor, sem perigo”. 

Essa artista
rigorosa, minuciosa, que tem todo o jeito de ser 

um alter ego de
João Cabral, fala na verdade de qualquer arte. 

O ato de criar
 pressupõe correr riscos e fugir da repetição.

•o•

Eis outro exemplo de como João Cabral trabalha com
 questões abstratas sem abrir mão das imagens e do
vocabulário concretos. Em “Questão de Pontuação”,
 poema de Agrestes (1985), ele traça paralelos entre o
 texto e a vida, usando como referência três sinais de
 pontuação: a exclamação, a interrogação e o ponto final.


Abraço, e um bom 2015 para todos nós.

•o•



JOÃO CABRAL: BREVE NOTÍCIA

João Cabral de Melo Neto nasceu no Recife
em 1920 e passou parte da infância nos
engenhos da família no interior de Pernambuco.
De volta a Recife, estudou no Colégio Marista, onde
 concluiu o curso secundário. No início dos anos 40,
 muda-se para o Rio de Janeiro. Funcionário público,
prestou concurso em 1945 para a carreira diplomática,
 que exerceu até a  aposentadoria em 1990, no cargo de
 embaixador. Morou em vários países, como Senegal,
Portugal, Espanha, Inglaterra, França e Equador. Cabral
 faleceu no Rio de Janeiro em 1999.

Fazem parte de sua obra poética títulos como
 Pedra do Sono, 1942; O Engenheiro, 1945; O
Cão sem Plumas
, 1950; O Rio, 1954; Quaderna,
1960; A Educação pela Pedra, 1966; Morte e Vida
Severina e Outros Poemas em Voz Alta
, 1966;
Museu de Tudo, 1975;A Escola das Facas, 1980;
Agrestes, 1985; Auto do Frade, 1986; Crime na
Calle Relator
, 1987; e Sevilha Andando, 1989.


•o•


Cícero Dias - Casal na varanda

Cícero Dias (1907-2003), pintor pernambucano, Casal na varanda



TECENDO A MANHÃ

Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito que um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo
para que a manhã, desde uma teia tênue
se vá tecendo, entre todos os galos.


2.

E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.


          De A Educação pela Pedra (1966)



Cícero Dias - Casal no barco
Cícero Dias, Casal no barco




PAISAGEM PELO TELEFONE

Sempre que no telefone
me falavas, eu diria
que falavas de uma sala
toda de luz invadida,

sala que pelas janelas,
duzentas, se oferecia
a alguma manhã de praia,
mais manhã porque marinha,

a alguma manhã de praia
no prumo do meio-dia,
meio-dia mineral
de uma praia nordestina,

Nordeste de Pernambuco,
onde as manhãs são mais limpas,
Pernambuco do Recife,
de Piedade, de Olinda,

sempre povoado de velas,
brancas, ao sol estendidas,
de jangadas, que são velas
mais brancas porque salinas,

que, como muros caiados
possuem luz intestina,
pois não é o sol quem as veste
e tampouco as ilumina,

mais bem, somente as desveste
de toda sombra ou neblina,
deixando que livres brilhem
os cristais que dentro tinham.

Pois, assim, no telefone
tua voz me parecia
como se de tal manhã
estivesses envolvida,

fresca e clara, como se
telefonasses despida,
ou, se vestida, somente
de roupa de banho, mínima,

e que por mínima, pouco
de tua luz própria tira,
e até mais, quando falavas
no telefone, eu diria

que estavas de todo nua,
só de teu banho vestida,
que é quando tu estás mais clara
pois a água nada embacia,

sim, como o sol sobre a cal
seis estrofes mais acima,
a água clara não te acende:
libera a luz que já tinhas.

          De Quaderna (1960)




Cícero Dias - Mulher e guarda-chuva
Cícero Dias, Mulher e guarda-chuva




FORTE DE ORANGE, ITAMARACÁ

A pedra bruta da guerra,
seu grão granítico, hirsuto,
foi toda sitiada por
erva-de-passarinho, musgo.
Junto da pedra que o tempo
rói, pingando como um pulso,
inroído, o metal canhão
parece eterno, absoluto.
Porém o pingar do tempo
pontual, penetra tudo;
se seu pulso não se sente,
bate sempre, e pontiagudo,
e a guerrilha vegetal
no seu infiltrar-se mudo,
conta com o tempo, suas gotas
contra o ferro inútil, viúvo.
E um dia os canhões de ferro,
sua tesão vã, dedos duros,
se renderão ante o tempo
e seu discurso, ou decurso:
ele fará, com seu pingo
inestancável e surdo,
que se abracem, se penetrem,
se possuam, ferro e musgo.

          De A Escola das Facas (1980)




Cícero Dias - Mulher na varanda
Cícero Dias, Mulher na varanda




UMA BAILADORA SEVILHANA

Como e por que sou bailadora?
Quando era entre menina e moça

tinha comprida cabeleira
que me vinha até as cadeiras.

Me diziam: com essas tranças
não pode não votar-se à dança.

Então, me ensinam a dançar.
Sou? O que não pude decorar.

Vendo famosa bailadora:
ei-la apagada, quase mocha.

"Não te agrada F... de Tal,
que todo dia sai no jornal?"

"Não gosto: dança repetido;
dança sem se expor, sem perigo;

dançar flamenco é cada vez;
é fazer; é um faz, nunca um fez."

          De Agrestes (1985)




Cícero Dias - Paisagem com o bondinho do Pão de Açúcar
Cícero Dias, Paisagem com o bondinho do Pão de Açúcar




QUESTÃO DE PONTUAÇÃO

Todo mundo aceita que ao homem
cabe pontuar a própria vida:
que viva em ponto de exclamação
(dizem: tem alma dionisíaca);

viva em ponto de interrogação
(foi filosofia, ora é poesia);
viva equilibrando-se entre vírgulas
e sem pontuação (na política):

o homem só não aceita do homem
que use a só pontuação fatal:
que use, na frase que ele vive
o inevitável ponto final.

          De Agrestes (1985)


poesia.netwww.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2015



João Cabral de Melo Neto
   In Poesia Completa e Prosa
   Nova Aguilar, 1a. ed., Rio de Janeiro, 1994
______________
* Antonio Brasileiro, "Toada", in Poemas Reunidos (2005)
______________
- Todas as imagens: pinturas do pernambucano Cícero Dias (1907-2003)
   



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