Manoel de Barros
Amigas e amigos,
Após longa dedicação ao encantamento de palavras e à administração do inútil, o poeta mato-grossense Manoel de Barros abriu as asas e voou para o território da imaginação.
Transformou-se, quem sabe, num tuiuiú — ou, como ele escreveu certa vez, tu-you-you, um pássaro cheio de pronomes.
Lá se foi o poeta, aos 97 anos de meninice.
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Manoel Wenceslau Leite de Barros nasceu em Cuiabá-MT em 1916 e faleceu em Campo Grande-MS, em 13 de novembro último. Estudou durante dez anos num internato e depois transferiu-se para o Rio de Janeiro a fim de continuar os estudos. Formou-se em direito em 1941.
Há uma história anedótica a respeito do primeiro livro de Manoel de Barros. A primeira surpresa: não era poesia. Aos 18 anos, no Rio, o poeta entrou para a Juventude Comunista, a ala jovem do Partido Comunista do Brasil (PCB). Nessa época, ele pichou numa estátua a frase "Viva o Comunismo".
A polícia política do governo Getúlio Vargas foi buscá-lo na pensão onde morava. A dona do lugar pediu que não prendessem o menino. Era um rapaz tão bom que até escrevera um livro chamado Nossa Senhora de Minha Escuridão. O policial que chefiava a operação aceitou o pedido. Mas Manoel de Barros nunca mais viu o livro, que foi confiscado. Era cópia única.
A estreia do poeta se daria apenas em 1937, com o lançamento de Poemas Concebidos sem Pecado, uma edição artesanal de apenas 20 exemplares, mais um, o do autor. O segundo livro, Face Imóvel, foi lançado em 1942.
Após o fim da Segunda Guerra Mundial, em 1945, Manoel rompe com o PCB. O motivo: discordou quando o líder Luís Carlos Prestes apoiou a permanência de Getúlio no governo, mesmo após ter amargado dez anos de prisão política, período no qual Getúlio deportou sua esposa, a alemã Olga Benário Prestes, judia, entregando-a para a morte nas mãos dos nazistas.
Desapontado, Manoel foi correr mundo. Viveu na Bolívia e no Peru e também em Nova York, onde fez cursos de cinema e pintura. Nos anos 60, retorna ao Mato Grosso para dedicar-se à criação de gado.
Nesse momento, ocorre uma virada em sua poesia, que se volta cada vez mais para as coisas do chão, os animais, a vida simples, as crianças. Enfim, a poesia dedicada a contemplar “as grandezas do ínfimo” e que lhe valeu merecida fama e reconhecimento, a partir dos anos 80.
Duas características saltam à vista na poesia desse mato-grossense. Uma se define num verso: “Não gosto de palavra acostumada”. Ou ainda: “O sentido normal das palavras não faz bem ao poema”. E também: “Minhocas arejam a terra; poetas, a linguagem”. Com esses princípios em mente, o poeta subverte a sintaxe, reinventa palavras e cria o ambiente para a eclosão da centelha poética.
A outra característica está ligada às coisas pequenas, as “insignificâncias” cantadas pelo poeta. Essa poesia do miúdo lhe permite conquistar a simpatia do leitor, que reconhece nos versos de Manoel de Barros o esforço de recuperar a liberdade no ato de ver as coisas do mundo, que perdemos à medida que nos afastamos da infância.
Não é por acaso que entre os poemas mais citados de sua autoria estão alguns incluídos em quatro livros dedicados a leitores infantis, como O Fazedor de Amanhecer, título que tomei por empréstimo para este boletim.
No poema “Língua Mãe”, por exemplo, ele discute nossa identificação ideológica com a língua dentro da qual passamos a infância. Escrevi dentro porque a língua é um ambiente cultural, social, onde apreendemos o mundo, a convivência, os sentimentos. É por isso que o poeta declara: “Não sinto o mesmo gosto nas palavras: oiseau e pássaro”. Pessoalmente, concordo. Até acho que oiseau não voa...
O propósito confesso de Manoel de Barros é “renovar o homem usando borboletas”.
Portanto, chega de conversa. Vejam os textos aí ao lado e borboleteiem-se.
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Não é a primeira vez que Manoel de Barros comparece a esta página. Ele já esteve aqui na edição n. 61, que circulou em março de 2004. Esta, infelizmente, é uma edição que assinala sua passagem para o estágio de pássaro. Viva Manoel de Barros.
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SÓ DEZ POR CENTO É MENTIRA Para saber mais sobre a vida e a obra de Manoel de Barros, assista no YouTube ao documentário Só Dez por Cento é Mentira (2008), dirigido por Pedro Cezar.
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LANÇAMENTO
Eu Fui Soldado de Fidel — Autobiografia de Fidelina González • Renata Pallottini A poeta, romancista e dramaturga Renata Pallottini lança nesta quinta-feira o livro Eu Fui Soldado de Fidel – Autobiografia de Fidelina González, publicado pela Editora Hucitec.
Data: 27/11, quinta-feira Hora: 19h00 Local: Academia Paulista de Letras Largo do Arouche, 324 São Paulo – SP Tel: (11) 3892-7772
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O fazedor de amanhecer
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Manoel de Barros
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Alfredo Volpi, Fachada
[A MAIOR RIQUEZA]A maior riqueza do homem é a sua incompletude. Nesse ponto sou abastado. Palavras que me aceitam como sou — eu não aceito. Não aguento ser apenas um sujeito que abre portas, que puxa válvulas, que olha o relógio, que compra pão às 6 da tarde, que vai lá fora, que aponta lápis, que vê a uva etc. etc. Perdoai. Mas eu preciso ser Outros. Eu penso renovar o homem usando borboletas.
[De Retrato do Artista Quando Coisa, 1998]
[O SENTIDO NORMAL DAS PALAVRAS]
O sentido normal das palavras não faz bem ao poema. Há que se dar um gosto incasto aos termos. Haver com eles um relacionamento voluptuoso. Talvez corrompê-los até a quimera. Escurecer as relações entre os termos em vez de aclará-los. Não existir mais rei nem regências. Uma certa liberdade com a luxúria convém.
[De O Guardador de Águas, 1989]
Volpi, Itanhaém
[A COR DO AMARANTO] Não sei bem de que cor é a cor do amaranto. Mas pelo amar e pelo canto fica bem esse amaranto aí (melhor do que se eu usasse perpétua, que é o outro nome que se põe a essa flor). Amaranto murmura melhor.
[De Concerto a Céu Aberto para Solos de Ave, 1991]
[AS COISAS QUE NÃO TÊM DIMENSÕES]
(trecho) As coisas que não têm dimensões são muito importantes. Assim, o pássaro tu-you-you é mais importante por seus pronomes do que por seu tamanho de crescer.
É no ínfimo que eu vejo a exuberância.
[De Livro Sobre Nada, 1996]
Volpi, Festa de São João
EXERCÍCIOS DE SER CRIANÇA
No aeroporto o menino perguntou: — E se o avião tropicar num passarinho? O pai ficou torto e não respondeu. O menino perguntou de novo: — E se o avião tropicar num passarinho triste? A mãe teve ternuras e pensou: Será que os abusos não são as maiores virtudes da poesia? Será que os despropósitos não são mais carregados de poesia do que o bom senso? Ao sair do sufoco o pai refletiu: Com certeza, a liberdade e a poesia a gente aprende com as crianças. E ficou sendo.
[De Exercícios de Ser Criança, 1999]
Volpi, Grande Fachada Festiva
A LÍNGUA MÃE
Não sinto o mesmo gosto nas palavras: oiseau e pássaro. Embora elas tenham o mesmo sentido. Será pelo gosto que vem de mãe? de língua mãe? Seria porque eu não tenha amor pela língua de Flaubert?
Mas eu tenho. (Faço este registro porque tenho a estupefação de não sentir com a mesma riqueza as palavras oiseau e pássaro) Penso que seja porque a palavra pássaro em mim repercute a infância E oiseau não repercute. Penso que a palavra pássaro carrega até hoje nela o menino que ia de tarde pra debaixo das árvores a ouvir os pássaros. Nas folhas daquelas árvores não tinha oiseaux Só tinha pássaros. E o que me ocorre sobre língua mãe.
[De O Fazedor de Amanhecer, 2001]
Volpi, Casario (1952)
POEMA
A poesia está guardada nas palavras — é tudo que eu sei. Meu fado é o de não saber quase tudo. Sobre o nada eu tenho profundidades. Não tenho conexões com a realidade. Poderoso para mim não é aquele que descobre ouro. Para mim poderoso é aquele que descobre as insignificâncias (do mundo e as nossas). Por essa pequena sentença me elogiaram de imbecil. Fiquei emocionado. Sou fraco para elogios.
[De Tratado Geral das Grandezas do Ínfimo, 2001]
FRASES
Minhocas arejam a terra; poetas, a linguagem.
[Do Livro de Pré-Coisas, 1985]
Um girassol se apropriou de Deus: foi em Van Gogh.
* Poesia é voar fora da asa.
[De O Livro das Ignorãças, 1993]
Não gosto de palavra acostumada.
* Do lugar onde estou já fui embora.
[De Livro sobre Nada, 1996]
* Noventa por cento do que escrevo é invenção; só dez por cento que é mentira.
[De Ensaios Fotográficos, 2000]
Escrever o que não acontece é tarefa da poesia.
* Pra meu gosto a palavra não precisa significar — é só entoar.
* No gorjeio dos pássaros tem um perfume de sol?
* Eu queria pegar na semente da palavra.
[De Menino do Mato, 2010]
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