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Charles Simic lê seu poema "Stone" ("Pedra")
PEDRA
Entrar numa pedra.
Esse seria meu caminho.
Que outros se transformem em pombos
ou rilhem seus dentes de tigre.
Eu fico feliz em ser uma pedra.
De fora, a pedra é um enigma:
ninguém sabe como decifrá-la.
Mas dentro deve ser calma e quieta,
mesmo quando uma vaca a pisa com todo o peso,
ou quando uma criança a atira no rio;
a pedra desce devagar, impassível
para o fundo do rio
onde os peixes vêm bater nela
e escutar.
Já vi centelhas saltando
de duas pedras friccionadas.
Então lá dentro talvez não seja escuro.
Talvez haja uma lua brilhando
de algum lugar, como detrás de uma colina —
com luz apenas para fazer
os estranhos escritos, os mapas de estrelas
nas paredes internas.STONE
Go inside a stone
That would be my way.
Let somebody else become a dove
Or gnash with a tiger's tooth.
I am happy to be a stone.
From the outside the stone is a riddle:
No one knows how to answer it.
Yet within, it must be cool and quiet
Even though a cow steps on it full weight,
Even though a child throws it in a river;
The stone sinks, slow, unperturbed
To the river bottom
Where the fishes come to knock on it
And listen.
I have seen sparks fly out
When two stones are rubbed,
So perhaps it is not dark inside after all;
Perhaps there is a moon shining
From somewhere, as though behind a hill —
Just enough light to make out
The strange writings, the star charts
On the inner walls.
Vladimir Dunjic, pintor sérvio, A Mulher Apaixonada (2011)
ESCUTE
Tudo sobre você, minha
vida, é meio
faz de conta, meio realidade.
Somos como um casal
trabalhando à noite
numa fábrica de bombas.
Vá com cuidado, um diz
ao outro enquanto
ele a toma pela mão
e a conduz
ao topo de um prédio
de onde se vê toda a cidade.
Nessa hora, se se prestar
bem atenção,
ouve-se ao longe um carro
de bombeiros,
mas não os gritos de socorro.
E o silêncio
se torna mais profundo
quando se vê uma criança
saltando de uma janela
com o pijama em chamas.LISTEN
Everything about you,
my life, is both
make-believe and real.
We are like a couple
working the night shift
in a bomb factory.
Come quietly, one says
to the other
as he takes her by the hand
and leads her
to a rooftop
overlooking the city.
At this hour, if one listens
long and hard,
one can hear a fire engine
in the distance,
but not the cries for help,
just the silence
growing deeper
at the sight of a small child
leaping out of a window
with its nightclothes on fire.
Vladimir Dunjic, A Quinta Vida (2011), da série Nove Vidas de Gato
DEZEMBRO
Chove
e mesmo assim os desvalidos
vão
carregando placas-sanduíche —
uma anuncia
o fim do mundo
e a outra
os preços de uma barbearia próxima.DECEMBER
It snows
and still the derelicts
go
carrying sandwich boards —
one proclaiming
the end of the world
the other
the rates of a local barbershop.
Vladimir Dunjic, A Sétima Vida (2009), da série Nove Vidas de Gato
PASSARINHO
Uma ave me chama
da mais alta rama
de meu sonho.
Me chama do broto mais tenro da manhã
da comprida sombra
que a cada noite chega mais perto de meu coração,
me chama desde os confins do mundo.THE BIRD
A bird calls me
From a tall tree
In my dream.
Calls me from the pink twig of daylight
From the long shadow
That inches each night closer to my heart,
Calls me from the edge of the world.
Vladimir Dunjic, Euridica (2007), detalhePOEMA SEM TÍTULO
Digo ao chumbo:
por que você permitiu
ser moldado em bala?
Esqueceu os alquimistas?
Desistiu da esperança
de tonar-se ouro?
Ninguém responde.
Chumbo. Bala. Com nomes
como esses
o sono é longo e profundo.POEM WITHOUT A TITLE
I say to the lead
Why did you let yourself
Be cast into a bullet?
Have you forgotten the alchemists?
Have you given up hope
In turning into gold?
Nobody answers.
Lead. Bullet. With names
Such as these
The sleep is deep and long.
Vladimir Dunjic, quadro da série Véus
O INICIADO
São João da Cruz usava óculos escuros
quando passou por mim na rua.
Santa Teresa de Ávila, bela e circunspecta,
me apareceu abrindo as asas como uma gaivota.
“Ó alma perdida”, os dois gritaram,
“onde é teu lar?”
Eu era uma das bolas malabares da morte
e a cidade um circo místico
com todas as luzes embaçadas.
O espetáculo daquela noite já começara.
Numa avenida larga e pouco iluminada,
as vitrines esperavam por mim,
assistiam à minha passagem,
sabiam os pensamentos em minha cabeça.
Na igreja onde, segundo os jornais,
o infanticida
abrigou-se numa noite de frio,
sentei-me num banco soprando as mãos.
Como um pensamento esquecido e reevocado,
a neve recente na calçada
trazia pegadas frescas — algum mestre desconhecido
oferecendo-se para guiar meus passos.
Eu não fazia ideia do que estava acontecendo.
Quatro jovens agressivos barravam meu caminho,
três muito sérios e um
sorrindo como louco enquanto punha as mãos sobre mim.
Deixei que levassem minha capa de chuva
e saí dizendo a mim mesmo
que era importante manter a calma
e continuar a observar a si mesmo
como se fosse alguém completamente estranho.
Num endereço que me deram,
havia letras X brancas pintadas nas janelas.
Bati, mas ninguém veio abrir.
Depois, uma moça juntou-se a mim nos degraus.
Seu nome era Alma, um sinal auspicioso.
Ela conhecia uma dona de casa
que resolvia os enigmas da vida
e tinha voz de rainha suméria.
Conversamos longamente sobre isso
tremendo e batendo os pés.
No século XVI, ela me disse,
praticantes das ciências ocultas
eram queimados em gaiolas de ferro,
ou então eram vestidos de trapos
e pendurados em forcas douradas.
Uma vez, confessei, num quarto de hotel em Chicago
avistei no espelho alguém
que tinha meu rosto,
mas não lhe reconheci os olhos —
dois olhos duros e oniscientes.
A fome, o frio e a falta de sono
me trouxeram uma espécie de êxtase.
Andei pelas ruas como se perseguido por demônios,
tentando aquecer-me.
Havia o rio East,
havia o Hudson.
Suas águas brilhavam à meia-noite
como óleo nas lamparinas do santuário.
Algo estava para acontecer comigo.
Sobre isso não haveria mais nenhuma palavra depois.
Fiquei de pé, como se paralisado,
observando o céu limpo.
Estava tudo tão quieto
que se ouviria cair um alfinete.
Pensei ter escutado um alfinete cair
e comecei a procurá-lo
na cidade escura e deserta.
1986-2011THE INITIATE
St. John of the Cross wore dark glasses
When he passed me on the street.
St. Therese of Avila, beautiful and grave,
Came at me spreading her wings like a seagull.
"Lost soul," they both cried out,
"Where is your home?"
I was one of death's juggling balls.
The city was a mystic circus
With all of its lights dimmed,
The night's performance already started.
On a wide, poorly lit avenue,
Store windows waited for me,
Watched for me coming,
Knew what thoughts were on my mind.
In a church, where the child killer,
So the papers said,
Hid himself one night from the cold,
I sat in a pew blowing on my hands.
Like a thought forgotten till called forth —
The new snow on the sidewalk
Bore fresh footprints some unknown master
Offering to guide my steps from now on.
In truth, I had no idea what was happening to me.
Four young hoods blocked my way,
Three dead serious,
One smiling crazily as he laid his hand on me.
I let them have my raincoat,
And went off telling myself
It was important to remain calm,
And to continue to observe oneself
As if one was a complete stranger.
At the address I'd been given,
There were white X's painted on each window.
I knocked, but no one came to open.
By and by a girl joined me on the steps.
Her name was Alma, a propitious sign.
She knew a housewife
Who solved life's riddles
In a voice of a Sumerian queen.
We had a long chat about that
While shivering and stamping our feet.
In the sixteenth century, she told me,
Dabblers in occult sciences
Were roasted in iron cages,
Or else they were clothed in rags
And hanged on gibbets painted gold.
Once in a hotel room in Chicago, I confessed,
I caught sight of someone in the mirror
Who had my face,
But whose eyes I did not recognize —
Two hard, all-knowing eyes.
The hunger, the cold and the lack of sleep
Brought on a kind of ecstasy.
I walked the streets as if pursued by demons,
Trying to warm myself.
There was the East River,
There was the Hudson.
Their waters shone at midnight
Like oil in sanctuary lamps.
Something was about to happen to me
For which there would never be any words afterward.
I stood as if transfixed,
Watching the sky clear.
It was so quiet where I was.
You could hear a pin drop.
I thought I heard a pin drop
And went looking for it
In the dark, deserted city.
1986-2011
Charles Simic
Amigas e amigos,
Já faz algum tempo que, por mero
deleite pessoal, tento traduzir textos
do poeta sérvio-americano Charles
Simic. Duas dessas tentativas foram
apresentadas no poesia.net n. 161, de
maio/2006. Na presente edição, compartilho
com vocês mais seis poemas desse autor.
Simic nasceu em Belgrado, Iugoslávia, em
1938. Passou a guerra e o imediato pós-guerra
em seu país natal e mudou-se para Paris aos
15 anos. Em 1954, aos 16, transferiu-se com
a mãe e um irmão para os Estados Unidos a fim
de se juntar ao pai, que já residia lá. Charles é na
verdade um apelido. Seu nome original, em sérvio,
é Dušan Simić.
Nos Estados Unidos, Simic fixou-se em
Chicago e depois graduou-se em linguística
na Universidade de
Nova York. Hoje é professor emérito da
Universidade de New Hampshire, onde ensina
desde 1973. Foi também editor de poesia da
revista literária nova-iorquina The Paris Review.
Simic publica poemas desde 1959, mas seu
livro de estreia, What the Grass Says (O que
diz a grama) saiu em 1967. Escritor prolífico,
tem quase três dezenas de títulos somente
de poesia, aí considerados os volumes de
textos inéditos e as antologias. Além de poeta,
é tradutor (do francês, sérvio, croata, macedônio
e esloveno), área em que publicou 14 livros.
É ainda autor de oito títulos de ensaios.
Simic desfruta nos EUA talvez de um dos
mais altos níveis de reconhecimento público
que um poeta poderia ter nos tempos atuais.
Ganhou numerosos prêmios, entre os quais
o Pulitzer, e em 2007 assumiu o posto de poeta
laureado da Biblioteca do Congresso americano,
também conhecido como poeta laureado dos EUA
. Na época, ele declarou: "Estou especialmente
tocado e honrado (...) porque sou um menino
imigrante que não falava inglês até os 15 anos".
•o•
POETA LAUREADO Vale a pena discutir um pouco mais sobre a função do poeta laureado. Tradição herdada da Grã-Bretanha e mantida nos EUA e Canadá, há poetas laureados em cidades e estados americanos, assim como na Biblioteca do Congresso. Leio no site da Biblioteca que o poeta laureado exerce o cargo por um ano, com atividades efetivas de setembro até maio. Durante seu mandato, também conforme o site, "o Poeta Laureado busca elevar a consciência nacional para maior apreciação da leitura e da escrita de poesia". Nomes como Elizabeth Bishop (1949-50), William Carlos Williams (1952) e Robert Frost (1958-59) ocuparam essa posição. Suas obrigações? Fazer uma leitura na abertura dos trabalhos poéticos anuais da Biblioteca e uma palestra no encerramento. Afora isso, cada laureado propõe livremente os projetos de divulgação literária que achar mais interessantes. O poeta russo-americano Joseph Brodsky (Nobel de 1987) foi Laureado em 1991-92. Ele deu a ideia de exibir poemas em aeroportos, supermercados e quartos de hotel. Outros criaram eventos de poesia para crianças. Há também laureados que dão ênfase ao trabalho de romancistas, contistas e contadores de histórias. Atualmente, o laureado recebe um estipêndio de 35 mil dólares durante sua gestão. A verba vem de um fundo criado com a doação de um milionário e bibliófilo chamado Archer M. Huntington (1870-1955). O poeta de cada ano é escolhido por uma comissão de antigos ocupantes do posto, com base, segundo a lei que regula o assunto, "exclusivamente no mérito" do escritor. Mesmo assim, há quem critique. Eis o título de um artigo que encontrei: "Por que há tantos poetas laureados velhos, brancos e homens?" Expressa, no caso, a justa queixa das minorias — palavra que não se aplica bem ao caso das mulheres. Por mais que, com olhar de brasileiros, tendamos a torcer o nariz para a ideia de um "poeta oficial", acho que há pelo menos um ponto interessante nessa função existente entre os britânicos, americanos e canadenses. Trata-se, a meu ver, do reconhecimento do estado à poesia como forma de manifestação artística.
•o•
ENTRE O REAL E O ABSURDO Todos os poemas apresentados ao lado foram extraídos da mais recente antologia do autor, New and Selected Poems (1962-2012). Como sugere o título, esse volume reúne poemas novos a outros selecionados de treze livros do poeta. Creio que o material que já li de Simic me permite identificar alguns traços gerais em sua poesia. Um ponto fundamental é que ele sempre trata de coisas reais e aparentemente cotidianas, porém com inevitáveis toques de absurdo e surrealismo.
•o•
A FÁBRICA DE BOMBAS Veja-se, por exemplo, o poema "Pedra".
Ali o narrador começa declarando seu desejo de
transformar-se numa pedra. Estranho, sem dúvida.
Porém nada fantástico ou incompreensível. Em seguida,
ele passa a especular o que seja uma pedra, vista de
fora e de dentro. Trata-se, portanto, de uma abordagem
inusitada. Mas, ao mesmo tempo, não contém nada que
se possa classificar como hermético, incompreensível.
Essa mesma característica aparece em vários outros
poemas. Em "Escute" entra em ação a metáfora de um
casal que trabalha à noite numa fábrica de bombas.
Mais uma vez, estranho. Também não se sabe bem
por que os dois sobem ao topo de um prédio e de
lá presenciam ou imaginam cenas trágicas.
As cenas, as situações são sempre insólitas,
mas paradoxalmente as ações nunca fogem do
trivial. Com essa combinação de estranheza e
banalidade, o poema nunca é direto, mas também
não fecha portas. Ao
contrário, abre para o leitor uma instigante nuvem
de significados. Por que uma fábrica de bombas?
Por que o trabalho noturno?
Note-se que o casal é na verdade o sujeito que
fala e sua própria vida. E ele, o narrador, diz logo
no início: "Tudo sobre você, minha / vida, é meio
/ faz de conta, meio realidade". Então, pode-se pensar
no papel de quem trabalha numa fábrica de bombas.
Com as próprias mãos, esse trabalhador não mata
ninguém. Mas os artefatos que produz — ele sabe
muito bem — são feitos para matar, destruir, destroçar.
O casal Vivente-Vida seria ainda uma espécie de
parceria entre ação prática (o que se faz) e a
consciência
(o que se pensa). Aparentemente,
Simic compara trabalhar numa fábrica de bombas à experiência de subir ao topo de um prédio sabendo que houve um incêndio mas sem poder ver suas consequências. O próprio casal é uma hipótese. O texto confirma isso:
Somos como um casal [destaque meu]/ trabalhando à
noite / numa fábrica de bombas". No final há o choque
de imaginar o incêndio com a criança desesperada
saltando do prédio com o pijama em chamas.
Enfim, como se vê, o poema se abre para uma
infinidade de interpretações, todas associáveis
ao mundo real, ao cotidiano das pessoas, às difíceis
escolhas que a vida nos apresenta.
•o•
INDAGAÇÃO AO CHUMBO Curiosamente, só agora, ao escrever esta apresentação, notei o óbvio parentesco entre "Escute" e "Poema sem Título". Um poema põe em questão a consciência de quem trabalha numa fábrica de bombas. O outro indaga diretamente ao chumbo por que o metal abriu mão do sonho alquímico de transformar-se em ouro e aceit ou a tarefa de ser moldado em balas. "Dezembro" e "Passarinho" são duas curtas exceções. O primeiro consiste na descrição realista de homens-sanduíche, no frio, exibindo cartazes de propaganda. Surge aqui outro traço muito presente na poesia de Simic: a ironia. Entre os cartazes, um anuncia o fim do mundo (possivelmente alguma mensagem religiosa) e o outro os preços de uma barbearia do bairro. Certamente, há um profundíssimo fosso entre o apocalipse e os preços para cabelo, barba e bigode. Em "Passarinho", Simic se permite um intervalo puramente lírico, talvez pensando na morte — "a comprida sombra / que a cada noite chega mais perto de meu coração".
•o•
SANTOS E MARGINAIS Deixei para o fim o poema mais longo, "O Iniciado". Aqui multiplicam-se as situações e os personagens com traços surrealistas. O cenário é Nova York à noite e nele aparecem marginais, figuras místicas, a rua e igrejas. Diálogos remetem à História e à memória pessoal do sujeito lírico. Enfim , um painel que exige uma leitura mais apurada. Vale destacar que o texto se inicia quando o narrador encontra na rua São João da Cruz e Santa Teresa de Ávila, padre e freira católicos quinhentistas, considerados fundadores da Ordem dos Carmelitas Descalços e ambos poetas.
As referências esotéricas deste poema
estão diretamente ligadas às concepções
pessoais de Simic, um interessado em
doutrinas místicas. Num ensaio de seu
livro Orphan Factory (1997), ele diz: "S
eu acredito em alguma coisa, é na noite
escura da alma. O temor é minha religião e o mistério é sua igreja". Nisso, de alguma forma, ele segue a mística de São João da Cruz e talvez se considere um iniciado.
Mesmo nesse caso, quando estão em jogo
conceitos distantes do rés do chão, o cenário
e as pessoas são comuns. O iniciado vagueia
pela noite de Nova York. Encontra figuras
aparentemente esquisitas, mas nada distante
de espécimes que vemos ou conhecemos em
qualquer cidade grande. Embora trafegue com
frequência pela noite escura da alma, Simic sempre
mantém o pé no chão. Nisso, acredito, reside
substancial parte da força de sua poesia.
•o•
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