quinta-feira, 13 de março de 2014

AMORIM - PERCEPÇÃO DO ATOR DE PALCO NA RUA

PRIMEIRA PERCEPÇÃO DO ATOR DE PALCO NA RUA

Por Tatiana Amorim 

 “A rua se iguala ao oceano: é perigoso, misterioso, encantador e por mais sábio, mais  viajado e experiente o marinheiro seja, jamais em toda a sua vida, conseguirá desvendar seus segredos e navegar por seu total território!” 


 Essa é uma afirmação, particularmente falando, pertinente quando se trata do ator (que  sempre exerceu suas funções em palco italiano) descobrindo e redescobrindo a rua; ele,  diferente de uma pessoa comum, percebe-a de forma dilatada, aguçada pela sua sensibilidade  artística. Isso acaba fazendo com que tudo que passe a sua frente seja percebido. Uma  explosão de sons, cores, cheiros, tipos, sensações; o risco eminente do perigo e da exposição excessiva que a rua traz, faz com que esse ator sinta-se insignificante diante de toda essa  imensidão. 

A rua é grande e imprevisível, assim como o tempo: nunca se sabe se amanhã será de sol ou de chuva. Pode o ator sentir-se confortável nela? Esse propósito é bem atraente se  for como parte do processo de construção de um produto artístico, mas aí deve-se arcar com as consequências desse possível conforto. E como controlar toda essa ansiedade? Sempre  falamos que “ator é um bicho inquieto” e se essa inquietude não for controlada, acaba-se por desperdiçar energia em coisas que não se tiram proveito. A rua pode ser uma espécie de controle remoto do ator. O desconhecido é uma mola propulsora na busca de novas formas de trabalho. 

Um ator senta-se em um banco de uma praça usando óculos escuros durante a noite. Até aí  tudo bem, já que não é uma cena incomum em uma grande metrópole e deficientes visuais o  fazem diariamente. Agora, quando esse acontecimento é compartilhado com mais nove atores,  todos sentados juntos e usando óculos escuros, o entorno se modifica. A cidade percebe e  interfere direta ou indiretamente nesse acontecimento. Mesmo estando em grupo, o ator passa por essa vivência sozinho, sentindo-se um tanto desconfortável, sendo criticado, apontado e  até mesmo invadido. Essa agressão não chega a ser física propriamente dita como que causada  por alguém, mas o ator que sempre teve o amparo do teatro como espaço físico, protegido pela divisão palco/plateia ao se deparar com algo tão próximo e incerto, sente-se fisicamente e mentalmente agredido. Fato, de ser realmente percebido, não ocorreria se apenas ele estivesse sentado no banco. Ao ter um primeiro contato com esse universo o ator sente-se desprotegido:  parece que todos os olhares estão virados para ele. O muito é mais perigoso que o pouco.

O ator, quando propõe-se a trabalhar na rua, deve procurar conhecer e ficar atento aos seus possíveis riscos: durante uma apresentação do espetáculo “Lesados” do Grupo Bagaceira de Teatro na calçada do Theatro José de Alencar, um homem aparentemente bêbado passa balançando um pedaço de ferro na mão e bate fortemente no metalon do cenário onde estavam sentados os atores. A probabilidade dessa “arma” ter parado na canela de algum deles foi enorme pois o homem, naquele momento, viu apenas intrusos invadindo um espaço que só compete a ele, mesmo este espaço sendo a calçada de um teatro, onde o público já tem o costume de ver acontecer eventos de todos os tipos. Agora pergunto: será que este homem teria realmente coragem de agredir os artistas ali presentes, mesmo diante de uma multidão que acompanhava a apresentação? Talvez ele achasse que, dentro do seu entendimento  primário,estaria contribuindo e participando ativamente do tal evento, mesmo dessa forma tão estranha. O público deve sentir-se convidado e confortável com o que lhes é apresentado,  pois se isso não ocorre, a comunicação, a troca entre obra e espectador não ocorre. A  participação ativa do público é de extrema importância. E estamos cansados de saber que  rua é um lugar de passagem. Ninguém paga ou tem obrigação de ficar e participar, diferente do teatro de palco onde você investe no seu entretenimento. 

Concordo, em parte, com André Carreira, quando este nos afirmou que o “ator tem que  viver em risco”. Essa concordância se dá em parte por achar que o ator não tem obrigação ou precisa passar por um risco eminente de morte para atingir a plenitude de sua interpretação:  existe caminhos menos torturosos que chegam no mesmo objetivo. Talvez para alguns, o risco seja apenas um palIativo na contenção energética que possa sair do controle. O ator tem que ter clareza e consciência plena de como funciona o seu time emocional e não se submeter gratuitamente a processos que fujam à sua natureza investigativa. Com isto não quero dizer 
que ele nunca proponha-se a passar por alguma vivência extremamente radical. Nada é descartado. Sabemos que tudo que o ator vive ou viveu é material para trabalho, como nos comprova o famoso e eficiente método de Constantin Stanislaviski ao utilizar a memória emotiva do ator na criação da cena. Aquele homem com uma barra de ferro na mão era sim um risco presente, imprevisível, que estava involuntariamente colocando os atores a prova e com certeza esse medo momentâneo diante da ameaça modificou e potencializou suas interpretações, ou pra melhor ou pior.  Da mesma forma que o ator sente-se acuado ao apresentar-se na rua, sua disponibilidade e avidez de confrontar esse monstro aumenta. 

Encoraja-o saber que pode dominar todos os sentimentos que se manifestam, pois é condicionado durante anos para desafios diários comoeste. Às vezes o ator simplesmente não consegue. Não devemos esquecer que o ator é um ser humano e não uma máquina. Não é condenável o errar, o não conseguir. É muito importante essa desestabilização, essa saída momentânea da zona de conforto que o segura. A verdade é que ele se sente desconfortável diante do desconhecido, sendo este a rua, o palco ou qualquer outro espaço. O trabalho do ator é investigativo e essa avidez por arriscar-se, nunca deve cessar. Quando isso acontece, ele deve partir para experiências mais fortes. O artista tem a necessidade de dominar a arte que exerce e a perda desse controle às vezes parece desesperador.  

Mas rua não é só perigo; quando o ator domina esse espaço, mesmo sendo este sempre adverso, ele relaxa, se diverte, manipula e acaba sentindo-se parte desse universo rico de personagens, tipos e formas. Mas isso não quer dizer que, mesmo se achando o dominador, o “cara”, ele não deva que manter o tônus, o corpo ativo, presente e pronto para qualquer coisa. Ele deve potencializar isso em mil vezes, dilatar-se em dobro, pois a partir do momento que ele torna-se o foco principal, tudo gira em torno do que ele faz, fala ou propõe. 

O ator nunca deve retroceder diante de um desafio simplesmente porque não se acha capaz. Esse é a matriz do trabalho do ator, desafiar-se. E a rua realmente não é fácil. Estar diante de uma plateia não “domada” da forma cartesiana que geralmente conhecemos é assustadora e surpreendente. Eles acrescem muito no resultado final do espetáculo.   Engrandecem a obra e nunca uma apresentação é igual a outra. 

A rua realmente é um mar com suas milhares de espécies e a cada dia nós, atores e artistas, nos aprofundamos mais. E nunca, jamais ela se deixará ser completamente conquistada. 




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