Número 296 - Ano 11 |
São Paulo, quarta-feira, 23 de outubro de 2013
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úmero 296 - Ano 11 |
São Paulo, quarta-feira, 23 de outubro de 2013
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Paisagens do quintal
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Fernando Campanella
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ALHEIO Às vezes tenho o perfil de um caracol: o dia bate à minha porta e não desperto —
ando catando poesia na sombra
ando cismando o universo em espiral.
VENTOS DO LESTE
Com folhas de salgueiros é como posso pagar a vossa cortesia. Matsuo Bashô
Esta viração de outono me traz versos de Bashô. Revolve memórias da terra — aromas, pastos, rastelos —
traz também o viés da vida — lume e cinza, pétala ressequida.
Esta aragem nos salgueiros do leste tocou poetas longínquos e hoje ressoa minhas hastes —
já não sou o grande pária do mundo, ave dispersa na serrania.
Este sopro, de mais longe, de outros píncaros e ares, traduz-se agora em coisas minhas, em paisagens do quintal
(e com folhas de laranjeiras minha vez então a pagar por tão primaz cortesia).
QUE DIFERENÇA FAZ ÀS FLORES Que diferença faz às flores se por um segundo as contemplo? Nem sei se algo no mundo precisa de meu olhar assim atento. Se me procuras, em teu espelho por um tempo me reflito. Depois ao cálice de mim retrocedo. Eu sou o velho vinho que me bebo de minha embriaguez me contento.
UMA SÚBITA LUZ CORTA O TEMPO
...sei que os bezerros às vezes param e me observam quando por sobre o muro de silêncio os contemplo — é quando uma súbita luz corta o tempo —
depois nada mais acontece a não ser o delicado ruminar de bezerros absolvendo a tarde de metafísicas inúteis
1993 GUERREIROS DE ESPARTA Porque me seduziste, escuta-me agora, pequeno grande deus da paixão. Porque aos teus pés meus sonhos rolaram mesclados em visões de abismos e porque antes era a imagem de teu banho dourado — a luz da tarde dedilhando a pétala de teu gozo — e o universo de tuas formas me cegava, ouve-me agora, príncipe valente. Passaram os jovens deuses guerreiros de Esparta e as mais puras vestais de Roma Mais adiante também haveremos de passar, nômades, pela assombrosa esfera luminosa de Tao.
(Cultiva, meu coração, a substância indivisível que equaciona os destinos e os termos.)
1988
BÁLSAMO
O amor é triste — proclamariam minhas viúvas. mas disse o filósofo: a alegria corteja a mais profunda eternidade. Todas as vertentes consideradas,
abandono o vale onde as sombras compõem a enormidade. Os grilos agora tilintam, e a luz da lua impregna as árvores de um bálsamo — Meu amor, se possível, me aguarda, retorno a ti, clara a trilha que agora a meus olhos se abre.
ANTÍQUA
Ali entre os juncais
a face de um deus esquecido
reverberava na tarde —
tua alma é antiga, junta-te a nós —
chamavam-me os juncos,
e tremiam
ao meu silêncio, um vento
que eriçava a memória da água.
REPASTOS
Penso nas vacas como num mundo cifrado — a cosmogonia circunscrita das vacas. Mas que sei de universos fechados? Eu, que suposta ciência tenho da alma, dissipo noites, a cismar. Sei que os bezerros às vezes param, e me observam, quando por sobre o muro de silêncio os contemplo — uma súbita luz, então, elide o tempo. Depois nada mais acontece a não ser um delicado ruminar de bezerros absolvendo a tarde de metafísicas inúteis.
LIMBO
...E nenhum rumor de água a latejar na pedra seca... T.S. Eliot, “A Terra Desolada”, tradução de Ivan Junqueira
E quando dei por mim vi um molusco arrastando nos ombros o tempo da casa.
Vi um monge rondando em ócio — o hábito a chama e a mariposa alucinada
folhas caducas espectros (os ecos, os ecos) a roda tocada à memória.
Vi a turbulência das moscas a lava e a concha sonhando a asa.
Quando cheguei ao limbo de mim e o vento seguiu senti um abandono uma distância sem-fim.
Pesei o silêncio e o mundo certo que perdi —
vi a pedra chamando a água.
Fernando Campanella
Caros,
O mineiro Fernando Campanella (1953-) escreve uma poesia comtemplativa e muito ligada aos elementos naturais. Nascido em Pouso Alegre, no sul de Minas, onde vive, é professor de português e inglês, além de fotógrafo. Mantém o blog Palavreares, onde publica poemas, crônicas e fotografias. Em outro blog, no Flickr, divulga suas fotos, algumas das quais ilustram este boletim.
Os poemas mostrados aqui foram pinçados de uma amostra que me foi enviada pelo autor e do material disponível em seu blog. Fernando Campanella, até o momento, é um poeta da web. Sua poesia publicada está toda na internet. No entanto, ele me informa que tem, prontos, quatro livros de poemas e mais um de crônicas.
O trabalho poético de Fernando Campanella — nome artístico de Antonio Fernando Cruz: o Campanella foi tomado por empréstimo de uma avó — parece-me intimamente ligado ao seu olhar de fotógrafo. Em versos, ele reflete sobre as coisas da terra, plantas e bichos, luzes e seus reflexos. A água. O vento. A flor.
Constrói desse modo uma poesia sincera, telúrica, despida das veleidades de quem deseja gritar, falar alto ou proclamar verdades insofismáveis. Trata-se de algo mais íntimo e sossegado, um sopro que se traduz "em paisagens do quintal", como diz o poema "Ventos do Leste".
É isso que sinto ver as fotos produzidas por esse poeta que diz: "Às vezes / tenho o perfil de caracol". Ou quando pergunta shakespearianamente: "Que diferença faz às flores / se por um segundo as contemplo?" Em todos os poemas reina essa delicadeza de monge, essa contemplação do mundo de forma quase religiosa.
Às vezes, o lirismo de Campanella se afina em diapasão ainda mais reflexivo, como nos poemas "Guerreiros de Esparta" e "Bálsamo". Mesmo assim, o pensamento se estrutura em ambientes onde a luz da tarde dedilha uma pétala de gozo, ou se ouve o tilintar dos grilos ao luar. Um abraço, e até mais ler,
Carlos Machado
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poesia.netwww.algum
do autor ou enviados por ele ao poesia.net Blog: Palavreares ______________ * Carlos Drummond de Andrade, "
Casamento do Céu e do Inferno", in Alguma Poesia (1930) ______________ - Todas as fotos: Fernando Campanella
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