«Deixei em vagos espelhos / a face múltipla e vária, /
mas a que ninguém conhece / essa é a face necessária.»
(Marly de Oliveira)
"Traduções" modernistas
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Manuel Bandeira
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Vicente do Rego Monteiro, pernambucano, Natureza morta (1969)
1. Manuel Maria Barbosa du Bocage
A ANÁLIA
Se é doce no recente, ameno estio Ver toucar-se a manhã de etéreas flores, E, lambendo as areias os verdores, Mole e queixoso deslizar-se o rio;
Se é doce no inocente desafio Ouvirem-se os voláteis amadores, Seus versos modulando e seus ardores De entre os aromas de pomar sombrio;
Se é doce mares, céus, ver anilados Pela quadra gentil, de Amor querida, Que esperta os corações, floreia os prados,
Mais doce é ver-te de meus ais vencida, Dar-me em teus brandos olhos desmaiados Morte, morte de amor, melhor que a vida!
Manuel Maria Barbosa du Bocage
[DOÇURA DE, NO ESTIO RECENTE]
Doçura de, no estio recente, Ver a manhã toucar-se de flores, E o rio mole queixoso Deslizar, lambendo areias e verduras; Doçura de ouvir as aves Em desafio de amores cantos risadas Na ramagem do pomar sombrio.
Manuel Bandeira
Vicente do Rego Monteiro, Gato e tartaruga (1925)
2. Joaquim Manuel de Macedo
[MULHER, IRMÃ, ESCUTA-ME]
Mulher, Irmã, escuta-me: não ames. Quando a teus pés um homem terno e curso Jurar amor, chorar pranto de sangue, Não creias, não, mulher: ele te engana! As lágrimas são galas da mentira E o juramento manto da perfídia.
Joaquim Manuel de Macedo
[TERESA, SE ALGUM SUJEITO]
Teresa, se algum sujeito bancar o sentimental em cima de você E te jurar uma paixão do tamanho de um bonde Se ele chorar Se ele se ajoelhar Se ele se rasgar todo Não acredita não Teresa É lágrima de cinema É tapeação Mentira CAI FORA.
Manuel Bandeira
Vicente do Rego Monteiro, Adão e Eva no Paraíso (1959)
3. Castro Alves
O "ADEUS" DE TERESA
A vez primeira que eu fitei Teresa, Como as plantas que arrasta a correnteza, A valsa nos levou nos giros seus... E amamos juntos e depois na sala "Adeus" eu disse-lhe a tremer co'a fala...
E ela, corando, murmurou-me: "adeus."
Uma noite... entreabriu-se um reposteiro. . . E da alcova saía um cavaleiro Inda beijando uma mulher sem véus... Era eu... Era a pálida Teresa! "Adeus" lhe disse conservando-a presa...
E ela entre beijos murmurou-me: "adeus!"
Passaram tempos... sec'los de delírio Prazeres divinais... gozos do Empíreo... ... Mas um dia volvi aos lares meus. Partindo eu disse — "Voltarei! descansa!... " Ela, chorando mais que uma criança,
Ela em soluços murmurou-me: "adeus!"
Quando voltei era o palácio em festa!... E a voz d'Ela e de um homem lá na orquestra Preenchiam de amor o azul dos céus. Entrei! Ela me olhou branca... surpresa! Foi a última vez que eu vi Teresa!...
E ela arquejando murmurou-me: "adeus!".
Castro Alves, in Espumas Flutuantes (1870)
TERESA
A primeira vez que vi Teresa Achei que ela tinha pernas estúpidas Achei também que a cara parecia uma perna
Quando vi Teresa de novo Achei que os olhos eram muito mais velhos que o resto do corpo (Os olhos nasceram e ficaram dez anos esperando que o resto do corpo nascesse)
Da terceira vez não vi mais nada Os céus se misturaram com a terra E o espírito de Deus voltou a se mover sobre a face das águas.
Manuel Bandeira
Vicente do Rego Monteiro, Artesão
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poesia.netwww.algumapoesia.com.br Carlos Machado, 2015 |
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Amigas e amigos,
Uma das facetas dos poetas modernistas
brasileiros foi a criação de paródias —
quase sempre em tom jocoso — de textos
do romantismo, do parnasianismo e também
de obras mais antigas. Já tive a oportunidade
de mostrar aqui, no boletim n. 174, de 2006,
uma pequena amostra de paródias e glosas
da "Canção do Exílio", de Gonçalves Dias.
Nos primeiros modernistas, a paródia era
mais que um hábito: chegava a ser quase um vício.
Oswald de Andrade e Cassiano Ricardo, cada um à
sua maneira, imitavam documentos do Brasil colonial.
Mário de Andrade, falando de poesia, escreveu um
ensaio chamado A Escrava que não é Isaura – uma
referência ao romance A Escrava Isaura (1875), do
mineiro Bernardo Guimarães.
Neste boletim, contudo, o parodista destacado é
o pernambucano Manuel Bandeira (1886-1968).
Aqui aparecem três de suas paródias. Trata-se,
na verdade, de exercícios que o próprio Bandeira
chamava de "traduções para moderno".
A primeira é sobre o soneto "A Anália"
("Se é doce no recente, ameno estio"), do autor
neoclássico português Manuel Maria Barbosa du Bocage
(1765-1805). Em seu livro de memórias Itinerário de Pasárgada
(1966), Bandeira transcreve a parte de sua "tradução" relativa
aos dois quartetos desse poema.
Na essência, o procedimento de Bandeira, nesse caso, consiste
em eliminar excessos de época e distribuir os versos na página
de maneira mais livre.
O outro exercício bandeiriano é um poema irônico, construído
a partir de uma sextilha escrita pelo médico e escritor romântico
Joaquim Manuel de Macedo (1820-1882), autor do célebre romance
A Moreninha (1844). O texto teria sido dedicado a uma irmã de Macedo.
Nessa nova "tradução", escreve Bandeira, "eu queria mesmo brincar
falando cafajeste, e a coisa foi apresentada como ‘tradução para caçanje’
". Caçanje, aqui, conforme o dicionário, tem o sentido de "português errado,
mal falado". É, de fato, a linguagem das ruas: mistura você com tu,
dispensa pontuação, mas tem o sabor de fala legítima e verdadeira.
O próprio Bandeira, no parágrafo seguinte, classifica o texto como
poema-piada.
A última das "traduções" de Bandeira mostradas aqui
é uma versão para o poema romântico “O Adeus de Teresa”,
do poeta baiano Antônio de Castro Alves (1847-1871). No original,
o autor descreve três momentos de um caso de amor com a moça
do título. Na "tradução para moderno", Bandeira também trabalha
com três momentos. Mas a visão, em vez de apaixonada, passeia
pelo absurdo surrealista. Enquanto a Teresa original era pálida e
oferecia "prazeres divinais", a modernista, à primeira vista, "tinha
pernas estúpidas" e uma cara que "parecia uma perna".
Na segunda vez, permanece a visão desconjuntada da musa.
E na última, o sujeito lírico não enxerga mais nada e sofre uma
espécie de cataclismo sensorial. A solução se dá com uma paródia
(mais uma!) bíblica. Como descreve o Gênesis, o espírito de Deus
"voltou a se mover sobre a face das águas". Pode-se pensar
(é uma hipótese) que o narrador conheceu biblicamente a
desconcertante — e, tanto quanto a de Castro Alves, deslumbrante
— Teresa e experimentou toda essa perturbação cósmica.
Um abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
Manuel Bandeira * "Traduções" de Bocage e Joaquim Manuel de Macedo In Itinerário de Pasárgada Nova Fronteira/INL, Rio de Janeiro/Brasília, 3a. ed., 1984 * "Tradução" de Castro Alves de Libertinagem (1930) In Estrela da Vida Inteira – Poesias Reunidas José Olympio, 6a. ed., Rio de Janeiro, 1976
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