Número 316 - Ano 12 |
São Paulo,
quarta-feira, 20 de agosto de 2014 |
«Sabe-se da dor, mas toda dor / dribla a alma — e a alma / só tardiamente aprende.» (Antonio Brasileiro) * |
A UMAS FLORES AMARELAS Encontro-as por acaso numa ilharga sombria do caminho. São amarelas. Reluzem como um sol que arda na noite. Estas flores tão densamente de ouro, eriçadas de estames que parecem a pelagem dum gato posto à prova, a mim, que me comovo com igrejas singelas de preferência a grandes catedrais, mostram um esplendor totalmente inesperado neste chão de pedra que ninguém diria poder florir assim. Ó flores cujo nome desconheço, prolongai esse fulgor humilde em cada dia de que ainda disponho para ver as flores, antes de as flores virem ter comigo.. AMORAS SEGUNDO S. FRANCISCO Como as inquietas aves ribeirinhas, também nós fazemos em Agosto a nossa safra de amoras, evitando com prudência os picos que as dificultam e tornam cobiçadas. Bendita sejas, irmã silva, que nos dás as amoras e os picos. Que de tudo se precisa nesta vida. (Na outra, por enquanto não se sabe.) PENSANDO MELHOR
Mesmo em tardes muito quentes de Verão,
há sempre uma ave aventureira que sobrevoa a terra. (Pensando melhor, o que de facto há é terra, apenas terra — que a seu tempo há-de sobrevoar o voo das aves.) HORA DO POENTE
Na hora do poente
há mais melancolia e mais sigilo no quase nocturno voo das aves. Como se a penumbra lhes censurasse as asas. Como se a grande apoteose do ocaso fosse um presságio do fim de todas as coisas. Como se a noite fosse ainda mais escura do que a escuridão em que se enrola. Como se o dia desembocasse na morte directamente, sem passar primeiro pelos portais da noite. Chafariz e igreja matriz no povoado de Grijó, em Macedo de Cavaleiros, no norte de Portugal
FECHOU A ESCOLA EM GRIJÓ
ao Frederico Amaral Neves
I
Dantes ouviam-se as crianças a caminho da escola
e eram como pássaros de som nas manhãs de Grijó.
Não eram muitas, mas as vozes joviais
davam sinal de que a aldeia resistia,
continha a distância o deserto que a ronda
como a alcateia ronda uma rês tresmalhada.
Agora as crianças, todas as manhãs,
são acondicionadas como mercadorias
numa viatura com vocação de furgoneta.
Lembram judeus amontoados
em vagões jota a caminho de algures.
Vão aprender em terra estranha o que os seus pais
e os pais dos seus pais aprenderam em Grijó.
II
Só se voltam a ouvir ao fim da tarde
quando a viatura as despeja no largo da aldeia
como artigos que ficaram por vender.
Mas ouvem-se pouco, porque vêm cansadas.
Ouvem-se pouco e triste porque o seu dia
foi deportado para outra terra onde
não se lhe firmam raízes.
O senhor ministro das Finanças está contente,
porque poupa meia dúzia de euros
com a violenta trasfega da infância.
Mas está triste Grijó, porque já não ouve
as suas aves da manhã a caminho da escola
— e por isso pode dizer-se que a aldeia encolheu,
ficaram uns metros mais perto
as dunas de amanhã.
III
Caladas as vozes tagarelas das crianças,
nos dias de Grijó poucas mais vozes se ouvem
do que as de alguns velhos que antecipam
em palavras raras, conformadas,
o dia em que o silêncio cobrirá com estrondo
o (des)povoado definitivamente.
O senhor ministro das Finanças terá poupado
mais alguns euros com a instauração
deste opressivo silêncio final,
e ficará contente.
Grijó não.
Caros, Nesta edição, o poesia.net apresenta o poeta português A.M. Pires Cabral. Nascido em Chacim, no nordeste de Portugal, em 1941, António Manuel Pires Cabral formou-se em filologia germânica e em pedagogia na Universidade de Coimbra. Professor e diretor de escolas secundárias, estreou na poesia em 1974, com o volume Algures a Nordeste. Seguiram-se outros quinze títulos de poesia, mais duas dezenas de romances, contos e crônicas, além de três peças de teatro. O escritor é também autor de antologias escolares para o ensino do português. Lamentavelmente, deste lado do Atlântico quase não se tem notícia de A.M. Pires Cabral. Tomei conhecimento de sua poesia de forma bastante inusitada. Ganhei de presente o livro Resumo – A Poesia em 2013, e lá estão poemas daquele autor. Trata-se de uma coletânea patrocinada pela rede Fnac portuguesa e certamente vendida apenas nessa rede de lojas (o livro traz na capa e em outras páginas o logotipo da empresa). Segundo os organizadores, o livro “pretende ser uma antologia dos melhores poemas publicados em Portugal ao longo de 2013”. Eles também esperam que o Resumo se torne um anuário. Os responsáveis pela seleção foram José Alberto Oliveira, José Tolentino Mendonça, Luís Miguel Queirós e Manuel de Freitas. Os antologistas informam que as fontes de onde extraíram os poemas resumiram-se a livros e revistas, dada a impossibilidade de ler tudo o que sai na internet. Eles não dizem, contudo, quais foram as fontes. Aliás, talvez para reduzir custos, também não oferecem nenhuma informação biobibliográfica sobre os 37 autores elencados. Até onde consegui levantar, o último livro de poesia de A.M. Pires Cabral, Arado, saiu em 2009. Desse modo, é razoável supor que os poemas constantes do Resumo tenham aparecido em revistas durante o ano passado. •o• A poesia de A.M. Pires Cabral — a julgar apenas e tão somente pelos dez poemas publicados no Resumo, dos quais cinco aparecem aqui — tem traços prosaicos e reflexivos, num estilo que atualmente não é comum no Brasil. Talvez em parte por causa das influências vanguardistas (poesia concreta, práxis etc.) e dos textos curtos cultivados pelos poetas marginais dos anos 70, os brasileiros são, quase sempre, mais concisos. E muitas vezes não dizem, sugerem. A dicção de A.M. Pires Cabral é direta. A transcendência poética se constrói com base em frases de sintaxe normal e sem metáforas. O poeta diz o que diz. •o• Curiosamente, os quatro primeiros poemas transcritos aqui têm dois pontos comuns: a observação da natureza e a reflexão sobre a morte e a finitude das coisas. Em “A Umas Flores Amarelas”, o poeta aprecia a beleza simples de flores encontradas no caminho. Termina com um apelo às flores: que elas continuem belas enquanto ele pode ver as flores — “antes de as flores virem ter comigo”. No poema “Amoras Segundo S. Francisco” o observador, à maneira do santo, saúda a “irmã silva” (bosque, floresta) que dá ao homem as amoras e seus picos (espinhos). E termina com uma comparação entre esta vida e “a outra”, desconhecida. A mesma reflexão sobre o fim da vida aparece em “Pensando Melhor” e em “Hora do Poente”. No primeiro, a conclusão é de que tudo é terra e um dia a terra sobrevoará as aves. No outro, o cair da tarde dá ao sujeito pensante a ideia de que o dia desemboca diretamente na morte. •o• O poema “Fechou a Escola em Grijó” foi escrito com base num acontecimento. Naturalmente, eu não tinha ideia da existência de Grijó. Pesquisei. Há várias localidades com esse nome em Portugal. Mas essa do poema refere-se a um povoado pertencente a Macedo de Cavaleiros, no norte de Portugal, na região de origem do poeta. Grijó hoje tem menos de 400 habitantes. Em 2006, o Ministério da Educação resolveu fechar a escola primária local (fez isso também em vários outros povoados) e transportar as crianças para a sede do município — em Portugal, concelho. Os grijoenses fizeram abaixo-assinados, protestaram, mas não houve jeito. O poema expressa, além da inconformidade com o desenraizamento das crianças, a preocupação com a extinção das aldeias. Matéria do Diário de Notícias dá conta da proliferação de aldeias-fantasmas em Portugal. “Aldeias estão a ficar desertas, abandonadas à sua sorte e engolidas pela vegetação. Nem mesmo as que estão nos arredores de algumas capitais de distrito [o equivalente, no Brasil, a estado – C.M.] escapam”, diz o jornal. Uma pessoa entrevistada resume a situação: “Os velhos morreram e os novos casaram-se e abalaram”. |
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