quinta-feira, 14 de agosto de 2014

ORIENTAÇÃO DOS GATOS - CORTÁZAR


[Conto]
[Título original: Orientación de los Gatos]
[Inicialmente publicado em 1980]

[Retirado do livro: Queremos Tanto a Glenda, editora Punto de Lectura, 2004, páginas 11-17]

Quando Alana e Osíris me olham não posso queixar-me da menor dissimulação, da menor duplicidade. Olham-me de frente, Alana sua luz azul e Osíris seu raio verde. Também entre eles olham-se assim, Alana acariciando o lombo negro de Osíris, que levanta o focinho do prato de leite e mia satisfeito, mulher e gato conhecendo-se desde planos que me escapam, que minhas carícias não conseguem ultrapassar. Faz tempo que renunciei a qualquer domínio sobre Osíris, somos bons amigos a partir de uma distância infranqueável; mas Alana é minha mulher e a distância entre nós é outra, algo que ela parece não sentir mas que se interpõe em minha felicidade quando Alana me olha, quando me olha de frente que nem Osíris e me sorri ou me fala sem a menor reserva, entregando-se em cada gesto e cada coisa como entrega-se no amor, ali onde todo seu corpo é como seus olhos, uma entrega absoluta, uma reciprocidade ininterrompida.
É estranho, ainda que eu tenha renunciado a entrar de cheio no mundo de Osíris, meu amor por Alana não aceita essa simplicidade de coisa concluída, de casal para sempre, de vida sem segredo. Por trás desses olhos azuis há mais, no fundo das palavras e dos gemidos e dos silêncios alenta outro reino, respira outra Alana. Nunca a disse isso, a quero o suficiente para não despedaçar essa superfície de felicidade pela qual hão deslizado já tantos dias, tantos anos. À minha maneira me obstino em compreender, em descobrir; a observo mas sem espioná-la; a sigo mas sem desconfiar; amo uma maravilhosa estátua mutilada, um texto não terminado, um fragmento de céu inscrito na janela da vida.
Houve um tempo em que a música me pareceu o caminho que me levaria de verdade a Alana; olhando-a escutar nossos discos de Bártok, de Duke Ellington, de Gal Costa, uma transparência paulatina me aproximava dela, a música a desnudava de uma maneira diferente, a tornava cada vez mais Alana porque Alana não podia ser somente essa mulher que sempre me havia olhado em cheio sem ocultar-me nada. Contra Alana, para além de Alana eu a buscava para amá-la melhor; e se de início a música me deixou entrever outras Alanas, chegou um dia em que diante de uma gravura de Rembrandt eu a vi mudar ainda mais, como se uma mágica das nuvens no céu houvesse alterado bruscamente as luzes e sombras de uma paisagem. Senti que a pintura a levava além de si mesma para esse único espectador que podia medir a metamorfose instantânea nunca repetida, a entrevisão de Alana em Alana. Intercessores involuntários, Keith Janet, Beethoven e Aníbal Troilo me haviam ajudado a aproximar-me, mas frente a um quadro ou uma gravura Alana se despojava ainda mais disso que acreditava ser, por um momento entrava em um mundo imaginário para, sem sabê-lo, sair de si mesma, indo de uma pintura a outra, comentando-as ou calando, jogo de cartas que cada nova contemplação embaralhava para aquele que sigiloso e atento, um pouco atrás ou levando-a pelo braço, via suceder-se as rainhas e os ases, as copas e os paus, Alana.
O que se podia fazer com Osíris? Dar-lhe seu leite, deixá-lo em seu novelo negro, satisfeito e ronronante; mas Alana eu podia trazê-la a esta galeria de quadros como o fiz ontem, uma vez mais assistir a um teatro de espelho e de câmaras obscuras, de imagens tensas na tela frente a essa outra imagem de alegres jeans e blusa roxa que depois de esmagar o cigarro na entrada ia de quadro em quadro, detendo-se exatamente à distância que seu olhar pedia, voltando-se para mim de vez em quando para comentar ou comparar. Ela jamais pôde descobrir que eu não estava aqui pelos quadros, que, um pouco atrás ou de lado, o meu modo de olhar não tinha nada a ver com o seu. Jamais se daria conta de que seu lento e reflexivo passo de quadro em quadro a alterava até o ponto de obrigar-me a fechar os olhos e lutar para não apertá-la nos braços e levá-la ao delírio, a uma carreira louca em plena rua. Desenvolta, leviana em sua naturalidade de prazer e descobrimento, suas paradas e demoras se inscreviam em um tempo diferente do meu, alheia à irritada espera da minha sede.
Até então tudo havia sido um vago anúncio, Alana na música, Alana frente a Rembrandt. Mas agora minha esperança começava a cumprir-se quase insuportavelmente; desde nossa chegada Alana se havia entregado às pinturas com uma atroz inocência de camaleão, passando de um estado a outro sem saber que um espectador escondido espreitava sua atitude, a inclinação de sua cabeça, o movimento de suas mãos ou seus lábios, o cromatismo interior que lhe percorria até mostrá-la outra, ali onde a outra era sempre Alana somando-se a Alana, as cartas aglomerando-se até completar o baralho. A seu lado, avançando pouco a pouco ao longo dos muros da galeria, eu a ia vendo entregar-se a cada pintura, meus olhos multiplicavam um triângulo fulminante que se estendia dela ao quadro e do quadro a mim mesmo para voltar a ela e empreender a mudança, a auréola diferente que a envolvia um momento para ceder depois a uma aura nova, a uma tonalidade que a expunha à verdadeira, à última nudez. Impossível prever até onde se repetiria essa osmose, quantas Alanas me levariam por fim à síntese da qual sairíamos os dois cheios, ela sem sabê-lo e acendendo um novo cigarro antes de pedir-me que a levasse para tomar um trago, eu sabendo que minha longa busca havia chegado a um porto e que meu amor abarcaria a partir de agora o visível e o invisível, aceitaria o limpo olhar de Alana sem incertezas acerca de portas fechadas, de paisagens proibidas.
Diante de um barco solitário e um primeiro plano de rochas negras, a vi parar imóvel por um bom tempo; um imperceptível ondular das mãos a fazia como nadar no ar, buscar o mar aberto, uma fuga de horizontes. Já não podia estranhar-me o fato dessa outra pintura onde uma grade de pontas afiadas vedava o acesso às árvores vizinhas a fizera retroceder como que buscando um ponto de observação, tal era a repulsa, a recusa de um limite inaceitável. Pássaros, monstros marinhos, janelas entregando-se ao silêncio ou deixando entrar um simulacro da morte, cada nova pintura arrasava Alana, despojando-a de sua cor anterior, arrancando dela as modulações da liberdade, do vôo, dos grandes espaços, afirmando sua negação frente à noite e ao nada, sua ansiedade solar, seu quase terrível impulso de ave fênix. Fiquei atrás, sabendo que não me seria possível suportar seu olhar, sua surpresa interrogativa quando visse em minha cara o deslumbramento da confirmação, porque isso também era eu, isso era meu projeto Alana, minha vida Alana, isso havia sido desejado por mim e dominado por um presente de cidade e parcimônia, isso agora enfim Alana, enfim Alana e eu desde agora, desde este instante. Quis tê-la desnuda nos braços, amá-la de tal forma que tudo ficasse claro, tudo ficasse dito para sempre entre nós, e que dessa interminável noite de amor, nós que já conhecíamos tantas, nascesse a primeira alvorada da vida.

Chegávamos ao final da galeria, me aproximei da porta de saída, no entanto ocultando o rosto, esperando que o ar e as luzes da rua me devolvessem ao que Alana conhecia de mim. A vi deter-se diante de um quadro que outros visitantes me haviam ocultado, parar imóvel por bastante tempo olhando a pintura de uma janela e um gato. Uma última transformação fez dela uma lenta estátua nitidamente separada das demais, de mim que me aproximava indeciso buscando-lhe os olhos perdidos na tela. Vi que o gato era idêntico a Osíris e que mirava ao longe algo que o muro da janela não nos deixava ver. Imóvel em sua contemplação, parecia menos imóvel que a imobilidade de Alana. De alguma maneira senti que o triângulo se havia fechado, quando Alana voltava para mim a cabeça o triângulo já não existia, ela havia ido ao quadro mas não estava de volta, continuava ao lado do gato olhando para além da janela onde ninguém podia ver o que eles viam, o que somente Alana e Osíris viam cada vez que me olhavam de frente.

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