quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

MARCADORES DA SOLIDÃO URBANA ... (3)

MARCADORES DA SOLIDÃO URBANA E DA SOLIDÃO DO URBANO (3)


Por ser de lá
Do sertão, lá do cerrado
Lá do interior do mato
Da caatinga do roçado.
Eu quase não saio
Eu quase não tenho amigos
Eu quase que não consigo
Ficar na cidade sem viver contrariado.
Por ser de lá
Na certa por isso mesmo
Não gosto de cama mole
Não sei comer sem torresmo.
Eu quase não falo
Eu quase não sei de nada
Sou como rês desgarrada
Nessa multidão boiada caminhando a esmo.
("Lamento Sertanejo" - Dominguinhos / Gilberto Gil)

Vicente D. Moreira

Na postagem de ontem, tentei estabelecer marcadores crítico-conceituais para distinguir SOLIDÃO URBANA (própria das cidades inclusive - quero acrescentar agora - de todos os tamanhos) de SOLIDÃO DO URBANO que é o olhar que, influenciados pelas culturas urbanas,  construímos sobre o que venha a ser SOLIDÃO. SOLIDÃO DO URBANO é o conceito de solidão elaborado a partir dos lugares ecológicos, econômicos, culturais ... da cidade. 
O conceito de SOLIDÃO DO URBANO é nas áreas rurais, nos campos agricolas, nos conventos, manicômios, prisões (nas chamadas Instituições Totais / Erving Gofmann); e também nas estações espaciais, nos planetas, no universo cósmico; e até mesmo - como se não bastara - entre animais, vegetais e minerais.
Já que hoje, estamos bastante musicais ... vamos em frente e fundo com "Rancho Fundo" composição de  Ary Barroso / Lamartine Babo:

No rancho fundo
Bem prá lá do fim do mundo
Onde a dor e a saudade
Contam coisas da cidade...

No rancho fundo
De olhar triste e profundo
Um moreno canta as máguas
Tendo os olhos rasos d'água...

Pobre moreno
Que de noite no sereno
Espera a lua no terreiro
Tendo um cigarro
Por companheiro
...

Sem um aceno
Ele pega na viola
E a lua por esmola
Vem pro quintal
Desse moreno
...

No rancho fundo
Bem prá lá do fim do mundo
Nunca mais houve alegria
Nem de noite, nem de dia...

Os arvoredos
Já não contam
Mais segredos
E a última palmeira
Ja morreu na cordilheira...

Os passarinhos
Internaram-se nos ninhos
De tão triste esta tristeza
Enche de trevas a natureza...

Tudo por que
Só por causa do moreno
Que era grande, hoje é pequeno
Pra uma casa de sapê...

Se Deus soubesse
Da tristeza que há  na serra
Mandaria lá prá cima
Todo o amor que há na terra...

Porque o moreno
Vive louco de saudade
Só por causa do veneno
Das mulheres da cidade...

Ele que era
O cantor da primavera
E que fez do rancho fundo
O céu melhor
Que tem no mundo...

Se uma flor desabrocha
E o sol queima
A montanha vai gelando
Lembra o cheiro
Da morena...

Neste clássico da Música Popular Brasileira tudo e todos são solidão, tristeza, nsotalgia, saudade ... É um caso típico de SOLIDÃO DO URBANO pois o cenário é rural e, além disso, esse conceito 'cobre' pessoas (o 'moreno'), plantas, animais, montanhas ...

Mas vamos à questão central desta terceira postagem da série MARCADORES DA SOLIDÃO URBANA E DA SOLIDÃO DO URBANO. Quero passar longe de considerações como "o estar só na multidão" ou o "estar acompanhado no estar só" ou ainda "é melho estar só do que estar mal acompnhado" ou mesmo "é melhor estar mal acompanhado do que só" ... Apesar de elas terem importante valor antropológico, optamos por um quadrante conceitual menos confortável. Vale dizer, queremos defender que não é possível estar só quando se fala, quando já se adquiriu esta ferramenta que inaugura a condição do ser humano, tanto filo quanto ontogeneticamente falando: a LINGUAGEM.

Ora, se o humano é o único animal, o único ser que fala ... todos os demais seres ... animais outros, vegetais, minerais...  (que, de resto,  não falam) somente eles podem estar só, sentir solidão?  Começando pelo fim, diríamos que o sentir é uma condição (mais que notável) da subjetividade. E queremos passar longe, também, das questões da subjetividade seja do humano, seja dos demais seres. Neste sentido, nossa  obstinação pela objetividade nos permite negar a possibilidade da solidão (da solidão OBJETIVA) para o ermitão, o monge solitário, o alpinista isolado do Mundo ... o índio 'misterioso' que vive 'isolado', na Amazônia,  dos grupos indígenas e dos grupos rurais e urbanos dos 'brancos'.  ; por mais 'sozinho'  que tenha estado e  por quanto tempo, ele (assim como ermitão, o monge solitário, o alpinista isolado do Mundo ...) tem a companhia da linguagem (idiomas, falares ...), dos costumes, crenças, valores da cultura de cada um(a).

Quando  astronautas viajarem a Marte  levarão,  na 'bagagem' de cada um, o peso dos respectivos contextos culturais em que se formaram enquanto humanos. Mesmo se for o caso de um único astronauta, ele não estará solitário

O personagem lírico de "Lamento Sertanejo" se sente só (estrangeiro) por não encontrar na cidade valores que fizeram parte de seu processo de enculturação "do sertão, lá do cerrado lá do interior do mato" em que ele vivia antes de migrar para o 'caldeirão cultural' da cidade: companheirismo, vizinhança, facilidade  e espontaneidade de diálogo, amigos, 'cama dura', rede, culinária, torresmo .... 

"Sou como rês desgarrada
Nessa multidão boiada caminhando a esmo"

É um pouco o exemplo da solidão que alguém pode sentir quando está num país que fala idioma diferente do seu de origem enculturativa.

A contradição entre os conteúdos destes últimos  parágrafos   é apenas aparente porque, em ambos os casos, o determinante comum é a cultura, é o plano simbólico. E não, por exemplo,  o imaginário.



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Amanhã, quinta, tentaremos avançar as preocupações em torno destes dois quadrantes: o simbólico e o imaginário. 

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