Belas Artes: um patrimônio que São Paulo não pode deixar fechar
Nabil Bonduki
A íntegra de artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo em 12.01.11
A notícia que o Cine Belas Artes iria fechar gerou uma comoção em um segmento importante da sociedade paulistana. A mobilização que nasceu a partir daí não deixa nenhuma dúvida: este cinema é um patrimônio da cidade. Seu desaparecimento vai significar para muitos de nós um enorme sentimento de perda, como a morte de um familiar ou amigo. Mais que isto, criará uma lacuna que uma cidade como São Paulo, tão desprovida de memória e de lugares significativos, não pode deixar acontecer.
Quase dez mil paulistanos já assinaram um abaixo-assinado se posicionando contra este crime. Fazem isto porque se sentem ligados ao local que, após meio século de vida, se tornou uma referência cultural e urbana para a cidade. A questão não é preservar a arquitetura do edifício, mas o uso do lugar, sua importância como ponto de encontro e espaço de debate cultural. A noção contemporânea de patrimônio é clara: a comunidade, além dos especialistas, tem um papel fundamental na identificação dos bens culturais a serem protegidos.
A noção de patrimônio se ampliou muito desde que o Estado Novo, através do Decreto-Lei 25/1937 criou o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional e intituiu o tombamento. Embora Mário de Andrade tivesse proposto uma abrangência maior, na época, prevaleceu uma visão restrita, voltada para os bens com valor arquitetônico e artístico, chamada de “patrimônio de pedra e cal”.
Os critérios utilizados para a seleção dos bens a serem protegidos eram os de caráter estético-estilísticos, excepcionalidade e autenticidade, valorizando a arquitetura tradicional luso-brasileira, geralmente edifícios isolados, produzida no período colonial. O foco era a criação de uma identidade nacional, base cultural para a criação e fortalecimento de um Estado nacional.
Na década de 1970, esta noção de patrimônio se alargou enormemente, acompanhando as tendências internacionais. Nesta nova perspectiva, ligada à concepção de “Cidade Documento”, passou a abranger também sítios urbanos e manifestações de outros períodos e origens culturais, assim como se valorizou os espaços onde ocorre a vida social e os hábitos cotidianos da população. Em certas situações, os locais de vivência e de práticas sociais, que têm valor pelo seu uso, podem ser até mais relevantes do que os monumentos isolados de valor arquitetônico.
Além de valorizar o contexto urbano e edifícios utilizados pela população, entendidos como uma construção histórica, esta nova visão reserva à comunidade um papel ativo na identificação do patrimônio, que deixa de ser uma atribuição restrita aos profissionais envolvidos com a preservação. É por isto que o atual Plano Diretor Estratégico de São Paulo (PDE) e sua Lei de Zoneamento, que incorporaram como conceito e método participativo esta nova visão de patrimônio, incluiu nas áreas a serem preservadas como Zonas Especiais de Preservação Cultural (ZEPEC), locais indicados pela população como de interesse urbano e, por não dizer, afetivo.
Por esta razão, o tombamento do Cine Belas Artes está amplamente respaldado no Plano Diretor Estratégico de São Paulo, projeto que tive a oportunidade de relatar e redigir o substitutivo na Câmara Municipal (Lei 13540/2002). No capítulo que trata da Política de Patrimônio Histórico e Cultural, o PDE estabelece que uma das ações do município deve ser “incentivar a participação e a gestão da comunidade na pesquisa, identificação, preservação e promoção do patrimônio histórico, cultural, ambiental e arqueológico” (artigo 90, inciso VII), enquanto que uma das seus diretrizes é “a preservação da identidade dos bairros, valorizando as características de sua história, sociedade e cultura” (artigo 89, inciso III).
Em 2003, quando o Belas Artes e o antigo Cine Arte (atual Cultura) estavam ameaçados de fechar, a sociedade se mobilizou e impediu este desfecho doloroso. Na oportunidade, para apoiar os poucos cinemas de rua que ainda restavam na cidade, propus e foi aprovada uma lei que permite aos cinemas, como o Belas Artes, pagarem seus impostos municipais com ingressos em horários de baixa frequência, a serem utilizados em programas de inclusão cultural, para jovens e estudantes de escolas públicas. Na oportunidade, depois de passado o sufoco, erramos ao não nos darmos conta de que era necessário criar uma proteção legal mais permanente para estes cinemas.
A atual mobilização mostra que, de modo coerente com o PDE, uma parcela relevante da comunidade paulistana identificou um bem que faz parte da identidade de um bairro, característico da história e cultura de toda a cidade, e que está ameaçado de desaparecer e luta para garantir sua preservação. Não temos tempo a perder, porque o despejo do Belas Artes está marcado para o dia 27 de janeiro e em seguida ele será destruído.
O processo de tombamento já foi solicitado pela Associação Paulista de Cineastas. Agora é necessário que o Departamento de Patrimônio Histórico da Secretaria Municipal de Cultura elabore um bom parecer técnico, e este artigo modestamente visa contribuir para ele, e a presidência do Conselho Municipal de Patrimônio Cultural de São Paulo – Compresp deve convocar uma reunião extraordinária para decidir pela preservação, antes da data fatal. Não vamos deixar que mais esta catástrofe ocorra em São Paulo no mês do seu aniversário.
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PS: O Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp) decidiu colocar em votação no dia 18 o tombamento do prédio na Rua da Consolação.
Nabil Bonduki é arquiteto e professor de Planejamento Urbano da FAU-USP. Mestre e doutor em Estruturas Ambientais Urbanas.
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