sexta-feira, 17 de abril de 2015

S PAULO - POESIA.NET - RENATA PALLOTTINI


Número 330 - Ano 13
São Paulo, quarta-feira, 15 de abril de 2015

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«Eu, sempre que parti, fiquei nas gares
                                                                                     / olhando triste para mim...»
                                                                                         
                                                                                                    (Mario Quintana) *

Se ao menos esta dor cantasse...


Renata Pallottini 

Renata Pallottini

Gustav Klimt - Judith I (1901)
Gustav Klimt (1862-1918), pintor austríaco, Judith I (1901)




ATIRA PARA O MAR

Atira para o mar as tuas coisas
abandona os teus pais
muda de nome

esquece a pátria
parte sem bagagem
fica mudo e ensurdece
abre os teus olhos.

Se o teu amor não vale tudo isso
então fica onde estás
gelado e quieto.

O amor só sabe ir de mãos vazias
e só vale se for
o único projeto.
Gustav Klimt - O beijo (1908)
Gustav Klimt, O beijo (1908), detalhe

FALAR CONTIGO
Falo contigo
e é como se falasse
com essa qualidade
de luz das árvores.

É perfurar o verde
e emergir do outro lado
(o úmido porvir
dos vegetais).

Falo contigo
e compreendo o estado
dos sons que surgem
à noite, noite-em-claro.

Falo contigo
e entendo
o que não tem sentido.

Amor é assim, palavra:
lume comovido.


De Um Calafrio Diário (2002)




Gustav Klimt - Esperança II (1908), detalhe
Gustav Klimt, Esperança II (1908), detalhe

GATO EM VOLUTAS

Chegou-se a mim, com pés forrados de silêncio.
Seu rastro sinuoso marcara-se com plumas.
Ei-lo que roça no ser humano
sua egoísta subserviência.
Recolhe as unhas, como quem guardasse
um íntimo segredo invulnerável.

Ó gato, quanto mais eu te amaria
se me houvessem rasgado tuas unhas
a frágil carne, a de afeição canina!

Afasta-se, seus olhos impossíveis
fitos em alguma outra parte.

Quedo, à distância ignora o tempo morto.
E em mim a essência morta.





Gustav Klimt - Retrato de Adele Bloch Bauer (1905), detalhe
Gustav Klimt, Retrato de Adele Bloch Bauer (1905), detalhe
O GRITO

Se ao menos esta dor servisse
se ela batesse nas paredes
abrisse portas
falasse
se ela cantasse e despenteasse os cabelos

se ao menos esta dor se visse
se ela saltasse fora da garganta como um grito
caísse da janela fizesse barulho
morresse

se a dor fosse um pedaço de pão duro
que a gente pudesse engolir com força
depois cuspir a saliva fora
sujar a rua os carros o espaço o outro
esse outro escuro que passa indiferente
e que não sofre tem o direito de não sofrer

se a dor fosse só a carne do dedo
que se esfrega na parede de pedra
para doer doer doer visível
doer penalizante
doer com lágrimas

se ao menos esta dor sangrasse.




Gustav Klimt - Retrato de moça (1916)
Gustav Klimt, Retrato de moça (1916)




POEMA

E então, pergunto, por que esta vida
de pão e horas moídas?

Por que não somente um pássaro
na insciência da tarde clara,

uma árvore verde embutida
no musgo da manhã... Por que esta vida?

Por que não uma pedra severa
que não procura, não erra, não espera,

ou então outra vida, outra vida
que não esta, de sal e lâminas finas,

que não esta, de sal sobre as feridas?


De Obra Poética (1995)
Amigas e amigos,




Poeta, dramaturga, tradutora, a paulistana Renata Pallottini (1931-) tem longos e variados serviços prestados à cultura. Formada em filosofia pela PUC-SP em 1951, concluiu também o curso de direito na USP em 1953. Depois, em Paris, começa a estudar teatro em 1959. De volta a São Paulo, entra na Escola de Arte Dramática da USP e faz os cursos de dramaturgia e crítica. 


Sua produção de textos para teatro inicia-se em 1960, com a peça A Lâmpada. Depois disso, a autora criou vários outros espetáculos cênicos. Em 1967, a peça Pedro Pedreiro, com texto dela e música de Chico Buarque, é levada à Colômbia. No ano seguinte, Renata Pallottini traduz o famoso musical Hair, dos americanos James Rado e Gerome Ragni. O trabalho de Renata Pallotini nas artes cênicas estende-se também à televisão, ao cinema e ao ensino universitário.

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Desviemos para a poesia. Renata Pallotini publica seus primeiros versos em 1950 nas revistas da Faculdade de Direito. Estreia em livro dois anos depois, com Acalanto, uma publicação semiartesanal. Em 1956 sai O Monólogo Vivo, primeiro título incluído pela autora em sua Obra Poética, de 1995, que contém um total de 14 livros. Depois disso, Renata publica ainda Um Calafrio Diário (2002), coletânea de poesia, além de outras obras nas áreas de teatro, literatura infantojuvenil e ensaios. 




Para este boletim, selecionei cinco poemas, todos destacando o aspecto mais lírico da poesia de Renata Pallottini. Nos dois primeiros, ambos extraídos de Um Calafrio Diário, encontra-se uma proposição de tudo ou nada em nome do amor. Em "Atira para o mar", a ideia é desfazer-se de tudo e mergulhar de cabeça na paixão: “O amor só sabe ir de mãos vazias / e só vale se for / o único projeto”. 


Em “Falar contigo”, o clima é o mesmo, defletido porém para os estados de iluminação e êxtase amoroso que leva o/a amante a ler sinais incompreensíveis e entender o que não tem sentido. Em certo aspecto, este poema mantém algum parentesco com o mais célebre soneto bilaqueano, aquele que defende a ideia de que os amantes são capazes de ouvir e entender estrelas.
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Os poemas seguintes são todos da Obra Poética. Em “Gato em volutas”, Renata Pallottini tenta penetrar na “psicologia” dos felinos. Para ela, o animal doméstico “roça no ser humano / sua egoísta subserviência”. Ela também parece dar mais créditos à fidelidade canina. Os humanos que preferem os gatos certamente haverão de protestar. Mas coisas de cão e gato só podem mesmo terminar em rusgas.


“O Grito” é um poema forte que transforma dor em corajoso desabafo lírico, quase desesperado. É a busca de alívio de quem se sente sufocado e sem saída. “Se ao menos esta dor sangrasse”...


Por fim, vem “Poema”, um texto de indagação existencial. “Por que esta vida? / Por que não uma pedra severa / que não procura, não erra, não espera (...)?” Ou, de outro ângulo, por que não outra vida em lugar desta humana, plena de sofrimentos e que, em vez de bálsamo, põe sal nas feridas? 


Não esperem respostas. O poeta é, essencialmente, um ser que pergunta. 
•o•

Para finalizar, quero puxar um pouco da brasa criativa de Renata Pallottini para a sardinha do poesia.net. Este boletim tem a honra de merecer a leitura e a atenção da múltipla Renata desde as primeiras edições. Esta, aliás, é a segunda vez que ela aparece aqui. A primeira foi no boletim n. 21, em maio de 2003.

Um abraço, e até a próxima.



•o•

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