sábado, 13 de dezembro de 2014

AFINAL, O QUE É POESIA? -(1) POESIA.NET - S PAULO - BRASIL

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«De tudo o que fica ou passa / subsiste um murmúrio, apenas.» 

Afinal, o que é poesia?
Sete poetas brasileiros e uma polonesa



Di Cavalcanti - Mulher em Vermelho (1945)
Di Cavalcanti, Mulher em Vermelho (1945)

  Jorge de Lima


[VEREIS QUE O POEMA CRESCE INDEPENDENTE]

Vereis que o poema cresce independente
e tirânico. Ó irmãos, banhistas, brisas,
algas e peixes lívidos sem dentes,
veleiros mortos, coisas imprecisas,

coisas neutras de aspecto suficiente
a evocar afogados, Lúcias, Isas,
Celidônias... Parai sombras e gentes!
Que este poema é poema sem balizas.

Mas que venham de vós perplexidades
entre as noites e os dias, entre as vagas
e as pedras, entre o sonho e a verdade, entre...

Qualquer poema é talvez essas metades:
essas indecisões das coisas vagas
que isso tudo lhe nutre sangue e ventre.
         
 De Livro de Sonetos (1949)


Di Cavalcanti - Cinco Moças de Guaratinguetá, 1930
Di Cavalcanti, Cinco Moças de Guaratinguetá (1930)


 Cassiano Ricardo


POÉTICA

1
Que é a Poesia?

Uma ilha
Cercada
De palavras
Por todos
Os lados.

2
Que é o Poeta?

Um homem
Que trabalha o poema
Com o suor do seu rosto.
Um homem
Que tem fome
Como qualquer outro
Homem.
           De Jeremias Sem-Chorar (1964)

Di Cavalcanti - Menina com gato e piano (1967)
Di Cavalcanti, Menina com Gato e Piano (1967)


 Carlos Drummond de Andrade


CONCLUSÃO

Os impactos de amor não são poesia
(tentaram ser: aspiração noturna).
A memória infantil e o outono pobre
vazam no verso de nossa urna diurna.

Que é poesia, o belo? Não é poesia,
e o que não é poesia não tem fala.
Nem mistério em si nem velhos nomes
poesia são: coxa, fúria, cabala.

Então desanimamos. Adeus, tudo!
A mala pronta, o corpo desprendido,
resta a alegria de estar só, e mudo.

De que se formam nossos poemas? Onde?
Que sonho envenenado lhes responde,
se o poeta é um ressentido, e o mais são nuvens?
          De Fazendeiro do Ar (1954)


Di Cavalcante - Mulheres e Frutas (1962)
Di Cavalcanti, Mulheres e Frutas (1962)


 Mario Quintana


PROJETO DE PREFÁCIO

Sábias agudezas... refinamentos...
— não!
Nada disso encontrarás aqui.
Um poema não é para te distraíres
como com essas imagens mutantes dos caleidoscópios.
Um poema não é quando te deténs para apreciar um detalhe.
Um poema não é quando também paras no fim,
porque um verdadeiro poema continua sempre...
Um poema que não te ajude a viver e não saiba preparar-te para a morte
não tem sentido: é um pobre chocalho de palavras!
De Baú de Espantos (1986)



OS POEMAS

Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam vôo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto
alimentam-se um instante em cada par de mãos
e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhado espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti...
          De Esconderijos do Tempo (1980)


Di Cavalcanti, Samba (1925)
Di Cavalcanti, Samba (1925)


 Francisco Carvalho


PODER DA PALAVRA

Uma palavra
basta
para acordar os
demônios
que se hospedam
no poema.
Uma palavra
basta
para estancar
as veias desatadas
do poema
Uma palavra
basta
para ferir de morte o poema.
          De O Silêncio é Uma Figura Geométrica (2002)


Di Cavalcanti, As Baianas (1961)
Di Cavalcanti, As Baianas (1961)


 Myriam Fraga


POSSESSÃO

O poema me tocou
Com sua graça,
Com suas patas de pluma,
Com seu hálito
De brisa perfumada.

O poema fez de mim
O seu cavalo;
Um arrepio no dorso,
Um calafrio,
Uma dança de espelhos
E de espadas.

De repente, sem aviso,
O poema como um raio
— Elegbá, pombajira! —
Me tocou com sua graça,
Aceso como chicote,
Certeiro como pedrada.
Salvador, abril, 1995
          De Femina (1996)


Di Cavalcanti, Pescadores (1951)
Di Cavalcanti, Pescadores (1951)



 Roberval Pereyr


A POESIA


É um corte de luz no olho
do cego, um destino acima
do homem.

Tece e desfia o eterno, veludo
na tez dos mortos — despertos.
Encontro de primaveras, a poesia,
enraizada nas lamas, cresce
— nos braços nus do mendigo, na voz
de Joan Baez, no silêncio das janelas
abertas.
E a fome que rompe as eras,
que despe os deuses, que se enovela
no ventre esconso da morte
— e gera:
antídoto nos venenos, revolta nas guerras,
gritos no silêncio; esperas, esperas...
A poesia: braço amorfo indomável
no cerne da terra, na mão que se ergue
desesperada:
espada e forças na mesma espada.

Nela tudo imerge; dela tudo explode:
a poesia é o elo mais definitivo
entre o que é vivo — e o que dorme...
          De As Roupas do Nu (1981)



Di Cavalcanti - Mulheres Protestando (1941)
Di Cavalcanti, 
Mulheres Protestando (1941)

 Wislawa Szymborska


ALGUNS GOSTAM DE POESIA
Alguns —
ou seja nem todos.
Nem mesmo a maioria de todos, mas a minoria.
Sem contar a escola onde é obrigatório
e os próprios poetas
seriam talvez uns dois em mil.

Gostam —
mas também se gosta de canja de galinha,
gosta-se de galanteios e da cor azul,
gosta-se de um xale velho,
gosta-se de fazer o que se tem vontade
gosta-se de afagar um cão.

De poesia —
mas o que é isso, poesia.
Muita resposta vaga
já foi dada a essa pergunta.
Pois eu não sei e não sei e me agarro a isso
como a uma tábua de salvação.
          De Poemas (2011)
poesia.netwww.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2014


•  Jorge de Lima
    in Poesia Completa (volume único)
    Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 1997
•  Cassiano Ricardo
    in Jeremias Sem-Chorar
    José Olympio, Rio de Janeiro, 1964
•  Carlos Drummond de Andrade
    in Poesia Completa
    Nova Aguilar, Rio de Janeiro, 2002

•  Mario Quintana
    Poesia Completa
    Nova Aguilar, 1a. ed., 1a. reimpr., Rio de Janeiro, 2006
•  Francisco Carvalho
    In Memórias do Espantalho — Poemas Escolhidos
    
Imprensa Universitária da UFC, Fortaleza, 20046
•  Myriam Fraga
    in Poesia Reunida
    Assembléia Leg. do Est. BA, Salvador, 2008
•  Roberval Pereyr
    in 110 Poemas
    Quarteto Editora, Salvador, 2013
•  Wislawa Szymborska
    in Poemas
    Tradução de Regina Przybycien
    Cia. das Letras, São Paulo, 2011
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* Hélio Pellegrino, "Boca da noite", in Minérios Domados (1997)

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Todas as imagens são pinturas do carioca Emiliano Augusto Cavalcanti
de Albuquerque Melo, o Di Cavalcanti (1897-1976)



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