quarta-feira, 9 de julho de 2014

FERNANDES - POESIA.NET - S PAULO - BRASIL










Número 313 - Ano 12
São Paulo, quarta-feira, 9 de julho de 2014
poesia.net header
«A paixão é como vinho / Passada a embriaguez / Resta um co(r)po vazio» (Myriam Fraga) *




Na gaiola da solidão
Ronaldo Costa Fernandes


Beatriz Milhazes - Pierrot e Colombina
Beatriz Milhazes, brasileira, Pierrot e Colombina  

ESPIRAL DOS CAMINHOS 

Haveria um santo dos caminhos
que fizesse reto o que Deus gosta de entortar.
Deus deveria ter um caderno
de caligrafia para melhorar a letra.
Os caminhos que são linhas tortas
corrompem a emoção.
O peso dos outros é sempre
desigual, inumano e cheira a culpa.
Os caminhos emanam cheiro de futuro.
O ódio, o amor, o riso.
Tudo tem seu cheiro e sua medida.
Um metro de ódio,
uma dose de amor,
uma talagada de riso.
Aqui estão os caminhos espiralados,
os caminhos sem chão,
as retas que não levam à lucidez.

O TEMPO NA LAPELA 

Certa vez um pedaço de tempo
feito floco de neve
— fiapo de algodão doce
que se desfaz à lambida do toque —
caiu no meu casaco e não se dissolveu.
Permaneci com o tempo na lapela.
Me dei conta de que o pedaço de tempo
— corrosivo e nada friável —
que carregava na lapela
em vez de desaparecer
insistia em crescer
até me tomar o corpo todo
como o reconhecimento do erro
que é uma febre que não cede
ou a lembrança incômoda,
cão que nos segue
e ameaça nos morder a memória.


Beatriz Milhazes - Obra Grande
Beatriz Milhazes, Obra Grande 


CERA DA MANHÃ
 

Eis que a mãe
surge pela manhã.
Traz o tempo nas veias.
Sentada e imóvel,
ela é a melhor fotografia
tridimensional de si própria.
Tem medo de que
quem esteja ali sentada
seja inflamável
por ser uma cópia de cera.

A mãe o chama
e se incandesce.
É conversa que se consome
e bruxuleia,
ora pavio lúcido,
ora a cera do esquecimento.
Tem medo de que ela se esqueça
dele e, assim, ceráceo e ardente,
enrijecerá a infância,
serão últimos os primeiros passos
e morrerá vivo na memória
da mãe que o perdeu
dentro de seu labirinto
feito de museu e cera.


ESPELHO APÓS A MORTE 

Quando morrer, não verei mais
o vaso de louça andaluz da varanda,
mas ele continuará lá.

Quando morrer,
não mais ouvirei o canto verde dos periquitos
mas eles continuarão a voar
e amanhecer a manhã verde.

Quando morrer,
não mais me verei ao espelho,
mas ele continuará lá
porque haverá outros rostos
para terem a ilusão de que vivem.

Beatriz Milhazes - Obra
Beatriz Milhazes, Obra 



O HOMEM OLHA O MONDEGO 

Alguns rios me banham: Bacanga e Anil.
Meu corpo está cheio de rios:
minhas veias são rios vermelhos
que desembocam no mar do meu coração.
Os rios se instalam em mim
em mim me danam, lanhando
por dentro meu corpo, linfáticos e
leheio de incertezas, onde habitam
passado e história, dor e escuridão.
Há rios em mim que desconheço
sua foz, sua embocadura,
de onde nascem, para onde vão.
O pior rio é o da mente
que flui sem margens,
desordenado e com várias águas,
águas desiguais e turvas.
Há rios em mim que nunca supus ter.
Meu pensamento é um rio seco
mas pleno de correnteza e afogamento.

Coimbra, 18.10.2009


ESCONDERIJO 

Esconde bem
tuas lágrimas.
Os homens desprezam
os fracos.
Esconde bem tua emoção.
Os homens
respeitam os fortes.
Esconde bem tua tristeza.
O mundo evita
os melancólicos.
Esconde bem a ti mesmo.
Os homens não gostam de se ver.


Beatriz Milhazes - Ova
Beatriz Milhazes, Ova 



CRIMINALIDADE 

Sei que me roubo.
Sei que me furto.
Sei também quando me rendo.
Todo dia me assalto
à luz do dia e da vida.
Roubo vários sentimentos
mas o assalto
que ofereço à mão armada
nenhum ladrão de mim
me leva: o passado
que pesa como carteira cheia.
Rufla em mim
o tambor com seis balas.
No horizonte, cavalos
sem olhos habitam
as cocheiras do tempo.
Vítima de mim mesmo
não quero comiseração,
cada dia sou menos,
não há cofre, nem chave,
estou à mercê do gatilho
que disparo ao acordar:
o sumiço do sonho.


O ÚLTIMO PIO 

Um dia meu tio inventou
de morar no sótão
do pensamento lá dele.
E se refugiou menino
na memória cheia de pios
em que vivia na gaiola da infância.
Desce daí da memória,
a gente pedia
e meu tio insistia
em cantar sabiá
entre as grades finas da tristeza.
Até que voou para onde não há canto
ou asa e tudo é gaiola vazia.
Quando ando triste
subo ao galho mais alto
da insensatez
e tento cantar
em linguagem de pássaro.
Rejeito o alpiste da razão
— miúdo e aglomerado —
este que se dá aos melancólicos
engaiolados pela solidão.
Ronaldo Costa Fernandes

Ronaldo Costa Fernandes

Caros,

O poeta maranhense Ronaldo Costa 

Fernandes é um nome que já tem história
 no poesia.net. Se vocês visitarem o índice
 do boletim, vão encontrá-lo na edição n. 126,
 de 2005, e também na edição 263, de 2009. 
Esta é, portanto, a terceira vez que esse autor 
— também romancista, contista e ensaísta — 
nos concede o privilégio de desfrutar um pouco
 de sua poesia.

Ronaldo Costa Fernandes é maranhense criado

 no Rio de Janeiro e radicado em Brasília. 
Doutor em literatura pela UnB, escreveu em
 prosa os romances O Viúvo (2005) e Um 
Homem é Muito Pouco (2010), a coleção de
 contos Manual de Tortura (2007) e o ensaio 
A Ideologia do Personagem Brasileiro (2007).

Como poeta, Costa Fernandes estreou com

 o volume Urbe, de 1975, hoje renegado. 
Desse modo, sua estreia efetiva ficou 
para o livro Estrangeiro, publicado em 1997.
 Vieram
 em seguida Terratreme (1998), Andarilho (2000), 
Eterno Passageiro (2004), A Máquina das 
Mãos (2009) e Memória dos Porcos (2012).
 Este último livro é o centro das atenções 
neste boletim.

Ao tratar da coletânea que o poeta lançou 

em 2009, destaquei que sua criação lírica 
sempre observa pessoas e coisas e perquire 
sobre aspectos menos iluminados do cotidiano. 
São indagações que que não têm medo de 
cutucar o mal-estar, como tende a fazer toda
 grande poesia. Essa linha geral persiste em 
Memória dos Porcos.

O poema “Espiral dos Caminhos” propõe

 que “Deus deveria ter um caderno / de 
caligrafia para melhorar a letra”. É justo: 
afinal, os incompreensíveis manuscritos do 
Criador definem “caminhos espiralados” e 
“retas que não levam à lucidez”. Quem não
 gostaria de ter pela frente apenas trajetórias 
retas, previsíveis e seguras?

Em “O Tempo na Lapela” opera-se uma

 prodigiosa transformação: “um pedaço 
de tempo / feito floco de neve” cai na lapela
 do narrador. Preocupado, ele vê o floco 
agigantar-se até tomar-lhe o corpo inteiro
 e ameaçar os guardados da memória. 
A fábula mostra o quanto somos criaturas 
submetidas à noção de  tempo.

Em “Esconderijo” o poeta brinca de esconde

-esconde com certas imperfeições humanas. 
As pessoas ocultam a tristeza, as lágrimas, as 
emoções. Na verdade, escondem-se 
de si mesmas, recusando-se a encarar
 as verdades reveladas pelo espelho.

No texto “O Homem Olha o Mondego”,

 escrito em Coimbra, o poeta percebe: 
“Meu corpo está cheio de rios”, a começar
 pelos que são mais antigos para ele, Bacanga 
e Anil, que banham São Luís do Maranhão. Rios 
de água, que correm no chão; rios linfáticos 
caminhando por dentro do corpo. “O pior rio
 é o da mente / que flui sem margens”, decide 
o poeta.

Dedico um olhar especial aos poemas

 “Criminalidade” e “O último pio”. No primeiro, 
o poeta reflete sobre como, a cada dia, vamos 
cometendo assaltos à mão armada contra nós
 mesmos, e surripiando nossa velha carteira 
recheada de sonhos. “Cada dia sou menos”,
 declara o criminoso — que não é outro senão
 cada um de nós.

Vem, por fim, o poema “O Último Pio”. 

Aqui, no ambiente doméstico, encontra-se 
um tio que se refugiou “na gaiola da infância”. 
Observem os versos: “Desce daí da memória, 
/ a gente pedia / e meu tio insistia / em cantar 
sabiá / entre as grades finas da tristeza”.
 Ao contrário de 
lamentar o destino do tio que falava a língua 
dos pássaros, o sobrinho, que é o dono
 da voz no texto, encontra nele uma
 inspiração para os dias de tristeza. 
Um abraço, e até a próxima,

Carlos Machado







Nenhum comentário:

Postar um comentário