Em Quarta-feira, 19 de Fevereiro de 2014 1:24, Carlos Machado escreveu:
Número 303 - Ano 12 |
São Paulo, quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014
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«Eliana, corpo mágico: / salta da terra, é fonte, /
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Camilo Pessanha
Caros,
Dono de uma trajetória de vida considerada exótica,
o português Camilo Pessanha (1867-1926) é considerado
o mais autêntico representante do simbolismo em seu país.
Nascido em Coimbra — filho de um estudante de direito com
uma doméstica —, ele formou-se em direito em 1891.
Em 1894, devido a uma desilusão amorosa, mudou-se
para a colônia portuguesa de Macau, na China, onde
exerceu diversas atividades, tais como advogado,
professor de filosofia, defensor público e conservador
do registro predial.
Após mudar-se para Macau e até 1915, o poeta voltou
algumas vezes a Portugal, para tratamento de saúde.
Certa vez, foi apresentado a Fernando Pessoa, que,
assim como Mário de Sá-Carneiro, admirava sua poesia.
Literariamente, Camilo Pessanha representou fundamental
influência para a geração da revista Orpheu, à qual pertenceram
poetas de primeiríssima importância como os citados Pessoa e
Sá-Carneiro. O único livro deixado por ele foi Clepsidra, publicado
(sem sua participação) pela escritora Ana de Castro Osório.
Para montar o volume, ela colecionou textos autógrafos do autor
e material publicado em jornais. Antes de partir para Macau,
Pessanha chegara a pedir Ana Osório em casamento, mas ela
recusou por já estar comprometida.
Em Macau, Pessanha casou-se com uma mulher local com quem
teve vários filhos. Aprendeu chinês e mergulhou na cultura
macauense, tornando-se respeitado na colônia.
Escreveu um alentado conjunto de estudos e ensaios
sobre a literatura e a cultura chinesas.
O poeta assimilou tanto a cultura da terra que
se tornou usuário habitual de ópio, prática que
deixou sua saúde mais frágil. Morreu de tuberculose.
•o•
Embora frequentemente referido como soneto,
o poema “Ao longe os barcos de flores” tem apenas
treze versos. Mas nele o que realmente se destaca são
os efeitos musicais. A insistente aliteração do primeiro verso —
sons sibilantes e fricativos — estabelece uma atmosfera de
aparente serenidade e devaneio.
O mesmo timbre musical perpassa todo o poema, marcado
por outras aliterações, como em “Festões de som dissimulando
a hora” ou em “Na orgia, ao longe, que em clarões cintila”. É o tipo
de poema que, para ser bem apreciado, vale a pena fazer uma leitura
em voz alta. Assim pode-se ouvir o sopro da flauta e seus efeitos
mais estrídulos (“tranquila”, “exila”, “cintila”, “trila”), tudo formando,
como diz o poeta, “festões de som” – ou seja, arranjos de flores sonoras.
Para reforçar o aspecto melódico, observe que os dois
primeiros versos se repetem, fechando o segundo quarteto.
E o texto se fecha como um círculo, pois o primeiro verso volta
a aparecer como o último do poema. É como uma partitura que
trouxesse a instrução da capo, orientando o músico para reexecutar a
composição desde o começo.
•o•
Os barcos de flores são menos ingênuos do que a que
expressão pode sugerir. Segundo os estudiosos, trata-se na
verdade de um eufemismo para bordéis flutuantes que existiram
no sul da China até meados do século XX. Também as pessoas e
objetos que surgem no texto são alvo de muitas interpretações.
Para alguns, estão disseminados no poema muitos símbolos
convencionais da cultura chinesa. Em chinês, o termo “flor”, por exemplo,
poderia estar ligado semanticamente à ideia de mulher jovem e também
de fumo, vapor, ópio. Desse modo, o som da flauta que “só, incessante,
chora” seria uma metáfora para a voz do poeta exilado num país e numa
cultura distantes.
Para os mesmos estudiosos, a flauta tocada pela jovem-flor também
teria insinuações de natureza erótica. Além disso, em chinês o branco
é a cor do luto. Daí a ideia da “viúva grácil”, que tanto pode ser a própria
rapariga que faz planger a flauta, como a própria voz do instrumento...
Mas ficam no ar as perguntas: “A flauta flébil... Quem há-de remi-la? /
Quem sabe a dor que sem razão deplora?”
Enfim, como afirmou certa vez Gilles Deleuze (1925-1995), “a obra de
arte não contém, estritamente, nenhuma informação”. Então, o que importa, fundamentalmente, num poema como “Ao Longe os Barcos de Flores”
é a combinação de música e encantamento que oferece. A música
acima de tudo, como propunha o mestre simbolista Paul Verlaine.
•o•
Devido à proximidade musical, saltemos para o último poema.
Aqui, o instrumento é outro: em lugar da flauta, o violoncelo.
Mantém-se o clima de solidão e desconsolo, sucessão desencontrada
de coisas que se chocam como num trecho nervoso de uma sinfonia:
“Trêmulos astros, / Solidões lacustres... / — Lemes e mastros... /
E os alabastros / Dos balaústres!”. Mais uma vez, leia em voz alta.
Você pode não colar exatamente uma ideia sua a estes versos.
Mas sabe, sem dúvida, que neles existe algo de envolvente. Música? Poesia?
•o•
Em “[Singra o navio. Sob a água clara]”, a música também
está presente. Os versos são fluidos e luminosos. Em meio
a uma pura descrição de paisagem marinha, três versos (exatamente]
os dois trechos iniciados por um travessão) apresentam a visão
direta de um observador. É como se o poema todo constituísse um
retrato objetivo, interrompido apenas por aquelas duas considerações
que dão o ponto de vista de alguém, que pode ser o mesmo autor da
descrição. Nelas, há uma afirmação de saudade (“a distância sem fim
que nos separa”) e desilusão (“ó fúlgida visão, linda mentira”) de certo
modo já anunciados no texto pretensamente objetivo: “tantos naufrágios,
perdições, destroços!”.
•o•
Outra vez, em “[Na cadeia os bandidos presos!]”,
uma situação de traços objetivos é usada pelo poeta
para expressar um sentimento íntimo. Neste caso, é o
coração que se sente prisioneiro, saudoso, revoltado.
Diante da pesada disciplina carcerária, no entanto, o dono
desse coração que ameaça arrebentar em tumulto recomenda-lhe
calma para não sofrer ainda mais:“Pschiu! Não batas... Devagarinho... /
Olha os soldados, as algemas!”
•o•
Ao longe os barcos de flores
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Camilo Pessanha
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AO LONGE OS BARCOS DE FLORES Só, incessante, um som de flauta chora, Viúva, grácil, na escuridão tranqüila, — Perdida voz que de entre as mais se exila, — Festões de som dissimulando a hora.
Na orgia, ao longe, que em clarões cintila E os lábios, branca, do carmim desflora... Só, incessante, um som de flauta chora, Viúva, grácil, na escuridão tranqüila,
E a orquestra? E os beijos? Tudo a noite, fora, Cauta, detém. Só modulada trila A flauta flébil... Quem há de remi-la? Quem sabe a dor que sem razão deplora?
Só, incessante, um som de flauta chora...
Joan Miró, catalão, O Campo Lavrado (1923-24)
[SINGRA O NAVIO. SOB A ÁGUA CLARA]
Singra o navio. Sob a água clara Vê-se o fundo do mar, de areia fina... — Impecável figura peregrina, A distância sem fim que nos separa!
Seixinhos da mais alva porcelana, Conchinhas tenuemente cor de rosa, Na fria transparência luminosa Repousam, fundos, sob a água plana.
E a vista sonda, reconstrui, compara, Tantos naufrágios, perdições, destroços! — Ó fúlgida visão, linda mentira!
Róseas unhinhas que a maré partira... Dentinhos que o vaivém desengastara... Conchas, pedrinhas, pedacinhos de ossos....
Joan Miró, O Jardim (1925)
[NA CADEIA OS BANDIDOS PRESOS!]
Na cadeia os bandidos presos! O seu ar de contemplativos! Que é das flores de olhos acesos?! Pobres dos seus olhos cativos. Passeiam mudos entre as grades, Parecem peixes num aquário. — Campo florido das Saudades, Por que rebentas tumultuário? Serenos... Serenos... Serenos... Trouxe-os algemados a escolta. — Estranha taça de venenos Meu coração sempre em revolta. Coração, quietinho... quietinho... Por que te insurges e blasfemas? Pschiu... Não batas... Devagarinho... Olha os soldados, as algemas!
Joan Miró, Composição (1933)
[IMAGENS QUE PASSAIS PELA RETINA]
Imagens que passais pela retina Dos meus olhos, por que não vos fixais? Que passais como a água cristalina Por uma fonte para nunca mais!...
Ou para o lago escuro onde termina Vosso curso, silente de juncais, E o vago medo angustioso domina, Por que ides sem mim, não me levais?
Sem vós o que são os meus olhos abertos? O espelho inútil, meus olhos pagãos! Aridez de sucessivos desertos...
Fica sequer, sombra das minhas mãos, Flexão casual de meus dedos incertos, Estranha sombra em movimentos vãos.
Joan Miró, O Carnaval de Arlequim (1924-2
VIOLONCELO Chorai arcadas Do violoncelo! Convulsionadas, Pontes aladas De pesadelo...
De que esvoaçam, Brancos, os arcos... Por baixo passam, Se despedaçam, No rio, os barcos.
Fundas, soluçam Caudais de choro... Que ruínas, (ouçam)! Se se debruçam, Que sorvedouro!...
Trêmulos astros, Soidões lacustres... — Lemes e mastros... E os alabastros Dos balaústres!
Urnas quebradas! Blocos de gelo... — Chorai arcadas, Despedaçadas, Do violoncelo.
Camilo Pessanha • Clepsidra (1922)
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