Número 330 - Ano 13
São Paulo, quarta-feira, 15 de abril de 2015
«Eu, sempre que parti, fiquei nas gares
/ olhando triste para mim...»
Se ao menos esta dor cantasse...
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Gustav Klimt (1862-1918), pintor austríaco, Judith I (1901)
ATIRA PARA O MAR
Atira para o mar as tuas coisas abandona os teus pais muda de nome
esquece a pátria parte sem bagagem fica mudo e ensurdece abre os teus olhos.
Se o teu amor não vale tudo isso então fica onde estás gelado e quieto.
O amor só sabe ir de mãos vazias e só vale se for o único projeto. Gustav Klimt, O beijo (1908), detalhe
FALAR CONTIGO Falo contigo e é como se falasse com essa qualidade de luz das árvores.
É perfurar o verde e emergir do outro lado (o úmido porvir dos vegetais).
Falo contigo e compreendo o estado dos sons que surgem à noite, noite-em-claro.
Falo contigo e entendo o que não tem sentido.
Amor é assim, palavra: lume comovido.
De Um Calafrio Diário (2002)
Gustav Klimt, Esperança II (1908), detalhe
GATO EM VOLUTAS
Chegou-se a mim, com pés forrados de silêncio. Seu rastro sinuoso marcara-se com plumas. Ei-lo que roça no ser humano sua egoísta subserviência. Recolhe as unhas, como quem guardasse um íntimo segredo invulnerável.
Ó gato, quanto mais eu te amaria se me houvessem rasgado tuas unhas a frágil carne, a de afeição canina!
Afasta-se, seus olhos impossíveis fitos em alguma outra parte.
Quedo, à distância ignora o tempo morto. E em mim a essência morta.
Gustav Klimt, Retrato de Adele Bloch Bauer (1905), detalhe O GRITO
Se ao menos esta dor servisse se ela batesse nas paredes abrisse portas falasse se ela cantasse e despenteasse os cabelos
se ao menos esta dor se visse se ela saltasse fora da garganta como um grito caísse da janela fizesse barulho morresse
se a dor fosse um pedaço de pão duro que a gente pudesse engolir com força depois cuspir a saliva fora sujar a rua os carros o espaço o outro esse outro escuro que passa indiferente e que não sofre tem o direito de não sofrer
se a dor fosse só a carne do dedo que se esfrega na parede de pedra para doer doer doer visível doer penalizante doer com lágrimas
se ao menos esta dor sangrasse.
Gustav Klimt, Retrato de moça (1916)
POEMA
E então, pergunto, por que esta vida de pão e horas moídas?
Por que não somente um pássaro na insciência da tarde clara,
uma árvore verde embutida no musgo da manhã... Por que esta vida?
Por que não uma pedra severa que não procura, não erra, não espera,
ou então outra vida, outra vida que não esta, de sal e lâminas finas,
que não esta, de sal sobre as feridas?
De Obra Poética (1995)
Amigas e amigos,
Poeta, dramaturga, tradutora, a paulistana Renata Pallottini (1931-) tem longos e variados serviços prestados à cultura. Formada em filosofia pela PUC-SP em 1951, concluiu também o curso de direito na USP em 1953. Depois, em Paris, começa a estudar teatro em 1959. De volta a São Paulo, entra na Escola de Arte Dramática da USP e faz os cursos de dramaturgia e crítica.
Sua produção de textos para teatro inicia-se em 1960, com a peça A Lâmpada. Depois disso, a autora criou vários outros espetáculos cênicos. Em 1967, a peça Pedro Pedreiro, com texto dela e música de Chico Buarque, é levada à Colômbia. No ano seguinte, Renata Pallottini traduz o famoso musical Hair, dos americanos James Rado e Gerome Ragni. O trabalho de Renata Pallotini nas artes cênicas estende-se também à televisão, ao cinema e ao ensino universitário.
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Desviemos para a poesia. Renata Pallotini publica seus primeiros versos em 1950 nas revistas da Faculdade de Direito. Estreia em livro dois anos depois, com Acalanto, uma publicação semiartesanal. Em 1956 sai O Monólogo Vivo, primeiro título incluído pela autora em sua Obra Poética, de 1995, que contém um total de 14 livros. Depois disso, Renata publica ainda Um Calafrio Diário (2002), coletânea de poesia, além de outras obras nas áreas de teatro, literatura infantojuvenil e ensaios.
Para este boletim, selecionei cinco poemas, todos destacando o aspecto mais lírico da poesia de Renata Pallottini. Nos dois primeiros, ambos extraídos de Um Calafrio Diário, encontra-se uma proposição de tudo ou nada em nome do amor. Em "Atira para o mar", a ideia é desfazer-se de tudo e mergulhar de cabeça na paixão: “O amor só sabe ir de mãos vazias / e só vale se for / o único projeto”.
Em “Falar contigo”, o clima é o mesmo, defletido porém para os estados de iluminação e êxtase amoroso que leva o/a amante a ler sinais incompreensíveis e entender o que não tem sentido. Em certo aspecto, este poema mantém algum parentesco com o mais célebre soneto bilaqueano, aquele que defende a ideia de que os amantes são capazes de ouvir e entender estrelas.
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Os poemas seguintes são todos da Obra Poética. Em “Gato em volutas”, Renata Pallottini tenta penetrar na “psicologia” dos felinos. Para ela, o animal doméstico “roça no ser humano / sua egoísta subserviência”. Ela também parece dar mais créditos à fidelidade canina. Os humanos que preferem os gatos certamente haverão de protestar. Mas coisas de cão e gato só podem mesmo terminar em rusgas.
“O Grito” é um poema forte que transforma dor em corajoso desabafo lírico, quase desesperado. É a busca de alívio de quem se sente sufocado e sem saída. “Se ao menos esta dor sangrasse”...
Por fim, vem “Poema”, um texto de indagação existencial. “Por que esta vida? / Por que não uma pedra severa / que não procura, não erra, não espera (...)?” Ou, de outro ângulo, por que não outra vida em lugar desta humana, plena de sofrimentos e que, em vez de bálsamo, põe sal nas feridas?
Não esperem respostas. O poeta é, essencialmente, um ser que pergunta.
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Para finalizar, quero puxar um pouco da brasa criativa de Renata Pallottini para a sardinha do poesia.net. Este boletim tem a honra de merecer a leitura e a atenção da múltipla Renata desde as primeiras edições. Esta, aliás, é a segunda vez que ela aparece aqui. A primeira foi no boletim n. 21, em maio de 2003.
Um abraço, e até a próxima.
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