Fernando Pessoa
O sorriso de Álvaro de Campos
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Fernando Pessoa
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Almada Negreiros, português, Retrato de Fernando Pessoa (1964)
AI, MARGARIDA
Ai, Margarida, Se eu te desse a minha vida, Que farias tu com ela? — Tirava os brincos do prego, Casava c'um homem cego E ia morar para a Estrela.
Mas, Margarida, Se eu te desse a minha vida, Que diria tua mãe? — (Ela conhece-me a fundo.) Que há muito parvo no mundo, E que eras parvo também.
E, Margarida, Se eu te desse a minha vida No sentido de morrer? — Eu iria ao teu enterro, Mas achava que era um erro Querer amar sem viver.
Mas, Margarida, Se este dar-te a minha vida Não fosse senão poesia? — Então, filho, nada feito. Fica tudo sem efeito. Nesta casa não se fia.
Comunicado pelo Engenheiro Naval Sr. Álvaro de Campos em estado de inconsciência alcoólica.
1-10-1927
Almada Negreiros: como o artista imaginava os três heterônimos. Da esq. para a dir.: Caeiro, Reis e Campos (o eterno viajante)
QUANDO OS POVOS DA DALMÁCIA
Quando os povos da Dalmácia Fizeram guerra aos da Grécia Saiu muita gente sécia Da casa do rei da Trácia. Houve disto grande falácia, Lá para as bandas da Fenícia, Porém temendo malícia, De gente tão pouco sócia, Lá se foram para a Beócia Para se curar da icterícia.
s/ data
Almada Negreiros, Arlequim (1941)
TENHO ESCRITO MAIS VERSOS QUE VERDADE
Tenho escrito mais versos que verdade. Tenho escrito principalmente Porque outros têm escrito. Se nunca tivesse havido poetas no mundo, Seria eu capaz de ser o primeiro? Nunca! Seria um indivíduo perfeitamente consentível, Teria casa própria e moral. Senhora Gertrudes! Limpou mal este quarto: Tire-me essas ideias de aqui!
15-10-1930 Data aposta, no verso da folha, a outro fragmento de poema. (Observação de Teresa Rita Lopes)
Almada Negreiros, Estudo para decoração de um teatro (1929)
SIM, ESTÁ TUDO CERTO
Sim, está tudo certo. Está tudo perfeitamente certo. O pior é que está tudo errado. Bem sei que esta casa é pintada de cinzento Bem sei qual é o número desta casa — Não sei, mas poderei saber, como está avaliada Nessas oficinas de impostos que existem para isto — Bem sei, bem sei... Mas o pior é que há almas lá dentro E a Tesouraria de Finanças não conseguiu livrar A vizinha do lado de lhe morrer o filho. A Repartição de não sei quê não pode evitar Que o marido da vizinha do andar mais acima lhe fugisse com a cunhada... Mas, está claro, está tudo certo... E, excepto estar errado, é assim mesmo: está certo...5-3-1935 Poema publicado pela Aguilar como de Fernando Pessoa, ele-mesmo.
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poesia.netwww.algumapoesia.com.br Carlos Machado, 2015 |
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Amigas e amigos,
Quem dá uma olhada, mesmo superficial, na obra poética do
lisboeta Fernando Pessoa (1888-1935), percebe facilmente que
Álvaro de Campos é de longe seu heterônimo mais prolífico.
Verdadeiro alter ego, Campos é o mais Pessoa de todas as
três principais sombras de Pessoa.
No baú dos escritos até recentemente inéditos do poeta, essa
característica se mantém. Tanto que a portuguesa Teresa Rita
Lopes, destacada pessoóloga e também poeta, publicou em 1993
a edição crítica Álvaro de Campos - Livro de Versos, que revela
mais 79 poemas de Campos, além dos até então conhecidos.
Antes de Teresa Rita, a brasileira Cleonice Berardinelli, especialista
em literatura portuguesa e estudiosa pessoana, também havia publicado,
em 1990, uma edição crítica dos Poemas de Álvaro de Campos, contendo
igualmente alguns textos inéditos.
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Quem é Álvaro de Campos?
Conforme a biografia traçada por Pessoa, Álvaro de Campos nasceu
em 1890, em Tavira, no extremo sul de Portugal. Engenheiro naval
formado em Glasgow, Escócia, nunca exerceu a profissão, por absoluta
inconformidade com a rotina de um local de trabalho e as miudezas da vida.
Após retornar a Portugal, Campos conhece Alberto Caeiro, outro heterônimo
de Pessoa, de quem se torna discípulo. De Caeiro ele admira o objetivismo,
a aversão à filosofia, a percepção visual da realidade. "Creio no mundo
como num malmequer, / Porque o vejo. Mas não penso nele / Porque pensar
é não compreender...", ensina o mestre Caeiro.
Homem das sensações — daí o termo “sensacionista” —, o engenheiro
Álvaro de Campos é futurista, vanguardista. É o heterônimo do século XX
, fascinado pela velocidade, pelas máquinas e a eletricidade. Arrebatado,
mostra-se ao mesmo tempo racional, lúcido e negativista.
Exuberante, arrebatado, hiperbólico, ele sofre a influência do americano
Walt Whitman e seu caudaloso livro-poema Folhas de Relva (1855).
Num
dos inéditos encontrados por Cleonice Berardinelli, Campos garante:
“Minha imaginação é um Arco de Triunfo. / Por baixo dela passa toda a Vida”.
Um detalhe interessante. Dos três heterônimos de Pessoa, só Caeiro
morreu, aos 26 anos. Os outros dois, Campos e Reis, sobreviveram
ao seu criador. Isso, aliás, deu azo a que José Saramago escrevesse
o romance O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984). Quem leu o livro
sabe que as últimas peripécias de Reis, conforme a ficção de Saramago,
ocorrem após o desaparecimento de Fernando Pessoa.
•o•
Embora entre os traços característicos de Álvaro de Campos não se
destaque o bom humor, quero destacar neste boletim dois poemas atribuídos
ao engenheiro naval nos quais ele mostra certa disposição para a leveza e
a brincadeira. Ambos pertencem aos textos desentranhados da arca de
Fernando Pessoa.
O primeiro é “Ai, Margarida”, datado de 1927, que apresenta um
diálogo mantido entre Margarida e o namorado. Este pergunta e Margarida
responde. Ele é um sonhador, dado a promessas vazias e grandiosas,
enquanto a moça tem os pés firmemente plantados no chão. Um saboroso
detalhe do poema é a nota que vem ao final. Ela dá a entender que alguém
teria anotado esses versos, uma vez que o autor, o engenheiro naval Álvaro
de Campos, se encontrava em “estado de inconsciência alcoólica”.
O outro texto é “Quando os povos da Dalmácia”, que não traz data. Nele,
Campos trabalha com rimas bem ao gosto dos simbolistas: em ácia, écia, ícia, ócia.
O resultado é uma história de total nonsense.
“Ai, Margarida” está no volume Álvaro de Campos – Livro de Versos, (1993), de
Teresa Rita Lopes. Já “Quando os Povos da Dalmácia” vem de Poemas
de Álvaro de Campos (1990), de Cleonice Berardinelli.
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Pensando bem, no início (antes de conhecer Alberto Caeiro), Campos até
exibia certa inclinação para o riso. No longo poema “Opiário”, um de seus
primeiros, escrito em 1914 “no Canal de Suez, a bordo”, ele confessava:
Eu, que fui sempre um mau estudante, agora Não faço mais que ver o navio ir Pelo canal de Suez a conduzir A minha vida, cânfora na aurora.
Mais adiante:
Eu fingi que estudei engenharia. Vivi na Escócia. Visitei a Irlanda. Meu coração é uma avozinha que anda Pedindo esmolas às portas da Alegria.
E, por fim:
Não posso estar em parte alguma. A minha Pátria é onde não estou. Sou doente e fraco. O comissário de bordo é velhaco. Viu-me co'a sueca... e o resto ele adivinha.
Se não ria às escâncaras, o engenheiro naval Álvaro de
Campos pelo menos esboçava algum sorriso.
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Para completar o boletim, incluí mais dois poemas de Álvaro de Campos extraídos do baú de Pessoa por meio do livro de Teresa Rita Lopes. Esses, no entanto, não têm abertura para o riso: trazem o habitual humor sombrio do engenheiro.
P.S.: Fernando Pessoa já esteve neste
boletim outras vezes:
- poesia.net n. 22
- poesia.net n. 145 - poesia.net n. 250
Fernando Pessoa / Álvaro de Campos * "Ai, Margarida", "Tenho escrito mais versos que verdade" e "Sim, está tudo certo" In Álvaro de Campos - Livro de Versos Edição crítica de Teresa Rita Lopes Estampa, Lisboa, 1993 * "Quando os Povos da Dalmácia" In Poemas de Álvaro de Campos Edição crítica de Cleonice Berardinelli Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1990
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