quinta-feira, 2 de abril de 2015

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Em Terça-feira, 31 de Março de 2015 19:40, Carlos Machado escreveu:


Número 329 - Ano 13
São Paulo, quarta-feira, 1 de abril de 2015
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Fernando Pessoa

Fernando Pessoa



«Amor é compromisso / 
com algo mais terrível do que amor

 (Carlos Drummond de Andrade) *




O sorriso de Álvaro de Campos
Fernando Pessoa

Almada Negreiros - Retrato de Fernando Pessoa (1964)
Almada Negreiros, português, Retrato de Fernando Pessoa (1964)




AI, MARGARIDA

Ai, Margarida,
Se eu te desse a minha vida,
Que farias tu com ela?
— Tirava os brincos do prego,
Casava c'um homem cego
E ia morar para a Estrela.

Mas, Margarida,
Se eu te desse a minha vida,
Que diria tua mãe?
— (Ela conhece-me a fundo.)
Que há muito parvo no mundo,
E que eras parvo também.

E, Margarida,
Se eu te desse a minha vida
No sentido de morrer?
— Eu iria ao teu enterro,
Mas achava que era um erro
Querer amar sem viver.

Mas, Margarida,
Se este dar-te a minha vida
Não fosse senão poesia?
— Então, filho, nada feito.
Fica tudo sem efeito.
Nesta casa não se fia.

Comunicado pelo Engenheiro Naval
Sr. Álvaro de Campos em estado
de inconsciência alcoólica.

1-10-1927
Almada Negreiros - Caeiro, Reis, Campos

Almada Negreiros: como o artista imaginava os três heterônimos.
Da esq. para a dir.: Caeiro, Reis e Campos (o eterno viajante)


QUANDO OS POVOS DA DALMÁCIA

Quando os povos da Dalmácia
Fizeram guerra aos da Grécia
Saiu muita gente sécia
Da casa do rei da Trácia.
Houve disto grande falácia,
Lá para as bandas da Fenícia,
Porém temendo malícia,
De gente tão pouco sócia,
Lá se foram para a Beócia
Para se curar da icterícia.

s/ data




Almada Negreiros - Arlequim (1941)
Almada Negreiros, Arlequim (1941)

TENHO ESCRITO MAIS VERSOS QUE VERDADE

Tenho escrito mais versos que verdade.
Tenho escrito principalmente
Porque outros têm escrito.
Se nunca tivesse havido poetas no mundo,
Seria eu capaz de ser o primeiro?
Nunca!
Seria um indivíduo perfeitamente consentível,
Teria casa própria e moral.
Senhora Gertrudes!
Limpou mal este quarto:
Tire-me essas ideias de aqui!

15-10-1930
Data aposta, no verso da folha, a outro fragmento de poema.
(Observação de Teresa Rita Lopes)





Almada Negreiros - Estudo (1929)
Almada Negreiros, Estudo para decoração de um teatro (1929)
SIM, ESTÁ TUDO CERTO

Sim, está tudo certo.
Está tudo perfeitamente certo.
O pior é que está tudo errado.
Bem sei que esta casa é pintada de cinzento
Bem sei qual é o número desta casa —
Não sei, mas poderei saber, como está avaliada
Nessas oficinas de impostos que existem para isto —
Bem sei, bem sei...
Mas o pior é que há almas lá dentro
E a Tesouraria de Finanças não conseguiu livrar
A vizinha do lado de lhe morrer o filho.
A Repartição de não sei quê não pode evitar
Que o marido da vizinha do andar mais acima lhe fugisse com a cunhada...
Mas, está claro, está tudo certo...
E, excepto estar errado, é assim mesmo: está certo...
5-3-1935
Poema publicado pela Aguilar como de Fernando Pessoa, ele-mesmo. 



poesia.netwww.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2015

 Amigas e amigos,


Quem dá uma olhada, mesmo superficial, na obra poética do 

lisboeta Fernando Pessoa (1888-1935), percebe facilmente que
 Álvaro de Campos é de longe seu heterônimo mais prolífico. 
Verdadeiro alter ego, Campos é o mais Pessoa de todas as
 três principais sombras de Pessoa.


No baú dos escritos até recentemente inéditos do poeta, essa 

característica se mantém. Tanto que a portuguesa Teresa Rita
 Lopes, destacada pessoóloga e também poeta, publicou em 1993
 a edição crítica Álvaro de Campos - Livro de Versos, que revela
 mais 79 poemas de Campos, além dos até então conhecidos.


Antes de Teresa Rita, a brasileira Cleonice Berardinelli, especialista

 em literatura portuguesa e estudiosa pessoana, também havia publicado,
 em 1990, uma edição crítica dos Poemas de Álvaro de Campos, contendo
 igualmente alguns textos inéditos.
•o•
Quem é Álvaro de Campos?

Conforme a biografia traçada por Pessoa, Álvaro de Campos nasceu 

em 1890, em Tavira, no extremo sul de Portugal. Engenheiro naval
 formado em Glasgow, Escócia, nunca exerceu a profissão, por absoluta
 inconformidade com a rotina de um local de trabalho e as miudezas da vida.


Após retornar a Portugal, Campos conhece Alberto Caeiro, outro heterônimo

 de Pessoa, de quem se torna discípulo. De Caeiro ele admira o objetivismo,
 a aversão à filosofia, a percepção visual da realidade. "Creio no mundo 
como num malmequer, / Porque o vejo. Mas não penso nele / Porque pensar
 é não compreender...", ensina o mestre Caeiro.


Homem das sensações — daí o termo “sensacionista” —, o engenheiro

 Álvaro de Campos é futurista, vanguardista. É o heterônimo do século XX
, fascinado pela velocidade, pelas máquinas e a eletricidade. Arrebatado,
 mostra-se ao mesmo tempo racional, lúcido e negativista.


Exuberante, arrebatado, hiperbólico, ele sofre a influência do americano

 Walt Whitman e seu caudaloso livro-poema Folhas de Relva (1855). 
Num 
dos inéditos encontrados por Cleonice Berardinelli, Campos garante: 
“Minha imaginação é um Arco de Triunfo. / Por baixo dela passa toda a Vida”.


Um detalhe interessante. Dos três heterônimos de Pessoa, só Caeiro

 morreu, aos 26 anos. Os outros dois, Campos e Reis, sobreviveram 
ao seu criador. Isso, aliás, deu azo a que José Saramago escrevesse
 o romance O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984). Quem leu o livro 
sabe que as últimas peripécias de Reis, conforme a ficção de Saramago,
 ocorrem após o desaparecimento de Fernando Pessoa.
•o•

Embora entre os traços característicos de Álvaro de Campos não se 

destaque o bom humor, quero destacar neste boletim dois poemas atribuídos 
ao engenheiro naval nos quais ele mostra certa disposição para a leveza e 
a brincadeira. Ambos pertencem aos textos desentranhados da arca de 
Fernando Pessoa.


O primeiro é “Ai, Margarida”, datado de 1927, que apresenta um 

diálogo mantido entre Margarida e o namorado. Este pergunta e Margarida 
responde. Ele é um sonhador, dado a promessas vazias e grandiosas, 
enquanto a moça tem os pés firmemente plantados no chão. Um saboroso 
detalhe do poema é a nota que vem ao final. Ela dá a entender que alguém 
teria anotado esses versos, uma vez que o autor, o engenheiro naval Álvaro 
de Campos, se encontrava em “estado de inconsciência alcoólica”.


O outro texto é “Quando os povos da Dalmácia”, que não traz data. Nele,

 Campos trabalha com rimas bem ao gosto dos simbolistas: em ácia, écia, ícia, ócia.
 O resultado é uma história de total nonsense.


“Ai, Margarida” está no volume Álvaro de Campos – Livro de Versos, (1993), de

 Teresa Rita Lopes. Já “Quando os Povos da Dalmácia” vem de Poemas
 de Álvaro de Campos (1990), de Cleonice Berardinelli.
•o•
Pensando bem, no início (antes de conhecer Alberto Caeiro), Campos até
 exibia certa inclinação para o riso. No longo poema “Opiário”, um de seus
 primeiros, escrito em 1914 “no Canal de Suez, a bordo”, ele confessava:

Eu, que fui sempre um mau estudante, agora
Não faço mais que ver o navio ir
Pelo canal de Suez a conduzir
A minha vida, cânfora na aurora.


Mais adiante:

Eu fingi que estudei engenharia.
Vivi na Escócia. Visitei a Irlanda.
Meu coração é uma avozinha que anda
Pedindo esmolas às portas da Alegria.


E, por fim:

Não posso estar em parte alguma. A minha
Pátria é onde não estou. Sou doente e fraco.
O comissário de bordo é velhaco.
Viu-me co'a sueca... e o resto ele adivinha.


Se não ria às escâncaras, o  engenheiro naval Álvaro de

 Campos pelo menos esboçava algum sorriso.
•o•

Para  completar o boletim, incluí mais dois poemas de
Álvaro de Campos extraídos do baú de Pessoa por meio do
livro de Teresa Rita Lopes. Esses, no entanto, não têm
 abertura para o riso: trazem o habitual humor sombrio do engenheiro. 

Um abraço, e até a próxima.

Carlos Machado
P.S.: Fernando Pessoa já esteve neste
 boletim outras vezes:
poesia.net n. 22
- poesia.net n. 145
- 
poesia.net n. 250




Fernando Pessoa / Álvaro de Campos
* "Ai, Margarida", "Tenho escrito mais versos que verdade"
   e "Sim, está tudo certo"
   In Álvaro de Campos - Livro de Versos
   Edição crítica de Teresa Rita Lopes
   Estampa, Lisboa, 1993
* "Quando os Povos da Dalmácia"
   In Poemas de Álvaro de Campos
   Edição crítica de Cleonice Berardinelli
   Imprensa Nacional-Casa da Moeda, Lisboa, 1990





•o•


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* Carlos Drummond de Andrade, "Mineração do Outro", in Lição de Coisas (1964)

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- Imagens: trabalhos do português José de Almada Negreiros (1893-1970) artista
  plástico e poeta que fez parte do grupo de Pessoa na revista Orpheu 
(1915)
   

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