AS CRIATURAS DE JOÃO CABRAL
João Cabral de Melo Neto
Amigas e amigos,
Fevereiro chegou, e é hora de
retomar as edições quinzenais
do poesia.net. Este é, portanto,
o primeiro boletim de 2015.
Desta vez, já em nosso décimo
terceiro ano de estrada, vamos
a obra do poeta pernambucano
João Cabral de Melo Neto (1920-1999).
Nome dos mais celebrados e
influentes da poesia brasileira
no século XX, Cabral dispensa
apresentações. Para este
boletim, selecionei alguns poemas
que nos permitem fazer
um breve passeio pela sua obra do
poeta pernambucano.
•o•
Comecemos por um de seus textos
mais conhecidos, “Tecendo a Manhã”, do livro
A Educação pela Pedra, de 1966. Nesse texto antológico,
o poeta enxerga na rede de galos que cantam na madrugada um verdadeiro
tear no qual os gritos das aves se entrelaçam com os fios do sol
e vão compondo o tecido luminoso da manhã.
Observe-se um detalhe: em relação
às aves, não aparece nenhuma referência a “canto” ou “cantar”.
E não é por acaso. Para o efeito “têxtil” do poema, “grito”
é mais indicado. Trata-se de um vocábulo que parece conter, no
estrato sonoro, a ideia de algo mais fino — com jeito de fio, ou fibra
— e portanto mais adequado à trama com os raios de sol.
“Tecendo a Manhã” é, com toda a razão,
um dos poemas mais apreciados de João Cabral.
•o•
Praticante e proponente de uma poesia
marcada pela concretude das imagens, Cabral tornou-se
uma espécie de porta-bandeira da negação do lírico,
um autor avesso à poesia subjetiva e sentimental. Isso leva alguns
a entender que a obra do poeta recifense passou em branco
pelos temas do amor e do erotismo. Não é verdade.
Veja-se este texto, “Paisagem pelo Telefone”,
publicado originalmente no livro Quaderna (1960).
Aqui, o poeta descreve os devaneios eróticos de um
homem que conversa com uma mulher — namorada? — pelo telefone.
O desenvolvimento é típico do estilo cabralino: uma imagem
puxa outra, todas sempre construídas em cima de referências concretas.
Primeiro, a conversação telefônica
com a mulher o faz supor que ela se encontra numa sala
com duzentas janelas, “toda de luz invadida”. Para reforçar a ideia de
completa ausência de sombras, o homem supõe que a sala está
aberta para uma praia pernambucana, “no prumo do meio-dia”.
A paisagem marinha traz à cena jangadas, velas brancas. Observem:
nada de abstrações.
Na quadra que começa com “Pois, assim,
no telefone”, o homem passa a dizer à interlocutora que também
a imagina despida, naquela claridade do meio-dia nordestino:
“eu diria / que estavas de todo nua, só de teu banho vestida”. Por fim, sedutor
e malicioso, afirma que a amiga é uma criatura que tem claridade própria.
Por isso, diz ele, a água do banho apenas “libera a luz que já tinhas”.
Também em outros textos deQuaderna,
Cabral envereda pela dicção sensual, quase erótica.
Um exemplo é o poema “Jogos Frutais” (não transcrito aqui),
no qual ele traça um paralelo entre a mulher e diversas frutas
nordestinas. Num tom que às vezes lembra o Cântico dos
Cânticos com sotaque pernambucano, ele canta: “És tão elegante quanto
/ um pé de cana, / despindo a perna nua / de dentre a palha. /
E tens a perna / do mesmo metal sadio / da cana esbelta”.
Num trecho de erotismo mais explícito, diz: “Não és uma fruta fruta / só para o dente,
/ nem és uma fruta flor, / olor somente. / Fruta completa: /
para todos os sentidos, / para cama e mesa”.
•o•
O próximo poema vem do livro
A Escola das Facas, de 1980. Trata-se de “Forte de Orange,
Itamaracá”. Nele, João Cabral de Melo Neto descreve o embate
do tempo e seu inescapável poder corrosivo contra as
temíveis armas de guerra dessa fortificação construída pelos
holandeses em 1631. Após a expulsão dos flamengos em 1654,
o lugar foi abandonado e depois ocupado pelos portugueses.
Hoje, tombado, é atração turística.
Composto de 24 versos sem separação
de estrofes, o texto é todo marcado por rimas toantes em /u/
nos versos pares: hirsuto, musgo, pulso, absoluto etc. Os oito versos
finais descrevem, com toda a cerimônia das tragédias, a rendição
inexorável das coisas diante do tempo. É o princípio da água mole
em pedra dura aplicado a uma edificação militar que, quando construída,
parecia eterna e inviolável. No final, conforme o verso de Cabral,
o ferro se rende ao musgo.
Embora pouco citado, esse é um dos
poemas mais expressivos de João Cabral.
•o•
Seria pecado capital passar pela obra de
João Cabral de Melo Neto e não falar de Sevilha.
Como se sabe, o poeta, diplomata de carreira, morou nessa cidade
espanhola e escreveu copiosamente sobre as gentes e costumes
sevilhanos. Além de poemas dispersos em vários livros, ele
publicou uma coletânea, Sevilha Andando (1990), totalmente dedicada
a essa cidade andaluz. Desse volume pincei o poema
“Uma Bailadora Sevilhana”.
Nas oito parelhas que perfazem o texto,
quem fala é a mulher referida no título, uma dançarina de flamenco.
Fala de si e de sua arte, um dos símbolos da cultura espanhola —
mais especificamente da região de Andaluzia, comunidade autônoma
localizada no sul da Espanha, cuja capital é exatamente a Sevilha
que tanto encantou o autor de Quaderna.
Nos dois versos finais, a dançarina sevilhana
faz uma síntese magistral: “dançar flamenco
é cada vez; / é fazer; é um faz, nunca um fez”. Ela diz isso em tom de crítica a outra bailadora
que, a seu ver, “dança repetido; / dança sem se expor, sem perigo”.
Essa artista rigorosa, minuciosa, que tem todo o jeito de ser
um alter ego de João Cabral, fala na verdade de qualquer arte.
O ato de criar pressupõe correr riscos e fugir da repetição.
•o•
Eis outro exemplo de como João Cabral trabalha com questões abstratas sem abrir mão das imagens e do vocabulário concretos. Em “Questão de Pontuação”, poema de Agrestes (1985), ele traça paralelos entre o texto e a vida, usando como referência três sinais de pontuação: a exclamação, a interrogação e o ponto final.
Abraço, e um bom 2015 para todos nós.
•o•
JOÃO CABRAL: BREVE NOTÍCIA
João Cabral de Melo Neto nasceu no Recife em 1920 e passou parte da infância nos engenhos da família no interior de Pernambuco. De volta a Recife, estudou no Colégio Marista, onde concluiu o curso secundário. No início dos anos 40, muda-se para o Rio de Janeiro. Funcionário público, prestou concurso em 1945 para a carreira diplomática, que exerceu até a aposentadoria em 1990, no cargo de embaixador. Morou em vários países, como Senegal, Portugal, Espanha, Inglaterra, França e Equador. Cabral faleceu no Rio de Janeiro em 1999.
Fazem parte de sua obra poética títulos como Pedra do Sono, 1942; O Engenheiro, 1945; O Cão sem Plumas, 1950; O Rio, 1954; Quaderna, 1960; A Educação pela Pedra, 1966; Morte e Vida Severina e Outros Poemas em Voz Alta, 1966; Museu de Tudo, 1975;A Escola das Facas, 1980; Agrestes, 1985; Auto do Frade, 1986; Crime na Calle Relator, 1987; e Sevilha Andando, 1989.
•o•
Cícero Dias (1907-2003), pintor pernambucano, Casal na varanda
TECENDO A MANHÃ
Um galo sozinho não tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos. De um que apanhe esse grito que ele e o lance a outro; de um outro galo que apanhe o grito que um galo antes e o lance a outro; e de outros galos que com muitos outros galos se cruzem os fios de sol de seus gritos de galo para que a manhã, desde uma teia tênue se vá tecendo, entre todos os galos.
2.
E se encorpando em tela, entre todos, se erguendo tenda, onde entrem todos, se entretendendo para todos, no toldo (a manhã) que plana livre de armação. A manhã, toldo de um tecido tão aéreo que, tecido, se eleva por si: luz balão.
De A Educação pela Pedra (1966)
Cícero Dias, Casal no barco
PAISAGEM PELO TELEFONE
Sempre que no telefone me falavas, eu diria que falavas de uma sala toda de luz invadida,
sala que pelas janelas, duzentas, se oferecia a alguma manhã de praia, mais manhã porque marinha,
a alguma manhã de praia no prumo do meio-dia, meio-dia mineral de uma praia nordestina,
Nordeste de Pernambuco, onde as manhãs são mais limpas, Pernambuco do Recife, de Piedade, de Olinda,
sempre povoado de velas, brancas, ao sol estendidas, de jangadas, que são velas mais brancas porque salinas,
que, como muros caiados possuem luz intestina, pois não é o sol quem as veste e tampouco as ilumina,
mais bem, somente as desveste de toda sombra ou neblina, deixando que livres brilhem os cristais que dentro tinham.
Pois, assim, no telefone tua voz me parecia como se de tal manhã estivesses envolvida,
fresca e clara, como se telefonasses despida, ou, se vestida, somente de roupa de banho, mínima,
e que por mínima, pouco de tua luz própria tira, e até mais, quando falavas no telefone, eu diria
que estavas de todo nua, só de teu banho vestida, que é quando tu estás mais clara pois a água nada embacia,
sim, como o sol sobre a cal seis estrofes mais acima, a água clara não te acende: libera a luz que já tinhas.
De Quaderna (1960)
Cícero Dias, Mulher e guarda-chuva
FORTE DE ORANGE, ITAMARACÁ
A pedra bruta da guerra, seu grão granítico, hirsuto, foi toda sitiada por erva-de-passarinho, musgo. Junto da pedra que o tempo rói, pingando como um pulso, inroído, o metal canhão parece eterno, absoluto. Porém o pingar do tempo pontual, penetra tudo; se seu pulso não se sente, bate sempre, e pontiagudo, e a guerrilha vegetal no seu infiltrar-se mudo, conta com o tempo, suas gotas contra o ferro inútil, viúvo. E um dia os canhões de ferro, sua tesão vã, dedos duros, se renderão ante o tempo e seu discurso, ou decurso: ele fará, com seu pingo inestancável e surdo, que se abracem, se penetrem, se possuam, ferro e musgo.
De A Escola das Facas (1980)
Cícero Dias, Mulher na varanda
UMA BAILADORA SEVILHANA
Como e por que sou bailadora? Quando era entre menina e moça
tinha comprida cabeleira que me vinha até as cadeiras.
Me diziam: com essas tranças não pode não votar-se à dança.
Então, me ensinam a dançar. Sou? O que não pude decorar.
Vendo famosa bailadora: ei-la apagada, quase mocha.
"Não te agrada F... de Tal, que todo dia sai no jornal?"
"Não gosto: dança repetido; dança sem se expor, sem perigo;
dançar flamenco é cada vez; é fazer; é um faz, nunca um fez."
De Agrestes (1985)
Cícero Dias, Paisagem com o bondinho do Pão de Açúcar
QUESTÃO DE PONTUAÇÃO
Todo mundo aceita que ao homem cabe pontuar a própria vida: que viva em ponto de exclamação (dizem: tem alma dionisíaca);
viva em ponto de interrogação (foi filosofia, ora é poesia); viva equilibrando-se entre vírgulas e sem pontuação (na política):
o homem só não aceita do homem que use a só pontuação fatal: que use, na frase que ele vive o inevitável ponto final.
De Agrestes (1985)
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poesia.netwww.algumapoesia.com.br Carlos Machado, 2015
João Cabral de Melo Neto
In Poesia Completa e Prosa
Nova Aguilar, 1a. ed., Rio de Janeiro, 1994
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* Antonio Brasileiro, "Toada", in Poemas Reunidos (2005)
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- Todas as imagens: pinturas do pernambucano Cícero Dias (1907-2003)
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