FEIRA DE SANTANA - HÁ 160 ANOS EPIDEMIA DE CÓLERA
FEIRA DE SANTANA - BAHIA - BRASIL
FEIRA DE SANTANA NO TEMPO DO CÓLERA
Vicente Deocleciano Moreira
[enviado especialmente para o Blogue CIDADE
http;//www.viverascidades.blogspot.com.br]
A história da morte em uma cidade, em uma comunidade, não é a soma das morte dos indivíduos "isolados" ou nos respectivos grupos sociais, mas as mortes coletivas, marcadas pelas epidemias, pelos desastres, tragédias ... que, num determinado período, causam comoção comunitária, ocupam os noticiários e as conversas de bares e esquinas. Essas conversas são, enfim, capazes de mobilizar grandes massas e envolver, além de comprometer, todos - parentes ou não - das vítimas, conhecidos ou desconhecidos dos mortos.
Há 160 anos (1855-2015) Feira de Santana era tomada pelo pânico diante de um acontecimento epidêmico de Cólera. Mortes, desespero, fugas ... e uma cidade abandonada e impotente para combater a epidemia. No dia 19 de agosto de 1855, registraram-se as primeiras vítimas fatais em Feira de Santana.
O Cholera Morbus (Cholera Asiático) é um doença infecciosa e aguda, geralmente de ação epidêmica e manifesta-se através de vômitos, diarréia, arrepios, cãibras e lividez.
Tem caráter epidêmico toda doença acidental, transitória, infecciosa que, na maioria dos casos, atinge um grande número de pessoas (ricas ou pobres, brancas ou negras) ao mesmo tempo e no mesmo lugar.
Este texto está entremeado de citações extraídas do livro O amor no tempo do Cólera do romancista colombiano Gabriel Garcia Marquez e do conto Morte em Veneza o escritor alemão Thomas Mann. Garcia Marquez utilizou episódios ligados à epidemia de Cólera na cidade de Cartagena das Índias (Colômbia). Mann escreveu sobre a paixão de um homem maduro por um adolescente na Veneza do século XIX, assustada pela Cólera.
O levantamento de informações sobre a epidemia de Cólera (1855), em Feira de Santana, foi realizado em 1990 pelas então estudantes de História da Universidade Estadual de Feira de Santana: Emília Maria Ferreira da Silva e Rita Soraya Barbosa de Almeida.
Mil oitocentos e cinquenta e cinco foi o ano do Cólera na Bahia. Os primeiros casos foram registrados no então povoado (hoje bairro) do Rio Vermelho, em 21 de julho. A epidemia se fez presente depois em Cachoeira, Santo Amaro, Itaparica, Valença, Nazaré das Farinhas; seguiu a direção Norte até Geremoabo, o Sul até Barra do Rio de Contas ... e chegou a Feira de Santana. Na região feirense, os primeiros eventos foram conhecidos em 19 de agosto de 1855, com três vítimas fatais. No dia seguinte, a Câmara Municipal reuniu-se, deu conhecimento oficial da ocorrência ao governo da província da Bahia e designou o cirurgião José Caetano Alvim para o tratamento dos enfermos.
O número de casos de doenças, de mortes, se elevava a vinte, a quarenta, mesmo a cem e mais e, logo depois, qualquer existência da epidemia, quando não desmentida categoricamente, era atribuída a casos isolados trazidos de fora. (MANN, p. 151)
Cercada por lagoas, rios e nascentes, Feira de Santana, na expressão da Medicina da época, atribuía a origem da doença aos miasmas, gases que eram inalados pela população, efluídos dos espelhos d´água, nascentes, aguadas e canaletas que irrigavam as hortas. No entanto, os produtos hortifrutigranjeiros continuavam sendo consumidos na feira-livre do centro da cidade e consumidos pela população sem maiores suspeitas.
Porém, provavelmente, os alimentos tinham sido infeccionados, as verduras, a carne ou o leite, pois, desmentidas e encobertamente, a morte devorava nas estreitas ruas e o calor veranil prematuro, que aquecia as águas dos canais, era especialmente favorável à população. (MANN, p. 160)
Enquanto aguardava providências de Salvador e a própria extinção da epidemia, a Câmara Municipal de Feira de Santana tomava s medidas possíveis e limitadas pela Medicina da época: pagava homens para que fizessem fogueiras com arbustos aromáticos para, através da expansão dos odores, prevenir contra o avanço do Cólera, chegando em setembro de 1855, cada homem receber 11 mil réis. No conjunto dessas medidas, a Câmara designou o boticário (farmacêutico, dono de farmácia) Victorino José Fernandes Gouvêa, a fornecer medicamentos para pacientes pobres mediante receita assinada pelo cirurgião José Caetano Alvim. Em 3 de novembro de 1855, o boticário enviou ofício à Câmara, recusando qualquer recompensa pelos serviços prestados ao combate à epidemia.
Na verdade, não havia e nem há relação de causa e efeito entre os miasmas (nome generalizado do gases liberados pela matéria em decomposição) com a incidência do Cólera. Nem todas as pessoas, em contato com esses gases, contraíam a Cólera; por outro lado, inúmeras outras ficavam acometidas da enfermidade, convivendo em ambientes secos, limpos e arejados. Uma outra compreensão médica da época denunciava a presença de um suposto veneno nas lagoas, fontes e poços de que se serviam os feirenses. Essas duas compreensões foram superadas pela descoberta do vibrião colérico por John Snow na segunda metade do século XIX.
O vibrião é um gênero de bactéria que apresenta a forma de bastonete recurvo, móvel, com dois ou três cílios polares. Lagoas, rios, nascentes, poços, aguadas ... eram a fonte de abastecimento (bebida, higiene, irrigação e lavagem de alimentos) e, ao mesmo tempo de esgotamento sanitário da Feira de Santana do século XIX. Era exatamente nesses mananciais que se desenvolvia o habitat do vibrião colérico. Não seria exagerado dizer que dezenas de famílias, nestas primeiras décadas do século XXI, continuam fazendo esse duplo uso dos mananciais de Feira de Santana com o agravante e que eles, hoje, também recebem dejetos industriais.
A pobreza, a miséria e as precárias condições sanitárias delas decorrentes, que caracterizavam a maior parte dos moradores de Feira de Santana no século XIX (e neste), já anteviam facilmente o quadro socioeconômico futuro da região. O tipo de solo favorecia a infiltração e, também, a drenagem de fezes de portadores do Cólera
O vibrião é um gênero de bactéria que apresenta a forma de bastonete recurvo, móvel, com dois ou três cílios polares. Lagoas, rios, nascentes, poços, aguadas ... eram a fonte de abastecimento (bebida, higiene, irrigação e lavagem de alimentos) e, ao mesmo tempo de esgotamento sanitário da Feira de Santana do século XIX. Era exatamente nesses mananciais que se desenvolvia o habitat do vibrião colérico. Não seria exagerado dizer que dezenas de famílias, nestas primeiras décadas do século XXI, continuam fazendo esse duplo uso dos mananciais de Feira de Santana com o agravante e que eles, hoje, também recebem dejetos industriais.
A pobreza, a miséria e as precárias condições sanitárias delas decorrentes, que caracterizavam a maior parte dos moradores de Feira de Santana no século XIX (e neste), já anteviam facilmente o quadro socioeconômico futuro da região. O tipo de solo favorecia a infiltração e, também, a drenagem de fezes de portadores do Cólera
para os rios e lagoas cujas águas, como foi dito anteriormente, eram consumidas pela população em geral.
O cólera se encarniçou muito mais contra a população negra por ser a mais numerosa, mas na realidade não teve contemplação com cores nem linhagens. (GARCIA MARQUEZ, p. 141)
Na primeira semana de dezembro de 1855, a epidemia apresentava sinais de declínio, ao menos na sede de Feira de Santana,
Parou de chofre como havia começado, e nunca se soube o número de suas vítimas, não porque não fosse possível estabeleçê-lo, e sim porque uma de nossas virtudes corriqueiras era o pudor das desgraças. (GARCIA MARQUEZ, p. 141)
Na segunda quinzena, porém, o Cólera reapareceu com violência principalmente em Limoeiro e Bonfim, causando morte e desespero.
Parecia mesmo que a epidemia sofrera uma nova animação de sua forças, como se a tenacidade e a fertilidade de seus bacilos se tivessem dobrado. (MANN, p. 160)
As manifestações da doenças nas pessoas e os sepultamentos diários das vítimas obrigaram que muitos moradores se mudassem, ainda que provisoriamente, para Salvador e outras cidades vizinhas. Os mais ricos refugiavam-se nas fazendas, a exemplo do conhecido negociante José Marques de Oliveira Lima, fundador do Arraial das Almas - nome da propriedade. Feira de Santana transformava-se, enfim, numa "cidade fantasma".
Em fins de 1855, o Cólera fez um número tão expressivo de enfermos e vítimas fatais que se tornou inadiável a construção de um hospital e, notadamente, um cemitério. Não era aconselhável, sobretudo do ponto de vista higiênico-sanitário, continuar sepultando no adro da Matriz de Santana, mesmo que os cadáveres fossem de vítimas ricas e socialmente prestigiadas.
Até então, alguns mortos insígnes eram sepultados debaixo das lajes das igrejas, na vizinhança esquiva dos arcebispos e dignatários, e os menos ricos eram enterrados nos pátios dos conventos. Os pobres iam para o cemitério colonial, numa colina separada da cidade por um canal de águas áridas. (GARCIA MARQUEZ, p. 140)
Geralmente, os mais pobres e os menos reconhecidos eram sepultados em covas rasas num terrenos atrás da Matriz. Como as escavações necessárias à implantação da ferrovia eram feitas nesse local, corpos inteiros, membros, etc, em franco estado de decomposição, eram entregues à ação de animais.
O pânico geral era alimentado pela repetição do seguinte acontecimento: muitos coléricos repentinamente desmaiavam (às vezes em plena rua) e como continuavam a não apresentar sinais de vida, eram dados como mortos e conduzidos ao sepultamento. Inesperadamente, recuperavam os sentidos, provocando amedrontada correria. Um caso antológico: no período mais agudo da epidemia, conduziram ao adro da Matriz uma mulher de nome Maria, tida como morta. A fila de sepultamento estava, como sempre, comprida e o "cadáver" de Maria teve que esperar até a noite para ser enterrado. À noite, Maria despertou, abriu a tampa do caixão e dirigiu-se ao centro da cidade, ficando conhecida como "Maria Epidemia".
Feliz daquela cuja erupção se dava em forma de profundo desmaio, como às vezes acontecia, depois de um leve mal-estar, do qual não acordava mais ou quase não acordava. (MANN, p.160)
O ano de 1856 chegou sem muitas promessas de solução contra a epidemia. Os casos aumentavam e os profissionais e voluntários de saúde não conseguiam proporcionar atendimento satisfatório, principalmente aos pacientes pobres (grande maioria dos coléricos). Em fins de janeiro de 1856, o governo da província da Bahia enviou um novo médico a Feira de Santana na tentativa de equacionar a crise adicional gerada pelo falecimento do cirurgião José Caetano Alvim em novembro de 1855. Meses depois, a epidemia passou a dar sinais de recuo, tranquilizando a população feirense.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA FILHO, Naomar de - Epidemiologia sem números. Rio de Janeiro, Campus, 1989, 108p
GARCIA MARQUEZ, Gabriel - O amor no Tempo do Cólera. Tradução por Antônio Callado. Rio de Janeiro, Record, 1985, 429p
MANN, Thomas - Morte em Veneza. São Paulo, Abril, 1971, p 89-172 (Os imortais da literatura universal, fascículo 17)
POPPINO, Rollie E.- Feira de Santana, Salvador, Itapuã, 1968, 328p
SNOW, John - Sobre a Maneira de Transmissão do Cólera. 2ª ed. rev. por John Churchill. Rio de Janeiro, USAID, 1967, 188p
REFERÊNCIA HEMEROGRÁFICA
JORNAL FOLHA DO NORTE. Feira de Santana, Bahia, Edições de 1923 a 1952.
O cólera se encarniçou muito mais contra a população negra por ser a mais numerosa, mas na realidade não teve contemplação com cores nem linhagens. (GARCIA MARQUEZ, p. 141)
Na primeira semana de dezembro de 1855, a epidemia apresentava sinais de declínio, ao menos na sede de Feira de Santana,
Parou de chofre como havia começado, e nunca se soube o número de suas vítimas, não porque não fosse possível estabeleçê-lo, e sim porque uma de nossas virtudes corriqueiras era o pudor das desgraças. (GARCIA MARQUEZ, p. 141)
Na segunda quinzena, porém, o Cólera reapareceu com violência principalmente em Limoeiro e Bonfim, causando morte e desespero.
Parecia mesmo que a epidemia sofrera uma nova animação de sua forças, como se a tenacidade e a fertilidade de seus bacilos se tivessem dobrado. (MANN, p. 160)
As manifestações da doenças nas pessoas e os sepultamentos diários das vítimas obrigaram que muitos moradores se mudassem, ainda que provisoriamente, para Salvador e outras cidades vizinhas. Os mais ricos refugiavam-se nas fazendas, a exemplo do conhecido negociante José Marques de Oliveira Lima, fundador do Arraial das Almas - nome da propriedade. Feira de Santana transformava-se, enfim, numa "cidade fantasma".
Em fins de 1855, o Cólera fez um número tão expressivo de enfermos e vítimas fatais que se tornou inadiável a construção de um hospital e, notadamente, um cemitério. Não era aconselhável, sobretudo do ponto de vista higiênico-sanitário, continuar sepultando no adro da Matriz de Santana, mesmo que os cadáveres fossem de vítimas ricas e socialmente prestigiadas.
Até então, alguns mortos insígnes eram sepultados debaixo das lajes das igrejas, na vizinhança esquiva dos arcebispos e dignatários, e os menos ricos eram enterrados nos pátios dos conventos. Os pobres iam para o cemitério colonial, numa colina separada da cidade por um canal de águas áridas. (GARCIA MARQUEZ, p. 140)
Geralmente, os mais pobres e os menos reconhecidos eram sepultados em covas rasas num terrenos atrás da Matriz. Como as escavações necessárias à implantação da ferrovia eram feitas nesse local, corpos inteiros, membros, etc, em franco estado de decomposição, eram entregues à ação de animais.
O pânico geral era alimentado pela repetição do seguinte acontecimento: muitos coléricos repentinamente desmaiavam (às vezes em plena rua) e como continuavam a não apresentar sinais de vida, eram dados como mortos e conduzidos ao sepultamento. Inesperadamente, recuperavam os sentidos, provocando amedrontada correria. Um caso antológico: no período mais agudo da epidemia, conduziram ao adro da Matriz uma mulher de nome Maria, tida como morta. A fila de sepultamento estava, como sempre, comprida e o "cadáver" de Maria teve que esperar até a noite para ser enterrado. À noite, Maria despertou, abriu a tampa do caixão e dirigiu-se ao centro da cidade, ficando conhecida como "Maria Epidemia".
Feliz daquela cuja erupção se dava em forma de profundo desmaio, como às vezes acontecia, depois de um leve mal-estar, do qual não acordava mais ou quase não acordava. (MANN, p.160)
O ano de 1856 chegou sem muitas promessas de solução contra a epidemia. Os casos aumentavam e os profissionais e voluntários de saúde não conseguiam proporcionar atendimento satisfatório, principalmente aos pacientes pobres (grande maioria dos coléricos). Em fins de janeiro de 1856, o governo da província da Bahia enviou um novo médico a Feira de Santana na tentativa de equacionar a crise adicional gerada pelo falecimento do cirurgião José Caetano Alvim em novembro de 1855. Meses depois, a epidemia passou a dar sinais de recuo, tranquilizando a população feirense.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ALMEIDA FILHO, Naomar de - Epidemiologia sem números. Rio de Janeiro, Campus, 1989, 108p
GARCIA MARQUEZ, Gabriel - O amor no Tempo do Cólera. Tradução por Antônio Callado. Rio de Janeiro, Record, 1985, 429p
MANN, Thomas - Morte em Veneza. São Paulo, Abril, 1971, p 89-172 (Os imortais da literatura universal, fascículo 17)
POPPINO, Rollie E.- Feira de Santana, Salvador, Itapuã, 1968, 328p
SNOW, John - Sobre a Maneira de Transmissão do Cólera. 2ª ed. rev. por John Churchill. Rio de Janeiro, USAID, 1967, 188p
REFERÊNCIA HEMEROGRÁFICA
JORNAL FOLHA DO NORTE. Feira de Santana, Bahia, Edições de 1923 a 1952.
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