Número 327 - Ano 13 |
São Paulo, quarta-feira, 4 de março de 2015
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«Amor é compromisso /
com algo mais terrível do que amor?»
(Carlos Drummond de Andrade) *
Sônia Barros
Vermeer, Moça com Jarro d'Água (1662-1663)
CONSTATAÇÃO
Descobriu sem tristeza e, apesar de ter sentido uma espécie de frio, tampouco houve surpresa no momento da descoberta:
não é a morte o pior verdugo, com seus fios verde-musgo, garras sob pele tenra, hera primeva a esconder no ventre o muro do fim;
carrasco a cavar na alma maior ruína é a sina de ser só — sol latente no coração da sombra — que em nada se aproxima do estado desejado de não ser.
Vermeer, Mulher com Criada Segurando Uma Carta (1673-1675)
FIO A FIO
Para o Bruno
Ranger de rodas no asfalto mastigando águas, língua do vento a roçar o vidro de tímpanos insones, dança desencontrada de pálpebras, portas e janelas, passos no andar de cima inter(calados) com os pingos no telhado da sacada.
No quarto ao lado, a respiração-presença do menino mistura-se à carícia do cheiro da chuva, sobrepõe-se aos sons da escuridão e faz nascer no peito súbita alvorada.
Vermeer, Mulher de Azul Lendo uma Carta (1662-1663)
FUTURO
No esgoto, catando restolhos, a menina procura cerzir o vinco do estômago.
No alto, o futuro a espia com garras e agulhas sem linha.
Vermeer, Moça com Brinco de Pérola (1665-1666)
MOÇA COM BRINCO DE PÉROLA
Além da pérola na orelha da moça de Vermeer,
o indevassável desejo nos olhos: sonho a arder.
Sônia Barros
Amigas e amigos,
A escritora paulista Sônia Barros
(Monte Mor, 1968) é mais conhecida
do público infantojuvenil, para quem
já publicou quase duas dezenas de
títulos, entre histórias de ficção e poesia.
Nessa seara, Sônia Barros apareceu
aqui no boletim n. 267. Mas ela também
escreve versos para adultos. Sua estreia
nessa área deu-se com o livro Mezzo
Voo (2007), que serviu de base para
o boletim n. 207.
Em Mezzo Voo, a poeta apresenta
um lirismo delicado, mas inquieto,
pronto para questionar, como escrevi
oito anos atrás, “as minguadas ofertas
do mundo”.
A autora retorna agora, trazida por
sua segunda coletânea de poemas para adultos, Fios (2014). Publicado pela
Biblioteca Pública do Paraná, esse
volume foi o vencedor do Prêmio
Paraná de Literatura 2014,
categoria poesia.
•o•
De Fios selecionei seis poemas
para a pequena antologia ao lado.
O primeiro, “Fim da Linha”, descreve
um episódio ferroviário certamente
associado à memória do narrador:
“O trem desapareceu, / nunca mais
foi visto”, mas retorna do esquecimento
para impressionar os sentidos de quem
“carrega uma estação / de trem por dentro”.
É curioso como, de todos os meios de
transporte, o trem ocupa o mais amplo
espaço no imaginário das pessoas.
Pena que no Brasil a experiência
ferroviária tenha sido sustada pela
escolha do automóvel como meio de
transporte fundamental.
Em “Vertente”, a autora se volta
para o fenômeno da criação poética.
Fala das “vozes que vêm para o poema
/ mas não foram convidadas”.
Essas palavras ou opiniões intrusas
são comparadas ao zurrar do sofrido
asno-título do filme Balthazar (no Brasil,
A Grande Testemunha, 1966), dirigido
pelo francês Robert Bresson (1901-1999).
Bresson, para quem não lembra, é mais
conhecido pelo filme Pickpocket -
O Batedor de Carteiras (1959). E atenção:
"Há verbos
que invadem, perfuram o osso / do poema
e do poeta". Do lado de cá, pedimos licença
] à poeta e acrescentamos: e também dos
leitores.
No poema “Constatação”, Sônia Barros
penetra fundo no poço dos sentimentos
para trazer de lá uma ideia inusitada:
“não é a morte o pior verdugo”. O que
maltrata, mesmo, o que cava “na alma /
maior ruína é a sina de ser só”. Ou seja,
a solidão dilacera mais que a morte.
Do ponto de vista dos seres humanos,
bichos gregários e dependentes de apoio
e afeto, aí está uma constatação
verdadeira e forte.
“Fio a Fio” é um exemplo de poema que
parece construído a partir de um momento
íntimo, um quase-nada, uma pequena emoção
familiar. Aparentemente, sons externos
(“ruído de rodas no asfalto”, “vento”,
“passos no andar de cima”, chuva no
telhado) criam dentro da noite um instante
de apreensão, quase medo. Mas a respiração
da criança “no quarto ao lado” transforma
todas as preocupações na certeza de uma
“súbita alvorada”. Sensível e refinado.
Em “Futuro”, o ponto de partida é uma
cena que há muito (no mundo inteiro)
gostaríamos de que fosse algo do passado.
Infelizmente, ainda não é: a menina
catando restos no lixo. E o futuro a espera,
“com garras / e agulhas / sem linha”.
Ou seja: sem fios para que se possa criar
um enredo. Sinistramente, é como se o rumo
dessa pequena vida já estivesse (irremediavelmente) traçado.
Um dos aspectos que se destacam
no livro Fios é o diálogo com outras artes.
Em “Vertente”, mais acima, vimos a
referência a um personagem de cinema.
Em “Moça com Brinco de Pérola”, o ponto
de partida é o famoso quadro do holandês
de Johannes Vermeer (1632-1675), que já
rendeu romance e filme homônimos. Em
seu brevíssimo poema, Sônia Barros destaca
um “indevassável desejo” nos olhos da
moça retratada pelo mestre neerlandês.
E viva a grande arte. É sempre um
prazer (e um mistério) ver que um
quadro seiscentista ainda desperta a
veia criativa de poetas do século XXI.
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poesia.netwww.algumapoesia.com.br Carlos Machado, 2015 |
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Sônia Barros In Fios Biblioteca Pública do Paraná, Curitiba, 2014
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Abraço, e até a próxima.
Carlos Machado
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Johannes Vermeer (1632-1675), holandês, A Leiteira (1665)
FIM DA LINHA
O trem desapareceu, nunca mais foi visto, só o apito percorre o trilho do ouvido, vai e vem intermitente, agulha a cerzir espaços, esgarçados lodaçais do esquecimento: o ontem ressurgindo no ritmo de espasmos, luz cortando sombras no túnel do pensamento, ouvido inconsciente de quem até hoje sente e carrega uma estação de trem por dentro.
Vermeer, Moça Tocando Guitarra (1669-1672)
VERTENTE
Há vozes que vêm para o poema mas não foram convidadas, surgem como luz soprada por lábios de um sol improvável, música inusitada a nascer num jorro que rasga e fecunda o solo solitário das palavras. Há verbos que invadem, perfuram o osso do poema e do poeta — feito o zurrar de um asno, como em Balthazar, de Bresson — e permanecem tamanha a correnteza de seu gozo.
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______________ * Carlos Drummond de Andrade, "Mineração do Outro", in Lição de Coisas (1964) ______________ - Todas as imagens: pinturas do holandês Johannes Vermeer (1632-1675)
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