Na gaiola da solidão
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Ronaldo Costa Fernandes
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Beatriz Milhazes, brasileira, Pierrot e Colombina
ESPIRAL DOS CAMINHOS
Haveria um santo dos caminhos que fizesse reto o que Deus gosta de entortar. Deus deveria ter um caderno de caligrafia para melhorar a letra. Os caminhos que são linhas tortas corrompem a emoção. O peso dos outros é sempre desigual, inumano e cheira a culpa. Os caminhos emanam cheiro de futuro. O ódio, o amor, o riso. Tudo tem seu cheiro e sua medida. Um metro de ódio, uma dose de amor, uma talagada de riso. Aqui estão os caminhos espiralados, os caminhos sem chão, as retas que não levam à lucidez.
O TEMPO NA LAPELA
Certa vez um pedaço de tempo feito floco de neve — fiapo de algodão doce que se desfaz à lambida do toque — caiu no meu casaco e não se dissolveu. Permaneci com o tempo na lapela. Me dei conta de que o pedaço de tempo — corrosivo e nada friável — que carregava na lapela em vez de desaparecer insistia em crescer até me tomar o corpo todo como o reconhecimento do erro que é uma febre que não cede ou a lembrança incômoda, cão que nos segue e ameaça nos morder a memória.
Beatriz Milhazes, Obra Grande
CERA DA MANHÃ
Eis que a mãe surge pela manhã. Traz o tempo nas veias. Sentada e imóvel, ela é a melhor fotografia tridimensional de si própria. Tem medo de que quem esteja ali sentada seja inflamável por ser uma cópia de cera.
A mãe o chama e se incandesce. É conversa que se consome e bruxuleia, ora pavio lúcido, ora a cera do esquecimento. Tem medo de que ela se esqueça dele e, assim, ceráceo e ardente, enrijecerá a infância, serão últimos os primeiros passos e morrerá vivo na memória da mãe que o perdeu dentro de seu labirinto feito de museu e cera.
ESPELHO APÓS A MORTE
Quando morrer, não verei mais o vaso de louça andaluz da varanda, mas ele continuará lá.
Quando morrer, não mais ouvirei o canto verde dos periquitos mas eles continuarão a voar e amanhecer a manhã verde.
Quando morrer, não mais me verei ao espelho, mas ele continuará lá porque haverá outros rostos para terem a ilusão de que vivem.
Beatriz Milhazes, Obra
O HOMEM OLHA O MONDEGO
Alguns rios me banham: Bacanga e Anil. Meu corpo está cheio de rios: minhas veias são rios vermelhos que desembocam no mar do meu coração. Os rios se instalam em mim em mim me danam, lanhando por dentro meu corpo, linfáticos e leheio de incertezas, onde habitam passado e história, dor e escuridão. Há rios em mim que desconheço sua foz, sua embocadura, de onde nascem, para onde vão. O pior rio é o da mente que flui sem margens, desordenado e com várias águas, águas desiguais e turvas. Há rios em mim que nunca supus ter. Meu pensamento é um rio seco mas pleno de correnteza e afogamento.
Coimbra, 18.10.2009
ESCONDERIJO
Esconde bem tuas lágrimas. Os homens desprezam os fracos. Esconde bem tua emoção. Os homens respeitam os fortes. Esconde bem tua tristeza. O mundo evita os melancólicos. Esconde bem a ti mesmo. Os homens não gostam de se ver.
Beatriz Milhazes, Ova
CRIMINALIDADE
Sei que me roubo. Sei que me furto. Sei também quando me rendo. Todo dia me assalto à luz do dia e da vida. Roubo vários sentimentos mas o assalto que ofereço à mão armada nenhum ladrão de mim me leva: o passado que pesa como carteira cheia. Rufla em mim o tambor com seis balas. No horizonte, cavalos sem olhos habitam as cocheiras do tempo. Vítima de mim mesmo não quero comiseração, cada dia sou menos, não há cofre, nem chave, estou à mercê do gatilho que disparo ao acordar: o sumiço do sonho.
O ÚLTIMO PIO
Um dia meu tio inventou de morar no sótão do pensamento lá dele. E se refugiou menino na memória cheia de pios em que vivia na gaiola da infância. Desce daí da memória, a gente pedia e meu tio insistia em cantar sabiá entre as grades finas da tristeza. Até que voou para onde não há canto ou asa e tudo é gaiola vazia. Quando ando triste subo ao galho mais alto da insensatez e tento cantar em linguagem de pássaro. Rejeito o alpiste da razão — miúdo e aglomerado — este que se dá aos melancólicos engaiolados pela solidão.
Ronaldo Costa Fernandes
Caros,
O poeta maranhense Ronaldo Costa
Fernandes é um nome que já tem história
no poesia.net. Se vocês visitarem o índice
do boletim, vão encontrá-lo na edição n. 126,
de 2005, e também na edição 263, de 2009.
Esta é, portanto, a terceira vez que esse autor
— também romancista, contista e ensaísta —
nos concede o privilégio de desfrutar um pouco
de sua poesia.
Ronaldo Costa Fernandes é maranhense criado
no Rio de Janeiro e radicado em Brasília.
Doutor em literatura pela UnB, escreveu em
prosa os romances O Viúvo (2005) e Um
Homem é Muito Pouco (2010), a coleção de
contos Manual de Tortura (2007) e o ensaio
A Ideologia do Personagem Brasileiro (2007).
Como poeta, Costa Fernandes estreou com
o volume Urbe, de 1975, hoje renegado.
Desse modo, sua estreia efetiva ficou
para o livro Estrangeiro, publicado em 1997.
Vieram
em seguida Terratreme (1998), Andarilho (2000),
Eterno Passageiro (2004), A Máquina das
Mãos (2009) e Memória dos Porcos (2012).
Este último livro é o centro das atenções
neste boletim.
Ao tratar da coletânea que o poeta lançou
em 2009, destaquei que sua criação lírica
sempre observa pessoas e coisas e perquire
sobre aspectos menos iluminados do cotidiano.
São indagações que que não têm medo de
cutucar o mal-estar, como tende a fazer toda
grande poesia. Essa linha geral persiste em
Memória dos Porcos.
O poema “Espiral dos Caminhos” propõe
que “Deus deveria ter um caderno / de
caligrafia para melhorar a letra”. É justo:
afinal, os incompreensíveis manuscritos do
Criador definem “caminhos espiralados” e
“retas que não levam à lucidez”. Quem não
gostaria de ter pela frente apenas trajetórias
retas, previsíveis e seguras?
Em “O Tempo na Lapela” opera-se uma
prodigiosa transformação: “um pedaço
de tempo / feito floco de neve” cai na lapela
do narrador. Preocupado, ele vê o floco
agigantar-se até tomar-lhe o corpo inteiro
e ameaçar os guardados da memória.
A fábula mostra o quanto somos criaturas
submetidas à noção de tempo.
Em “Esconderijo” o poeta brinca de esconde
-esconde com certas imperfeições humanas.
As pessoas ocultam a tristeza, as lágrimas, as
emoções. Na verdade, escondem-se
de si mesmas, recusando-se a encarar
as verdades reveladas pelo espelho.
No texto “O Homem Olha o Mondego”,
escrito em Coimbra, o poeta percebe:
“Meu corpo está cheio de rios”, a começar
pelos que são mais antigos para ele, Bacanga
e Anil, que banham São Luís do Maranhão. Rios
de água, que correm no chão; rios linfáticos
caminhando por dentro do corpo. “O pior rio
é o da mente / que flui sem margens”, decide
o poeta.
Dedico um olhar especial aos poemas
“Criminalidade” e “O último pio”. No primeiro,
o poeta reflete sobre como, a cada dia, vamos
cometendo assaltos à mão armada contra nós
mesmos, e surripiando nossa velha carteira
recheada de sonhos. “Cada dia sou menos”,
declara o criminoso — que não é outro senão
cada um de nós.
Vem, por fim, o poema “O Último Pio”.
Aqui, no ambiente doméstico, encontra-se
um tio que se refugiou “na gaiola da infância”.
Observem os versos: “Desce daí da memória,
/ a gente pedia / e meu tio insistia / em cantar
sabiá / entre as grades finas da tristeza”.
Ao contrário de
lamentar o destino do tio que falava a língua
dos pássaros, o sobrinho, que é o dono
da voz no texto, encontra nele uma
inspiração para os dias de tristeza.
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
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