Em Quarta-feira, 5 de Março de 2014 20:03, Carlos Machado escreveu:
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Nydia Bonetti
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OS PÁSSAROS DO SILÊNCIO
Vou construir um ninho dentro do meu quarto.
Quando vierem os pássaros do silêncio
pedirei que cantem e que se alojem
entre os gravetos.
Somos frutos da mesma dor.
Tememos o esquecimento. Na minha blusa falta
um botão. Tecida em que tear a trama que nos
faz sangrar? Sobre a cadeira jazem feridas
cordas de um violino.
Tripas.
Convulsas entranhas. Vou abrir as janelas.
Por quê? Não ouço mais os pássaros do silêncio
asas de cambraia. Feito as cortinas.
As paredes estão mortas.
Caiadas.
Um Paganini solitário descansa, distante
pendurado num prego enferrujado. Alto relevo.
Há uma conspiração lá fora. Fecho as janelas
e ouço. O piar de corujas.
Claudio Tozzi, Paisagem (1980)
SOLARES
outra vez
me ronda a poesia
agora é assim
quase uma sombra
colada em mim
não
ela é o sol
eu,
a sombra
PATÉTICO (HUMANO)
tenho pena do goleiro
patética figura (tão humana)
sempre à espera
do que não pode ser
eternamente
contido
O TEMPO INSISTE
o tempo insiste
em arrastar móveis pesados
há sempre um piano
que não passa na porta
notas suspensas
cordas frágeis
que sempre ruem
antes que o piano toque a rua
em áspero ruído
Claudio Tozzi, Dança (2000)[OUÇAM ECOS — INVARIAVELMENTE — CHEGAM]
ouçam os ecos — invariavelmente — chegam
temível / exército / de bárbaros
atravessam fronteiras
rasgam o peito e atingem
o alvo / concêntrico
que dizem? indecifráveis vozes / sons de machados
rodas d’água / serras — um certo (en)canto
que sempre longe haverá
pássaro
galopam / cavalos / nas pedras / ouçam
cavaleiros empunham bandeiras — estranhamente
brancas / rasgadas — onde se lê:
palavras
flores se curvam / lagartos se esquivam — chegada
a hora não marcada — o tempo
que percussivo ecoa
no verso vento
ouçam
Claudio Tozzi, Trama Urbana (2000)
[O NOME... JÁ NÃO ME LEMBRO DO NOME]
o nome... já não me lembro do nome
da memória
os olhos
de que cor eram mesmo
os olhos
da memória?
tinha boca vermelha e cantava
não ouço mais a canção da memória
eram fortes e ternas
as mãos imensas da memória
me lembro agora — vagamente
tinha um corpo a memória
um rosto
tinha alma
restam os ossos / então / guardados
numa caixa de vidro
pequena
nas noites quentes
estalam
um dia / tudo / será / pó
e serei eu a soprar / pois não há vento
na casa da memória[CHEGUEI HÁ POUCO DO FUNDO DO RIO]
Cheguei há pouco do fundo do rio.
Andei em busca
do que. Em terra não
encontro.
Tenho agora
a pele coberta de escamas
e lodo
e os olhos verdes
do limo / dos olhos / dos peixes.
Vieram pássaros / tentaram
me levar.
A imagem da superfície
era. Apenas reflexo.
Silencioso e calmo / o rio.
No fundo
todas as pedras são. Roladas
e os olhos dos peixes
refletem
as pedras e as sombras
das árvores que não
toquei.
O vento
A folha
O vento
E a garça / finalmente mergulha
e me resgata.
Claudio Tozzi, Parafusos 30-86 (1970)
[VOCÊ ME TIRARARIA PRA DANÇAR]
você me tiraria pra dançar
pergunto
mas não há música
você diria
nenhuma voz
na memória dos pés
uma canção
antiga
na memória dos sentidos
nós
[COMO SE O TEMPO FOSSE UM BICHO]
como se o tempo fosse um bicho
uma fera do pântano
agarro-o pelas crinas
ele se vira e me olha
com seus olhos de lava e cinzas
dragão
ressurgido dos escombros
(ancestral
das aves que renascem
para morrer todos os dias
ao pôr do sol)
autofágica criatura
ruminante de asas
tritura gente e flor e pedra e bicho
que encontra no caminho
bulímico — regurgita pedaços
acende a pira
onde tudo arde e finalmente
num gran finale trágico
previsível e recorrente — se atira
e então — tudo é noite
Claudio Tozzi, Escada
[AO DEIXAR SUA TERRA SABIA]
ao deixar sua terra sabia
que era pra não voltar
todo exílio é afronta
e corte
que jamais cicatriza
pele que sangra herança
que trago nos olhos
ele voltou
quis morrer sozinho
numa terra
que já não era sua
(já não tinha mais terra)
e ficou por lá
virou pó sob pedra
a mesma
que o manteve e o matou:— flor
nenhuma
alguma prece
[UMA LASCA DE MADEIRA]
uma lasca de madeira sob as unhas
eis a dor
do poema que não se liberta
alienígenaestranhapalavra-espinho
entre carne e pele
que faz doer a alma
e sangra
Nydia Bonetti
Caros,
Já faz algum tempo que acompanho o trabalho de Nydia Bonetti. Trata-se de uma poeta que se deu a conhecer, discretamente, num blog. Depois, pouco a pouco, foi espalhando seus escritos em páginas da internet até chegar às antologias em livros e revistas e às coletâneas individuais de poesia. Sua presença na internet é impressionantemente forte: uma busca no Google pelo nome da poeta, neste início de março/2014, traz como resposta quase 52 mil resultados. Em papel-solo, Nydia até agora publicou os livros Instante Estante (Castelinho Edições, Porto Alegre, 2012) e Sumi-ê (Editora Patuá, São Paulo, 2013). •o• Nascida em 1958 na cidade paulista de Piracaia, onde vive, Nydia Bonetti é engenheira civil de formação. A autora mantém o blog Longitudes e também colabora com assiduidade na revista online Mallarmagens. Publica ainda o blog Minimus Cantus, onde publica somente poemas brevíssimos em estilo de haikai. A poeta conta que produz poesia desde os 13 anos. “Escrevo para exorcizar meus bichos”, diz ela numa entrevista. Revela também que, embora engenheira, trabalhou muitos anos como bancária e também teve uma loja de produtos naturais. Só depois foi trabalhar mais próxima da engenharia, com uma irmã que é arquiteta. “Mas faço mais um trabalho burocrático”, informa.
•o•
Os poemas da miniantologia ao lado foram extraídos do blog Longitudes. Um detalhe: para facilitar a referência, os textos não titulados pela autora receberam como título o primeiro verso entre colchetes. •o• No trabalho poético de Nydia Bonetti, essencialmente lírico, é possível identificar uma forte vertente, voltada para as indagações dos estados da alma e as inquietudes do ser – inquietudes e indagações que quase sempre se apresentam por meio de elementos naturais. Assim, águas, rios, animais e árvores têm presença muito viva na poesia de Nydia. Isso é o que se pode constatar lendo poemas como “Os Pássaros do Silêncio”, “[Como se o Tempo Fosse um Bicho]” e “[Cheguei Há Pouco do Fundo do Rio]”, transcritos ao lado. Outra característica da poesia de Nydia Bonetti é a reflexão. Poemas curtos como “Patético (Humano)” e “O Tempo Insiste” são pílulas de pensamento sobre fatos ou situações do cotidiano. O primeiro reflete sobre a intrépida tarefa do goleiro, que tenta a todo custo evitar o gol, sabendo que vez por outra não conseguirá manter esse objetivo. No outro poema, a metáfora do tempo arrastando “móveis pesados” representa as dificuldades naturais que surgem pela vida, assim como o piano que, por exemplo, deve ser levado para um ponto mais alto e acaba tombado na rua. A tonalidade lírica está quase sempre marcada por algo inalcançável ou desconcertante. É o que se nota nos versos: "Você me tiraria pra dançar / pergunto / mas não há música". Ou então: "de que cor eram mesmo / os olhos / da memória?" Mais impressionante ainda é o poema "[Cheguei Há Pouco do Fundo do Rio]". Há nele um clima onírico, certa sensação de afogamento ("Tenho agora / a pele coberta de escamas / e lodo") e, por fim, o pesadelo subaquático é sustado pela intervenção de uma ave salvadora. Um abraço, e até mais ler, Carlos Machado •o•
SARAU
Poeta inacabado
• Homenagem a Donizete Galvão Escritores de vários gêneros e gerações se juntam em São Paulo numa homenagem que mostrará momentos essenciais da poesia de Donizete Galvão (1955-2014), desaparecido há cerca de um mês. Data: 11/03, terça-feira Hora: 19h30 Local: Casa das Rosas Espaço Haroldo de Campos de Poesia Av. Paulista, 37 - Bela Vista São Paulo - SP |
poesia.netwww.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2014
Foto de Donizete Galvão:
Anna Lívia Marques
Nydia Bonetti
• Poemas transcritos do blog da autora: Longitudes
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* Affonso Manta, "O Cavalheiro sem Anéis", in Antologia Poética (2013)
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- Todas as imagens: trabalhos de Claudio Tozzi (1944-), pintor e desenhista paulistano.
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