REFLEXÃO SOBRE O FILME "TRANSPOTTING"
E A PATOLOGIZAÇÃO DA ANGÚSTIA
NO MUNDO CONTEMPORÃNEO
Marcelo
Vinicius Miranda Barros
Estudante de Psicologia da Universidade
Estadual de Feira de Santana (UEFS)
Feira de Santana – Bahia - Brasil
"Trainspotting
- Sem Limites" é um filme britânico de 1996, do gênero drama, dirigido por
Danny Boyle e com roteiro baseado em livro homônimo do escritor Irvine Welsh. O
filme conta a vida de um grupo de jovens viciados em heroína em Edimburgo, na
Escócia. Num subúrbio de Edimburgo, quatro jovens sem perspectivas mergulham no
submundo para manter seu vício pela heroína. "Amigos", que são
ladrões e viciados, caminham inexoravelmente para o fim desta amizade e,
simultaneamente (com exceção de um do bando), marcham para a auto-destruição.
Logo no início
do filme “Trainspotting”, apresenta-se a fala de um personagem que diz:
"escolha viver. Escolha um emprego. Escolha uma carreira, uma família.
Escolha uma televisão enorme. Escolha lavadora, carro, CD Player e abridor de
latas elétrico. Escolha saúde, colesterol baixo e plano dentário. Escolha
viver. Mas por que eu iria querer isso? Escolhi não viver. Escolhi outra coisa.
Os motivos? Não há motivos. Quem precisa de motivos quando tem heroína?”.
É com esse
discurso inicial no filme que podemos perceber, também, a ideia da procura de
controle e de algo padronizado sobre a vida. O costume de escolher carreira,
família, carro etc., no discurso desse personagem, nos remete ao conceito de
uma vida segura, estabilizada e previsível, onde tudo está no seu lugar. Fugir
deste controle é entrar na angústia. Então, se faz necessário criar um sentido
para a nossa existência para se combater o sem-sentido que gera a angústia. Nem
que este sentido seja escolher um carro ou se tornar um consumidor alienado
(DANTAS; SÁ; CARRETEIRO, 2009).
Através da
ciência, no mundo contemporâneo, o homem procura dominar as circunstâncias da
vida. Mas há um preço a se pagar por essas ilusões de controle e previsão, que
é administrar a angústia no seu modo patológico de expressão, como as fobias,
compulsões, estados de pânico e depressão. Então, o ser humano, na sua ilusão
de controle sobre o devir, não aceita a angústia como sinalizadora da limitação
da ciência e dos padrões sociais de uma vida, que tenta explicar os fenômenos
da vida perdendo a angústia como espaço de reflexão privilegiado sobre a
existência (DANTAS; SÁ; CARRETEIRO, 2009).
Assim, “em
nosso contexto histórico, a angústia é, em geral, considerada uma condição
patológica que deve ser ‘aliviada’ por terapias ou medicamentos. O bem-estar
humano encontra-se, cada vez mais, dependente de saberes técnicos
especializados” (DANTAS; SÁ; CARRETEIRO, pag. 7, 2009).
Mas o
personagem do filme evidencia, desde o início, essa não-necessidade de viver
uma vida padrão que tenta ter o controle sobre o devir, no entanto, para
compensar a sua angústia de um mundo fora do modelo padrão, ele se envolve com
as drogas, quando o mesmo diz: “[...] não há motivos. Quem precisa de motivos
quando tem heroína?”. A heroína se torna em uma fuga. O que reafirma também a
angústia como algo patológico. Assim, se a vida do ser humano perde o sentido,
e a segurança sobre o devir se desfaz, ou seja, não há ninguém que lhe diga
sobre o que seria a referência para viver, se tem então a necessidade de curar
a angústia através de especialistas, combatê-la pelo envolvimento com as ocupações
úteis ou se entregar as drogas. A angústia aponta para a dimensão trágica da
existência, a fragilidade, vulnerabilidade e a finitude perante a vida, e isso
as pessoas tendem em não reconhecer (DANTAS; SÁ; CARRETEIRO, 2009).
O sujeito que
rompe com as familiaridades cotidianas, com os padrões, com as respostas
científicas que passam segurança sobre o devir, mostra que o território da
angústia é exatamente esta insuficiência de qualquer território antecipadamente
formado ou explicado (DANTAS; SÁ; CARRETEIRO, 2009).
Se a
proliferação de respostas científicas, religiosas, moralizantes e a
padronização de uma vida segura não podem deter a devastação do mundo enquanto
habitação existencial; se em algum momento o sujeito pode fugir destas
respostas, dando a entender que elas não são o suficiente para suprir a falta
que ele tem, é perceptível que a angústia é algo que nos é essencial e, sendo
assim, assumirmos nossa singularidade é fundamental para que existam outros
modos de experiência da angústia, outras formas de desvelamento do real
(DANTAS; SÁ; CARRETEIRO, 2009).
Desse modo, o
personagem do filme tenta sair dessa patologização da angústia como marcas
recorrentes dos modos de produção de subjetividade na época contemporânea, mas,
ao invés de saber lidar com a nova demanda, que é conseqüência de uma vida sem
sentido por não ter mais aquela sociedade atual que lhe fornecia este sentido,
o personagem se envolve com as drogas para suprir o seu sem-sentido da vida.
Isso mostra o quanto a sociedade do consumo, da ciência e da moral, padronizou
a subjetividade humana, lhe ensinando como ser feliz, ao invés do próprio
sujeito aprender a lidar com a sua singularidade e ser feliz ao seu modo
(DANTAS; SÁ; CARRETEIRO, 2009).
Assim,
percebe-se o papel essencial da angústia na dinâmica da singularização da
existência humana e a importância da ciência apropria-se desta questão não como
uma reforçadora de patologias, mas abrir espaço para os processos de
singularização que a angústia pode propiciar, pois é preciso que se aproprie de
outras possibilidades, para além das dadas pela ideia de patologizar a
angústia. (DANTAS; SÁ; CARRETEIRO, 2009).
A angústia não
pode ser vista como mero transtorno neuroquímico ou subjetivo a ser sanado por
algum tratamento farmacológico ou psicoterápico adequado, mas como um espaço
para uma nova formação do ser, já que a angústia pode ser uma possibilidade de
uma experiência mais própria do existir enquanto ser-no-mundo. Aprender a lidar
com ela é aprender a lidar com nosso existir e com tudo o que, a partir dele,
nos vem ao encontro (DANTAS; SÁ; CARRETEIRO, 2009).
O que pode ser
compreendido nesse contexto é que a vida é insegurança. A cada momento nos
dirigimos para uma insegurança maior. É um apostar. Nunca se sabe o que vai
acontecer. E é belo que nunca se saiba. Se fosse previsível, não valeria a pena
viver a vida. Se tudo fosse como se gostaria que fosse e se tudo fosse uma
certeza, não seriamos ser humano, seriamos uma máquina. Só existem certezas e
seguranças para as máquinas.
Ficha técnica:
Título: Trainspotting - Sem Limites – ano: 1996
Direção: Danny Boyle
Roteiro: Irvine Welsh (romance),
John Hodge (roteiro)
Gênero: Drama
Origem: Reino Unido
Duração: 94 minutos
Tipo: Longa-metragem
Referência:
DANTAS, B. J; SÁ, N. R; CARRETEIRO, C. O. C. T. A
patologização da angústia no mundo contemporâneo. Arquivos
Brasileiros de Psicologia, v. 61, n. 2, 2009.
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