sábado, 26 de março de 2011

CHICO BUARQUE E OS AMORES URBANOS (4)

CHICO BUARQUE E OS AMORES URBANOS (4)

 
"O MEU GURI"/CHICO BUARQUE   FAZ  30 ANOS (1981 - 2011)



O MEU GURI: UM RECORTE SEMIÓTICO DA CANÇÃO (II/II)

MARTINELLI, Delaine Marcia

Professora de Linguagem e Argumentação – Cursos de Administração e Educação Física / UNIGRAN e mestranda do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens da Universidade Federal de Mato Grosso do Sul.


2.2 CONSTRUINDO SENTIDO(S)

A semiótica define objeto como “o que é pensado ou percebido como distinto do ato de pensar (ou de perceber) e do sujeito que o pensa (ou o percebe)” (DICIONÁRIO DE SEMIÓTICA, s/d, p. 312-313), isto é, sujeito e objeto são distintos e é a relação entre eles que permite se perceber tal distinção, o que implica dizer que não há como se determinar previamente o objeto. Logo, um mesmo objeto pode estar investido de valores positivos para um sujeito e de valores negativos para outro. É a relação que determinará os valores do objeto para o sujeito. No âmbito da teoria semiótica greimasiana, o nível narrativo apresenta sempre um sujeito que parte em busca de objetos de
valor; valor este, geralmente, investido ao objeto pelo próprio sujeito que o busca.

No texto pode-se notar que o sujeito (guri) investe determinados valores (riqueza, dignidade, fama) nos objetos: presente, bolsa, corrente de ouro; ou seja, nesses objetos estão embutidos os valores que ele, sujeito, busca: fama, ‘respeito’, ter um nome etc.

O meu guri tem seu percurso narrativo estruturado em programas narrativos centrados no sujeito. O primeiro programa narrativo que destacamos é o de aquisição. O sujeito guri fica conjunto com a vida (Quando, seu moço, nasceu meu rebento / Não era o momento dele rebentar / Já foi nascendo...).

A seguir, temos um percurso narrativo de continuidade em relação ao primeiro: a vida conjunta para o sujeito guri é uma vida de pobreza, de miséria; uma vida desigual. O sujeito mãe não tinha condições de criá-lo, sequer possuía documentos (E eu não tinha nem nome pra lhe dar) para torná-lo um cidadão perante o Estado. O sujeito guri é apenas mais um, dentre uma multidão de brasileiros, sem registro de nascimento, sem nome, como a própria mãe. Esse segundo percurso nos permite levantar a possibilidade de ser o sujeito mãe um sujeito disjunto do amor ao filho, pois a enunciadora, no primeiro verso, diz que sua relação com o guri é marcada pelo distanciamento (Quando, seu moço, nasceu meu rebento / Não era o momento dele rebentar... Como fui levando, não sei lhe explicar); depois, a segunda e terceira estrofes mostram uma aproximação entre os sujeitos: o guri a presenteando; a mãe, rezando. Ambos se consolam mutuamente.

Entretanto, o guri não quer ficar conjunto a essa situação (pobreza) e investe os valores riqueza, fama etc. nos objetos (corrente de ouro, bolsa, documentos), os quais busca desde menino: “E na sua meninice ele um dia me disse que chegava lá”. O sujeito guri quer, deseja os objetos que significam riqueza e para obtê-los vai desencadear um novo percurso narrativo, desta vez de transformação.

O percurso de transformação nos mostra o guri atuando performaticamente na apropriação dos objetos desejados e valorizados como riqueza e tudo o mais que eles representam. Dessa forma o guri assume o fazer – “traz sempre um presente pra me encabular”, “tanta corrente de ouro, seu moço, que haja pescoço pra enfiar / me trouxe uma bolsa já com tudo dentro/chave, caderneta, terço e patuá / um lenço e uma penca de documentos / pra finalmente eu me identificar” – e transforma sua vida e a vida de sua mãe.

Mas, para se fazer  rico, sair da miséria e do anonimato, ou seja, para realizar esse programa de transformação, o sujeito guri realiza um outro programa narrativo e que se encontra implícito no texto da canção: um programa de roubo, de contrabando. Vale ressaltar que essa implicitude fica comprometida pelo uso da palavra ‘carregamento’, a qual possui uma carga semântica que, no jargão policial, significa/identifica o transporte de mercadorias ilegais ou contrabandeadas, ilícitas. Ao final desse percurso ambos os sujeitos estão de posse do objeto-valor almejado: a riqueza.

A enunciadora abre o último percurso narrativo, dizendo que o guri “chega estampado, manchete, retrato / com venda nos olhos, legenda e a  iniciais” e podemos dizer que esse é também um novo percurso de transformação, mas há a possibilidade de ser o percurso de sanção. No primeiro caso o guri sai de seu ‘anonimato’, de ser um ‘sem-registro’, sem dinheiro, para adquirir fama ao sair ‘estampado’, ainda que ‘com venda nos olhos, legenda e iniciais’. O sujeito guri deixa, enfim, de ser um desconhecido para se tornar conhecido (chega estampado, manchete, retrato), afinal desde o início a enunciadora avisa: “Ele disse que chegava lá”. ), No segundo caso tem-se a morte do guri.

O enunciatário tem, então, nesse último programa narrativo, duas possibilidades de interpretação: pode crer ter o sujeito guri conquistado a riqueza e a fama e, ao final, ter sido detido, pois é menor (“Chega estampado, manchete, retrato / Com venda nos olhos, legenda e as iniciais”); ou, pode crer estar o sujeito guri morto, pois a imagem proposta (“Chega estampado, manchete, retrato / Com venda nos olhos, legenda e as iniciais” [...] / O guri no mato, acho que tá rindo / Acho que tá lindo de papo pro ar”), permite tal ‘leitura’.

2.3 A MARCA DO DISCURSO: TEMAS E FIGURAS

É importante lembrar que este nível, o discursivo, é o mais recente do percurso gerativo de sentido, portanto, sua teorização é menos estabilizada que as demais utilizadas até aqui.

O texto da canção O Meu Guri é figurativo. Chico Buarque valeu-se de elementos de figurativização para construir/dar efeito de real à canção. Temos as figuras guri, mãe e seu moço, que são utilizadas para dar concretude ao tema destacado no nível fundamental (pobreza x riqueza ou classe social desprestigiada x classe social de prestígio), ou seja, as figuras tematizam um dos maiores problemas sociais brasileiros: jovens marginalizados dos grandes centros urbanos e sua ‘captura’ pelo crime organizado; ou numa análise mais pertinente (talvez mais apropriada): a falta de políticas públicas para amenizar o abismo sócio-econômico do povo brasileiro.

A figura da mãe é identificada pelos pronomes pessoais de primeira pessoa eu e meu, e pelas falas da enunciadora, como em: meu rebento (1º verso, 1ª estrofe), eu não tinha nem nome pra lhe dar (3º verso, 1ª estrofe) e, principalmente, na repetição da expressão meu guri, identificada com equivalente a meu filho. A figura do guri é construída pela fala do sujeito mãe e constitui-se de um alguém (3ª pessoa singular) sobre o qual se fala. Já a figura seu moço, chamada ao texto pela enunciadora, constitui-se na 2ª pessoa do singular, ou seja, com quem se fala. Esta figura, seu moço, pode representar um delegado; as autoridades constituídas, por exemplo, um juiz, um promotor; um vizinho; um jornalista; um advogado; pode ser um chamamento ao leitor ou a sociedade brasileira... caberá ao enunciatário decidir.

Interessante observarmos, também, a relação eu-tu representada na canção. A figura da enunciadora tomada como mãe na forma do “eu” e um enunciatário com quem ela se comunica (“seu moço”) – presentes no primeiro verso da primeira estrofe, no terceiro verso da segunda, no terceiro da quarta e no sétimo verso da última estrofe – na forma do “tu”, causa um efeito de sentido de proximidade, ou seja, aquele que lê o enunciado (ou o ouve, já que se trata de uma canção) envolve-se com o que é dito; essa relação eu-tu aponta para a subjetividade do texto, pois ao criar um “tu”, o eu também se constrói e cria um simulacro da própria estrutura da comunicação no interior do enunciado.

O mesmo acontece com a marcação do espaço no texto. A enunciadora usa o termo “cá”, levando o leitor a imaginar-se no mesmo lugar em que ela se encontra, gerando, mais uma vez, um efeito de proximidade, de intimidade com o enunciatário. Já a palavra “lá”, usada repetidas vezes no enunciado, não é uma palavra da enunciadora, pois o “lá” sempre aparece como uma citação do guri:

“ele disse que chegava lá”. O “lá” nesse caso seria o lugar da riqueza, da fama, do prestígio; lugares dos quais ela não se exclui. A figura da mãe é aqui tomada como a da enunciadora – o texto traz marcas visíveis que atestam tal crença, como, por exemplo: “nasceu meu rebento ... eu não tinha nem nome pra lhe dar... e na sua meninice ele um dia me disse...”; “boto ele no colo...”, e pela repetição, ao longo da canção, do verso “olha aí, ai o meu guri, olha aí... olha aí, é o meu guri” – e por isso supõe-se que as opiniões e juízos de valor dispensados por ela sejam questionáveis, vez que, dificilmente, conseguirá ser imparcial ao falar sobre o próprio “rebento”.

A visão de um guri trabalhador (“E ele chega / chega suado e veloz no batente / e traz sempre um presente... Rezo até ele chegar cá no alto / Essa onda de assaltos tá um horror /... E o danado já foi trabalhar”) que a mãe quer passar ao enunciatário (leitor) não se sustenta. Parece-nos mais natural que um “guri” que mora no morro, cuja mãe sequer tem documentos e que traz para ela “uma bolsa já com tudo dentro”, não seja um guri que trabalha na legalidade, mas sim, um guri que trabalha para as instituições criminosas que existem nesses espaços e que são, em regra, quem gera ‘emprego e renda’ para as famílias que ali habitam. A enunciadora nos permite, ainda, ver que o ‘trabalho’ do guri (“chega no morro com carregamento / pulseira, cimento, relógio, pneu, gravador”), sustenta outro comércio: o mercado negro, também abastecido e controlado pelo crime organizado.

A figura morro remete a um espaço físico que, no atual contexto social brasileiro, alude, principalmente, a roubos, assassinatos e a traficantes; mas que remete também, a pessoas humildes, sem oportunidade a ‘um outro tipo de vida’; brasileiros, aos quais são negados Direitos Fundamentais – como à vida, à igualdade, à segurança etc.

Ao final do texto a mãe diz não entender o alvoroço que se faz a partir da “manchete, retrato, com vendas nos olhos, legenda e as iniciais”, neste ponto, pode-se dizer que a enunciadora, ao longo de seu discurso, quis convencer o interlocutor de sua inocência, pois ao referir a si própria usa efeitos de proximidade e de subjetividade.

Apresenta-se como uma mulher pobre e ignorante, sem documento; que criou o filho sozinha, com todas as dificuldades que isso implica.

Uma mulher que ficava encabulada com os presentes que o guri lhe dava, que tem medo (“essa onda de assalto tá um horror”), que é pessoa temente a Deus (“rezo até ele chegar cá no alto”). Ou seja, a enunciadora se coloca como alguém que nada podia fazer (ou não queria fazer) para interpelar o guri, pois este tinha o querer-poderfazer e nada o destituiria de seu desejo maior: ficar disjunto de uma vida miserável. A repetição constante do verso “Ele disse que chegava lá” marca, desde o início do texto, o desejo do guri e, ao finalizar as estrofes com “Ele chega”, a enunciadora registra a conquista do querer maior: chegar lá.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo desse trabalho foi, sob o recorte dos postulados de Greimas, desvelar os níveis de geração de sentido e, assim, indicar um novo olhar sobre o texto. Esperamos ter conseguido. Entretanto, registramos não ser possível destecer todos os fios, tão bem trançados e tramados pelo compositor em sua canção. Muito há, ainda, para ser explorado.

Ressaltamos que estudos apontam para a morte do “guri”, o que a presente análise não comprova, pois faltam marcas no texto que embasem tal afirmação; embora, como já dissemos à página 9 quando tratamos do nível narrativo, caberá ao enunciatário tal interpretação. O fato de haver uma foto do guri no mato com vendas nos olhos, manchete e as iniciais pode significar apenas o flagrante de um menor em ato criminoso. É claro que pode também ser a notícia de sua morte. A fala da enunciadora “ai o meu guri” pode remeter a um acontecimento de morte; mas pode também ser a fala de uma mãe desesperada que vê seu filho nas páginas policiais, como dito. E, sendo um dos princípios da semiótica a “verdade do texto”, ou seja, a verdade que é construída pelo homem e que por isso mesmo tem caráter múltiplo, optamos em deixar o leitor livre para escolher a sua ‘verdade’. As oposições riqueza vs pobreza ou classe social prestigiada vs classe social desprestigiada, observadas no nível fundamental, sustentam a análise de um sujeito, guri, que investe nos objetos que busca os valores riqueza, fama, posição social como a única alternativa para ficar disjunto de uma vida de miséria e pobreza. Sujeito esse que busca e conquista os valores almejados.

Essas oposições marcam também as fronteiras sociais e econômicas existentes em nosso país.

Por fim, a canção O meu guri reafirma o que se diz sobre a obra de Chico Buarque: é sempre atual e, portanto, aberta a novos olhares, novas leituras.



REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

BARROS, Diana Luz Pessoa de. Teoria semiótica do texto. 3. ed. São Paulo: Atual, 1997.
DICIONÁRIO DE SEMIÓTICA. s/l, s/d.
FIORIN, José Luiz (Org. São Paulo : Contexto, 2003.
_____. As astúcias da enunciação – as alegorias de pessoa, espaço e tempo. São Paulo: Ática, 2002.
_____. Sendas e veredas da semiótica narrativa e discursiva. São Paulo : Revista Delta, v .15, nº 1, feb./jul.. 1999.
GREIMAS, Algirdas Julien. Semântica estrutural. 2. ed. São Paulo : Cultrix, 1966.
_____. Semiótica das paixões. Dos estados de coisas aos estados de alma. São Paulo : Ática, 1993.
_____. Sobre o sentido – ensaios semióticos. Petrópolis : Vozes, 2003.
HERNANDES, Nilton e LOPES, Ivã Carlos. (Orgs.) Semiótica – Objetos e Práticas. São Paulo : Contexto, 2005.
HOLLANDA, Chico Buarque de. Tantas palavras. São Paulo : Companhia das Letras, 2006.
NÖTH, Winfried. A semiótica no século XX. São Paulo : Annablume, 1996

1 Grifo nosso.


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