sábado, 29 de maio de 2010

ADORANDO ADONIRAN (6) – CEM ANOS DE ADONIRAN BARBOSA

ADORANDO ADONIRAN (6) – CEM ANOS DE ADONIRAN BARBOSA

Nesta sexta postagem sobre os CEM ANOS DE ADONIRAN BARBOSA, vamos retomar a espiral escópica que emerge de muitas letras do compositor paulistano. Ora estamos a falar sobre TIRO AO ÁLVARO (Tiro ao alvo) composição dividida com Osvaldo Molles. Cá, nosso homenageado desloca o homem adoniraniano ortodoxo do lugar de sujeito que olha (presente em tantas várias letras) e se instala na posição de objeto olhado. Ora pois, vamos cantá-la:

De tanto levar
Flechada do teu olhar
Meu peito até
Parece sabe o quê?
Táuba de tiro ao Álvaro
Não tem mais onde furar
Não tem mais!...
De tanto levar
Frechada do teu olhar
Meu peito até
Parece sabe o quê?
Táuba de tiro ao Álvaro
Não tem mais onde furar...
Teu olhar mata mais
Que bala de carabina
Que veneno estricnina
Que peixeira de baiano...
Teu olhar mata mais
Que atropelamento
De automóvel
Mata mais
Que bala de revólver...


O peito do homem adoniraniano é, certamente, uma metáfora além de ser o cipto-objeto-anatômico da condição ontológica de objeto passivo desse mesmo homem. Desse homem apaixonado e autoinserido como vítima dessa relação amorosa assim tão forte Uma vítima clássica que camufla ‘a sete chaves’ o quanto ele contribui para sua própria passividade e sedentarismo afetivo, que luta para esconder (como se estivesse deitado num divã de psicanalista) qual a sua autoinserção, qual a sua responsabilidade direta como alvo (Álvaro) do ataque escópico do ente amado.

“O inferno são os outros” ajudaria o filósofo Jean-Paul Sarte - ao denunciar e condenar a passividade da eterna vítima do mundo - através do personagem Garcin em sua peça “Entre quatro paredes”.“Pimenta no olho dos outros é refresco” – concordaria nossos inúmeros filósofos populares.

Convidemos, também, Maiakóvski


Na primeira noite eles aproximam-se e colhem uma flor do nosso jardim e não dizemos nada.
Na segunda noite, já não se escondem; pisam as flores, matam o nosso cão, e não dizemos nada.
Até que um dia o mais frágil deles entra sozinho em nossa casa, rouba-nos a lua e, conhecendo o nosso medo, arranca-nos a voz da garganta. E porque não dissemos nada, Já não podemos dizer nada.


("Despertar é preciso" - Vladimir Maiakóvski)



Sem fugir à velha regra e ao hábito de atribuir ao outro (ao destino) a responsabilidade exclusiva da dor (tapas) ou do prazer (beijos) - ou seja, a autovitimização compulsiva, mas não necessariamente compulsória - a letra caminha para a morbidez, para a morte … ponto extremo e final de toda a passividade ante o prazer e a dor causada pelo outro:

Teu olhar mata mais
Que bala de carabina
Que veneno estricnina
Que peixeira de baiano...
Teu olhar mata mais
Que atropelamento
De automóvel
Mata mais
Que bala de revólver...



(Embora a faca tipo ‘peixeira’ tenha uso instrumental e linguístico mais comuns entre pernambucanos, … a expressão ‘peixeira de baiano’ se justifica porque, em São Paulo, todo migrante que vem do Nordeste é, genericamente, apelidado de “baiano”).

Mas voltemos para o mesmo lugar de onde não saimos. Qual a diferença básica entre compulsivo e compulsório? O compulsivo é da ordem da subjetividade, do desejo de cada ser humano que é o desejo do outro ser humano. “Onde queres revolta/sou coqueiro” – diz Caetano Veloso em “Quereres”. O gancho do meu desejo parece se enganchar, perfeitamennte, no gancho do desejo do outro; mas só parece. Existe um vácuo - um espaço por assim dizer nanométrico - que impede a ‘colagem’ perfeita entre os dois ganchos. Esse vácuo é, em “Quereres”, a diferença (invisível de tão “pequena”) entre revolta e coqueiro. Entre a revolta que você quer que eu seja e o coqueiro, e só coqueiro, que eu posso ser para você. Paciência.

Um exemplo. Ccompulsório e objetivo (recomendável, normal) é o cuidado de uma pessoa que se certifica, bem, antes de sair de casa, se fechou a torneira de gás do seu fogão ou se trancou a porta de sua casa. Feito isso, a pessoa sai e vai trabalhar, passear, etc. Afinal, hoje em dia não são poucos os casos de explosão de botijões de gás ou de arrombamento de casas e apartamentos.

Porém se alguém volta dezenas de vezes da rua para casa (mal acabou de sair de casa) porque precisa se assegurar, cada vez, de que REALMENTE fechou a torneira de gás ou trancou a porta de casa, isso é compulsivo, é subjetivo; e um caso clássico da doença chamada Transtorno Obsessivo Compulsivo (TOC)


O herói adoniraniano de TIRO AO ÁLVARO ama ao mesmo tempo que odeia o sujeito desse insistente e invasivo olhar de flecha. Ele sofre mas gosta, ele gosta, mas sofre: “nós sofre mas nós goza, nós goza mas nós sofre”. É o gozo (lust), a dordelícia (um neologismo que eu criei para a situação) desse herói. Ele – como cada um de nós – “sabe a dor e a delícia de ser o que é” (Caetano Veloso). Paciência. Fazer o quê?

Mais uma vez em coro com Jean-Paul Sartre, podemos dizer que “o importante não é o que fazem com a gente, mas o que a gente faz do que fazem com a gente”. O que o homem adoniraniano faz com as flechadas que recebe? Será que ele se comporta como o ‘personagem’ de “Entre Tapas e Beiojos” (?) – letra de Cesar Menotti e Fabiano.

Perguntaram pra mim
Se ainda gosto dela
Respondi, tenho ódio
E morro de amor por ela
Hoje estamos juntinhos
Amanhã nem te vejo
Separando e voltando
A gente segue andando entre tapas e beijos
Eu sou dela, e ela é minha
E sempre queremos mais
Se me manda ir embora
Eu saio pra fora ele chama pra trás
Entre tapas e beijos
É ódio é desejo
É sonho é ternura
O casal que se ama
Até mesmo na cama
Provoca loucuras
E assim vou vivendo
Sofrendo e querendo
Esse amor doentio
Mas se falto pra ela
Meu mundo sem ela
Eu não vivo


Tanto quanto no final de TIRO AO ÁLVARO, em “Entre Tapas e Beijos” existe um flerte com a morte:”: … sem ela eu não vivo”.



E assim vou vivendo
Sofrendo e querendo
Esse amor doentio
Mas se falto pra ela
Meu mundo sem ela
Eu não vivo


Teu olhar mata mais
Que bala de carabina
Que veneno estricnina
Que peixeira de baiano...
Teu olhar mata mais
Que atropelamento
De automóvel
Mata mais
Que bala de revólver...



A posição subjetiva masoquista faz um elo importante entre as duas obras.


(AMANHÃ, DOMINGO, TAMBÉM É DIA DE ADONIRAN)

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