A Magia da Poesia: Nosso Tempo – Drummond |
Posted: 07 Jul 2015 09:00 AM PDT
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Nosso Tempo – Drummond
I
Esse é tempo de partido,
tempo de homens partidos.
Em vão percorremos volumes,
viajamos e nos colorimos. A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua. Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos. As leis não bastam. Os lírios não nascem da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se na pedra.
Visito os fatos, não te encontro.
Onde te ocultas, precária síntese, penhor de meu sono, luz dormindo acesa na varanda? Miúdas certezas de empréstimos, nenhum beijo sobe ao ombro para contar-me a cidade dos homens completos.
Calo-me, espero, decifro.
As coisas talvez melhorem. São tão fortes as coisas! Mas eu não sou as coisas e me revolto. Tenho palavras em mim buscando canal, são roucas e duras, irritadas, enérgicas, comprimidas há tanto tempo, perderam o sentido, apenas querem explodir.
II
Esse é tempo de divisas,
tempo de gente cortada. De mãos viajando sem braços, obscenos gestos avulsos.
Mudou-se a rua da infância.
E o vestido vermelho vermelho cobre a nudez do amor, ao relento, no vale.
Símbolos obscuros se multiplicam.
Guerra, verdade, flores? Dos laboratórios platônicos mobilizados vem um sopro que cresta as faces e dissipa, na praia, as palavras.
A escuridão estende-se mas não elimina
o sucedâneo da estrela nas mãos. Certas partes de nós como brilham! São unhas, anéis, pérolas, cigarros, lanternas, são partes mais íntimas, e pulsação, o ofego, e o ar da noite é o estritamente necessário para continuar, e continuamos.
III
E continuamos. É tempo de muletas.
Tempo de mortos faladores e velhas paralíticas, nostálgicas de bailado, mas ainda é tempo de viver e contar. Certas histórias não se perderam. Conheço bem esta casa, pela direita entra-se, pela esquerda sobe-se, a sala grande conduz a quartos terríveis, como o do enterro que não foi feito, do corpo esquecido na mesa, conduz à copa de frutas ácidas, ao claro jardim central, à água que goteja e segreda o incesto, a bênção, a partida, conduz às celas fechadas, que contêm: papéis? crimes? moedas?
Ó conta, velha preta, ó jornalista, poeta, pequeno historiador urbano,
ó surdo-mudo, depositário de meus desfalecimentos, abre-te e conta, moça presa na memória, velho aleijado, baratas dos arquivos, portas rangentes, solidão e asco, pessoas e coisas enigmáticas, contai; capa de poeira dos pianos desmantelados, contai; velhos selos do imperador, aparelhos de porcelana partidos, contai; ossos na rua, fragmentos de jornal, colchetes no chão da costureira, luto no braço, pombas, cães errantes, animais caçados, contai. Tudo tão difícil depois que vos calastes… E muitos de vós nunca se abriram.
IV
É tempo de meio silêncio,
de boca gelada e murmúrio, palavra indireta, aviso na esquina. Tempo de cinco sentidos num só. O espião janta conosco.
É tempo de cortinas pardas,
de céu neutro, política na maçã, no santo, no gozo, amor e desamor, cólera branda, gim com água tônica, olhos pintados, dentes de vidro, grotesca língua torcida. A isso chamamos: balanço.
No beco,
apenas um muro, sobre ele a polícia. No céu da propaganda aves anunciam a glória. No quarto, irrisão e três colarinhos sujos.
V
Escuta a hora formidável do almoço
na cidade. Os escritórios, num passe, esvaziam-se. As bocas sugam um rio de carne, legumes e tortas vitaminosas. Salta depressa do mar a bandeja de peixes argênteos! Os subterrâneos da fome choram caldo de sopa, olhos líquidos de cão através do vidro devoram teu osso. Come, braço mecânico, alimenta-te, mão de papel, é tempo de comida, mais tarde será o de amor.
Lentamente os escritórios se recuperam, e os negócios, forma indecisa, evoluem.
O esplêndido negócio insinua-se no tráfego. Multidões que o cruzam não vêem. É sem cor e sem cheiro. Está dissimulado no bonde, por trás da brisa do sul, vem na areia, no telefone, na batalha de aviões, toma conta de tua alma e dela extrai uma porcentagem.
Escuta a hora espandongada da volta.
Homem depois de homem, mulher, criança, homem, roupa, cigarro, chapéu, roupa, roupa, roupa, homem, homem, mulher, homem, mulher, roupa, homem, imaginam esperar qualquer coisa, e se quedam mudos, escoam-se passo a passo, sentam-se, últimos servos do negócio, imaginam voltar para casa, já noite, entre muros apagados, numa suposta cidade, imaginam. Escuta a pequena hora noturna de compensação, leituras, apelo ao cassino, passeio na praia, o corpo ao lado do corpo, afinal distendido, com as calças despido o incômodo pensamento de escravo, escuta o corpo ranger, enlaçar, refluir, errar em objetos remotos e, sob eles soterrados sem dor, confiar-se ao que bem me importa do sono.
Escuta o horrível emprego do dia
em todos os países de fala humana, a falsificação das palavras pingando nos jornais, o mundo irreal dos cartórios onde a propriedade é um bolo com flores, os bancos triturando suavemente o pescoço do açúcar, a constelação das formigas e usurários, a má poesia, o mau romance, os frágeis que se entregam à proteção do basilisco, o homem feio, de mortal feiúra, passeando de bote num sinistro crepúsculo de sábado.
VI
Nos porões da família
orquídeas e opções de compra e desquite. A gravidez elétrica já não traz delíquios. Crianças alérgicas trocam-se; reformam-se. Há uma implacável guerra às baratas. Contam-se histórias por correspondência. A mesa reúne um copo, uma faca, e a cama devora tua solidão. Salva-se a honra e a herança do gado.
VII
Ou não se salva, e é o mesmo. Há soluções, há bálsamos
para cada hora e dor. Há fortes bálsamos, dores de classe, de sangrenta fúria e plácido rosto. E há mínimos bálsamos, recalcadas dores ignóbeis, lesões que nenhum governo autoriza, não obstante doem, melancolias insubornáveis, ira, reprovação, desgosto desse chapéu velho, da rua lodosa, do Estado. Há o pranto no teatro, no palco? no público? nas poltronas? há sobretudo o pranto no teatro, já tarde, já confuso, ele embacia as luzes, se engolfa no linóleo, vai minar nos armazéns, nos becos coloniais onde passeiam ratos noturnos, vai molhar, na roça madura, o milho ondulante, e secar ao sol, em poça amarga. E dentro do pranto minha face trocista, meu olho que ri e despreza, minha repugnância total por vosso lirismo deteriorado, que polui a essência mesma dos diamantes.
VIII
O poeta
declina de toda responsabilidade na marcha do mundo capitalista e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas promete ajudar a destruí-lo como uma pedreira, uma floresta um verme.
( Carlos Drummond de Andrade )
(Poema digitado e novamente conferido por mim mesmo, publicado em Antologia Poética – 12a edição – Rio de Janeiro: José Olympio, 1978, ps. 109 a 116) |
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