domingo, 26 de julho de 2015

SILÊNCIO - CLARICE PISPECTOR (TRECHO)

A Magia da Poesia: Silêncio – Clarice Lispector (trecho)
Silêncio – Clarice Lispector (trecho)
 
(…) Como estar ao alcance dessa profunda meditação do silêncio. Desse silêncio sem lembrança de palavras. Se és morte, como te alcançar?
É um silêncio que não dorme: é insone: imóvel mas insone; e sem fantasmas. É terrível – sem nenhum fantasma. Inútil querer povoá-lo com a possibilidade de uma porta que se abra rangendo, de uma cortina que se abra e diga alguma coisa. Ele é vazio e sem promessa. Se ao menos houvesse o vento. Vento é ira, ira é vida. Ou neve, que é muda, mas deixa rastro – tudo embranquece, as crianças riem, os passos rangem e marcam. Há uma continuidade que é a vida. Mas este silêncio não deixa provas. Não se pode falar do silêncio como se fala da neve.
(Clarice Lispector)
(A descoberta do mundo: crónicas – Página 129)
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Silêncio – Clarice Lispector (trecho)
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quinta-feira, 23 de julho de 2015

HERMANN HESSE - POESIA.NET - S PAULO

O melancólico lobo da estepe
 
Hermann Hesse

 
 
Albert Anker - O escolar
Albert Anker (1831-1910), suíço, O escolar




PASSEIO NOTURNO

Já a noite cai, descansa a rua.
Em sonolenta pulsação
o rio vai, com suas águas indolentes,
rumo à calada escuridão.

Resmunga ele, no seu leito fundo,
tão contrafeito, pesado e rouco,
como se só quisesse repousar;
igual a ele, fatigado eu vou.

Atravessar a noite e terra estranha
é um penoso arrastar-se de um e outro:
silente e imóvel peregrinação
a dois, sem que nenhum saiba para onde.


Albert Anker - Duas crianças com uma lousa
Albert Anker, Duas crianças com uma lousa



À MELANCOLIA

No vinho ou entre amigos, de ti eu fugia,
pois do teu olho escuro eu sentia pavor:
ingrato filho teu, assim eu te esquecia
ao toque do alaúde e nos braços do amor.

Com toda a discrição, no entanto, me seguias:
sempre estavas no vinho que eu tonto bebia
e no mormaço das minhas noites de amor
e no desdém com que eu a ti me referia.

Agora me refrescas os membros cansados
e tens minha cabeça em teu colo macio,
para o regresso das minhas longas viagens
— pois a ti me traziam todos os meus desvios.




Albert Anker - Chapeuzinho vermelho
Albert Anker, Chapeuzinho vermelho

COMOÇÃO
Turvou-se de repente o vinho no meu copo,
fatigado sentei-me e pus-me a olhar o chão:
senti branco o cabelo e vago o coração.
Riam alto os amigos, bêbados, no salão.

Veio à janela a amiga de minha juventude:
a Lua, a dilatar o saguão com seu brilho,
reluzindo em meu copo e nas lágrimas minhas.
Cantavam e berravam, bêbados, meus amigos.

Hora após hora eu ando agora, e em minhas faces
em fogo sinto os ventos de um distante verão;
vocalizo canções de quando era rapaz,
penso na pátria — e sei que não a encontro mais
.




Albert Anker - A creche
Albert Anker, A creche (1890)


LOBO DA ESTEPE


Lobo da estepe, vou eu trotando, trotando.
O mundo cobre-se todo de neve.
De uma bétula, sai voando um corvo;
mas em nenhum lugar se vê uma lebre,
não se vê uma gazela.
Com as gazelas sou tão delicado,
ah, se uma aparecesse!
Tomá-la-ia nas garras, nos dentes:
não há coisa mais linda.
Aos mansos, mostro o meu bom coração:
em seus tenros pernis enterraria suavemente os dentes,
e o sangue claro cu iria sorvendo até mais não poder,
para ficar depois a noite inteira uivando em solidão.
Uma lebre já me contentaria:
mornas carnes de gosto doce à noite.
— Mas será que de mim se esconde tudo
que torna a vida um pouco mais bonita?
Em minha cauda o pelo já branqueia
e eu já não tenho a vista tão certeira;
faz anos que morreu-me a companheira.
Agora vou eu trotando e sonhando com gazelas,
vou eu trotando e sonhando com lebres,
ouvindo o vento a zunir na noite de inverno;
engulo neve, a ver se a goela me acalma,
e vou seguindo com o diabo na alma.




Albert Anker - Garota descascando batas
Albert Anker, Garota descascando batatas
A MORTE A PESCAR DE ANZOL

Senta-se a Morte e vai pescando-nos da vida
com sua linha torpe, invisível e fina.
Não há truque ou esforço que nos valha mais:
ela tem paciência e uma isca que fascina.

Quem cai no seu anzol, pode cavar na areia
ou no lodo, ou tentar qualquer manha mesquinha:
senta-se a Morte nele, e não mais lá na beira.
Está perdido, mesmo que arrebente a linha.

Pode, numa escapada, no fundo revolto
longo tempo esconder-se ainda com medo dela:
para finar-se, está completamente solto.
Nada tem gosto mais: o anzol pegou na goela.





Albert Anker - Garota alimentando galinhas
Albert Anker, Garota alimentando galinhas

BORBOLETA AZUL

Pequenina borboleta
azul no vento esvoaça:
um tremor de madrepérola
flameja, reluz e passa.
Num átimo, num piscar
de olhos, eu vi assim
flamejante e reluzente
a sorte passar por mim.
Filme Easy rider
Trecho inicial do filme Easy Rider (Sem Destino), de 1969, com a canção
"Born to be wild", da banda Steppenwolf — nome do romance de Hesse.
(Clique na imagem para ver o clipe)




SETEMBRO

Entristece o jardim.
Fria nas flores a chuva cai.
O verão se arrepia
em silêncio diante do seu fim.

Pétala a pétala goteja em ouro
do alto pé de acácia.
O verão ri abatido e perplexo
no sonho do jardim em agonia.

A prolongar-se ainda junto às rosas,
ele espera, de pé, pelo repouso,
e os grandes olhos fatigados vai
entrecerrando aos poucos.



Hermann Hesse (1877-1962)
Hermann Hesse

Amigas e amigos,


Nos anos 60, o nome do escritor suíço-alemão Hermann Hesse frequentava as listas mundiais de best sellers, graças ao romance O Lobo da Estepe, (Der Steppenwolf), que se tornou leitura obrigatória nos meios da chamada contracultura.


Nascido em 1877, na Alemanha, Hermann Karl Hesse naturalizou-se suíço em 1923. Filho de missionários protestantes, decidiu não seguir a carreira de pastor, como queriam seus pais. Autodidata, tomou contato com a espiritualidade oriental durante uma viagem à Índia. Em 1912, mudou-se para a Suíça, onde trabalhou como livreiro e operário.


A eclosão da Primeira Guerra Mundial provocou uma crise emocional em Hesse que, com isso, aproximou-se da psicanálise, por meio de um discípulo de Carl Gustav Jung. Orientalismo e psicanálise seriam duas influências centrais em sua obra.


A partir do final dos anos 30, com o domínio nazista na Alemanha, os jornais deixaram de publicar textos de Hesse no país, e sua obra acabou banida. Em 1946, Hermann Hesse recebeu os prêmios Goethe, alemão, e o Nobel. O escritor faleceu em 1962, aos 85 anos.

•o•

Além de O Lobo da Estepe, outros romances de Hesse, como Demian e Sidarta, também experimentaram trânsito intenso nos anos 60 e 70. Mas pouca gente sabe que o autor também escreveu poesia. Tenho aqui nas mãos o volume Andares – Antologia Poética, publicado em 1982, com tradução e prólogo do poeta capixaba Geir Campos (1924-1999).


Como diz o tradutor, tanto na prosa como na poesia, Hesse “mostrou-se permanentemente preocupado com a busca de um sentido para a vida, levando-o essa busca a preferir a solidão, longe das aglomerações urbanas que lhe eram penosas de suportar”.


Ao lado, uma pequena seleção de poemas de Hesse. Ao contrário do que sempre faço, desta vez as traduções não vêm acompanhadas dos originais, uma vez que a antologia Andares, minha fonte, é monolíngue.

•o•

O clima dominante nos poemas de Hesse é o da melancolia e de certa contemplação proustiana do tempo perdido. Em “Comoção”, por exemplo, ele diz: “penso na pátria — e sei que não a encontro mais”.


Em “Passeio Noturno”, o sujeito lírico dialoga com um rio. Sentindo-se estrangeiro, o indivíduo se vê como igual ao curso d’água: ambos peregrinam sem saber aonde vão. Poderíamos dizer que o rio, inexoravelmente, vai dar no mar. Quanto a seu companheiro humano, nunca se sabe.


Em “À Melancolia”, o narrador declara que, depois de todas as suas longas viagens, ele retorna exatamente para a melancolia, mais: revela-se um filho ingrato dela. É interessante ressaltar que, obviamente, narrador e poeta não são a mesma pessoa. Apesar dessa inclinação para a solidão e o recolhimento, Hesse casou-se várias vezes.


Assim como se observa esse diálogo com o rio, o orientalista em Hesse o conduz repetidamente para observar os movimentos naturais das árvores, dos animais, da sucessão das noites e dias. No poema “Lobo da Estepe”, quem fala é um lobo. Um canídeo com raciocínio humano, vagando na neve e mostrando sua condição de natural predador: “Com as gazelas sou tão delicado, / ah, se uma aparecesse! / Tomá-la-ia nas garras, nos dentes: não há coisa mais linda”.


“A Morte a Pescar de Anzol” mostra as artimanhas da morte para fisgar suas vítimas. Não há saída para os “peixes” capturados. “Borboleta azul” é uma canção de lirismo triste e musical. Por fim, “Setembro” celebra o término da estação de estio no hemisfério norte: “O verão se arrepia / em silêncio diante do seu fim”.

•o•

Algumas curiosidades sobre a repercussão da obra de Hermann Hesse.


* O romance O Lobo da Estepe foi traduzido pela primeira vez no Brasil em 1935, por Augusto de Souza. Nos anos 60 e 70, Hesse foi um dos autores estrangeiros mais lidos no país.


* O Lobo da Estepe tornou-se tão conhecido entre os jovens dos anos 60 que até serviu para batizar uma banda de hard rock americana, a Steppenwolf. O grupo marcou época com o sucesso “Born to be Wild”, canção que está na trilha sonora do filme Easy Rider (1969), dirigido por Dennis Hopper e estrelado pelo próprio Hopper, Peter Fonda e o então estreante Jack Nicholson. A canção carrega outra curiosidade: nela, usa-se pela primeira vez a expressão heavy metal, que viria depois a batizar um dos estilos de rock pesado.


* Uma das razões para o sucesso de Hesse entre os jovens dos anos 60 e 70 era seu orientalismo místico. O guitarrista mexicano Carlos Santana diz que o título de seu segundo disco, Abraxas (1970), vem de um trecho do romance Demian. Nesse livro, Abraxas é uma divindade de características humanas.

Um abraço, e até a próxima.Carlos Machado


•o•


LANÇAMENTO


Noite Alta e Outros Poemas
• Ruy Espinheira Filho



Ruy Espinheira - Noite Alta



O poeta baiano Ruy Espinheira Filho lança em São Paulo seu novo livro de inéditos, Noite Alta e Outros Poemas, publicado pela Editora Patuá.

Quando:
Quinta-feira, 23/07/2015,
a partir das 19h

Onde:
Bar Canto Madalena
Rua Medeiros de Albuquerque, 471
Vila Madalena
São Paulo - SP

 

•o•


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Poética   Nova Fronteira, 2a. ed., Rio de Janeiro, 1982
_____________
* Myriam Fraga, "Olho de vidro", in O Risco na Pele (1979)
______________
- Imagens: pinturas de Albert Anker (1831-1910), suíço

   
 
poesia.net www.algumapoesia.com.br
Carlos Machado, 2015
Hermann Hesse
* In Andares - Antologia Poética
   Nova Fronteira, 2a. ed., Rio de Janeiro, 1982
_____________
* Myriam Fraga, "Olho de vidro", in O Risco na Pele (1979)
______________
- Imagens: pinturas de Albert Anker (1831-1910), suíço
   

domingo, 19 de julho de 2015

NOSSO BLOGUE VISTO NA ALEMANHA E NO MUNDO

SEMANA DE 18/07/2015, 19h A 19/07/2015, 18h

 

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quinta-feira, 9 de julho de 2015

FESTIVAL DE INVERNO - CAMPOS DO JORDÃO - SÃO PAULO - 2015



http://confiramais.com.br/festival-de-inverno-campos-do-jordao/

quarta-feira, 8 de julho de 2015

DRUMMOND - NOSSO TEMPO - A MAGIA DA POESIA


A Magia da Poesia: Nosso Tempo – Drummond

Link to A Magia da Poesia  

Posted: 07 Jul 2015 09:00 AM PDT
Nosso Tempo – Drummond
I
Esse é tempo de partido,
tempo de homens partidos.
Em vão percorremos volumes,
viajamos e nos colorimos.
A hora pressentida esmigalha-se em pó na rua.
Os homens pedem carne. Fogo. Sapatos.
As leis não bastam. Os lírios não nascem
da lei. Meu nome é tumulto, e escreve-se
na pedra.
Visito os fatos, não te encontro.
Onde te ocultas, precária síntese,
penhor de meu sono, luz
dormindo acesa na varanda?
Miúdas certezas de empréstimos, nenhum beijo
sobe ao ombro para contar-me
a cidade dos homens completos.
Calo-me, espero, decifro.
As coisas talvez melhorem.
São tão fortes as coisas!
Mas eu não sou as coisas e me revolto.
Tenho palavras em mim buscando canal,
são roucas e duras,
irritadas, enérgicas,
comprimidas há tanto tempo,
perderam o sentido, apenas querem explodir.
II
Esse é tempo de divisas,
tempo de gente cortada.
De mãos viajando sem braços,
obscenos gestos avulsos.
Mudou-se a rua da infância.
E o vestido vermelho
vermelho
cobre a nudez do amor,
ao relento, no vale.
Símbolos obscuros se multiplicam.
Guerra, verdade, flores?
Dos laboratórios platônicos mobilizados
vem um sopro que cresta as faces
e dissipa, na praia, as palavras.
A escuridão estende-se mas não elimina
o sucedâneo da estrela nas mãos.
Certas partes de nós como brilham! São unhas,
anéis, pérolas, cigarros, lanternas,
são partes mais íntimas,
e pulsação, o ofego,
e o ar da noite é o estritamente necessário
para continuar, e continuamos.
III
E continuamos. É tempo de muletas.
Tempo de mortos faladores
e velhas paralíticas, nostálgicas de bailado,
mas ainda é tempo de viver e contar.
Certas histórias não se perderam.
Conheço bem esta casa,
pela direita entra-se, pela esquerda sobe-se,
a sala grande conduz a quartos terríveis,
como o do enterro que não foi feito, do corpo esquecido na mesa,
conduz à copa de frutas ácidas,
ao claro jardim central, à água
que goteja e segreda
o incesto, a bênção, a partida,
conduz às celas fechadas, que contêm:
papéis?
crimes?
moedas?
Ó conta, velha preta, ó jornalista, poeta, pequeno historiador urbano,
ó surdo-mudo, depositário de meus desfalecimentos, abre-te e conta,
moça presa na memória, velho aleijado, baratas dos arquivos, portas rangentes, solidão e asco,
pessoas e coisas enigmáticas, contai;
capa de poeira dos pianos desmantelados, contai;
velhos selos do imperador, aparelhos de porcelana partidos, contai;
ossos na rua, fragmentos de jornal, colchetes no chão da costureira, luto no braço, pombas, cães errantes, animais caçados, contai.
Tudo tão difícil depois que vos calastes…
E muitos de vós nunca se abriram.
IV
É tempo de meio silêncio,
de boca gelada e murmúrio,
palavra indireta, aviso
na esquina. Tempo de cinco sentidos
num só. O espião janta conosco.
É tempo de cortinas pardas,
de céu neutro, política
na maçã, no santo, no gozo,
amor e desamor, cólera
branda, gim com água tônica,
olhos pintados,
dentes de vidro,
grotesca língua torcida.
A isso chamamos: balanço.
No beco,
apenas um muro,
sobre ele a polícia.
No céu da propaganda
aves anunciam
a glória.
No quarto,
irrisão e três colarinhos sujos.
V
Escuta a hora formidável do almoço
na cidade. Os escritórios, num passe, esvaziam-se.
As bocas sugam um rio de carne, legumes e tortas vitaminosas.
Salta depressa do mar a bandeja de peixes argênteos!
Os subterrâneos da fome choram caldo de sopa,
olhos líquidos de cão através do vidro devoram teu osso.
Come, braço mecânico, alimenta-te, mão de papel, é tempo de comida,
mais tarde será o de amor.
Lentamente os escritórios se recuperam, e os negócios, forma indecisa, evoluem.
O esplêndido negócio insinua-se no tráfego.
Multidões que o cruzam não vêem. É sem cor e sem cheiro.
Está dissimulado no bonde, por trás da brisa do sul,
vem na areia, no telefone, na batalha de aviões,
toma conta de tua alma e dela extrai uma porcentagem.
Escuta a hora espandongada da volta.
Homem depois de homem, mulher, criança, homem,
roupa, cigarro, chapéu, roupa, roupa, roupa,
homem, homem, mulher, homem, mulher, roupa, homem,
imaginam esperar qualquer coisa,
e se quedam mudos, escoam-se passo a passo, sentam-se,
últimos servos do negócio, imaginam voltar para casa,
já noite, entre muros apagados, numa suposta cidade, imaginam.
Escuta a pequena hora noturna de compensação, leituras, apelo ao cassino, passeio na praia,
o corpo ao lado do corpo, afinal distendido,
com as calças despido o incômodo pensamento de escravo,
escuta o corpo ranger, enlaçar, refluir,
errar em objetos remotos e, sob eles soterrados sem dor,
confiar-se ao que bem me importa
do sono.
Escuta o horrível emprego do dia
em todos os países de fala humana,
a falsificação das palavras pingando nos jornais,
o mundo irreal dos cartórios onde a propriedade é um bolo com flores,
os bancos triturando suavemente o pescoço do açúcar,
a constelação das formigas e usurários,
a má poesia, o mau romance,
os frágeis que se entregam à proteção do basilisco,
o homem feio, de mortal feiúra,
passeando de bote
num sinistro crepúsculo de sábado.
VI
Nos porões da família
orquídeas e opções
de compra e desquite.
A gravidez elétrica
já não traz delíquios.
Crianças alérgicas
trocam-se; reformam-se.
Há uma implacável
guerra às baratas.
Contam-se histórias
por correspondência.
A mesa reúne
um copo, uma faca,
e a cama devora
tua solidão.
Salva-se a honra
e a herança do gado.
VII
Ou não se salva, e é o mesmo. Há soluções, há bálsamos
para cada hora e dor. Há fortes bálsamos,
dores de classe, de sangrenta fúria
e plácido rosto. E há mínimos
bálsamos, recalcadas dores ignóbeis,
lesões que nenhum governo autoriza,
não obstante doem,
melancolias insubornáveis,
ira, reprovação, desgosto
desse chapéu velho, da rua lodosa, do Estado.
Há o pranto no teatro,
no palco? no público? nas poltronas?
há sobretudo o pranto no teatro,
já tarde, já confuso,
ele embacia as luzes, se engolfa no linóleo,
vai minar nos armazéns, nos becos coloniais onde passeiam ratos noturnos,
vai molhar, na roça madura, o milho ondulante,
e secar ao sol, em poça amarga.
E dentro do pranto minha face trocista,
meu olho que ri e despreza,
minha repugnância total por vosso lirismo deteriorado,
que polui a essência mesma dos diamantes.
VIII
O poeta
declina de toda responsabilidade
na marcha do mundo capitalista
e com suas palavras, intuições, símbolos e outras armas
promete ajudar
a destruí-lo
como uma pedreira, uma floresta
um verme.
Carlos Drummond de Andrade )
(Poema digitado e novamente conferido por mim mesmo, publicado em Antologia Poética – 12a edição – Rio de Janeiro: José Olympio, 1978, ps. 109 a 116)