INVENÇÃO DE EURÍDICE
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Iracema Macedo
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Clóvis Graciano, pintor e ilustrador paulista, Café (década de 70)
A TERRA E O FOGO Terra úmida é o que sou E tua voz me fecunda Abre fendas em mim Por onde os meninos vão nascer
Sou essa planície deitada Sob o vento forte Esse vale que invades Sou domínio teu Tua carne Cera sob o teu poder
Sou o que queres que eu seja Enxame, cardume, aves Noite, noite, noite que a tua luz esmaga sem vencer
PRISÕES
Antes eu era o incêndio Agora faço seguro contra fogo Contra roubos
Eu mesma era furacão Eu mesma roubava Agora apaziguo tudo e tranco
Antes eu era as perdas Agora sou vista pelo bairro, precavida, Comprando cadeados sob medida
Clóvis Graciano, A Semeadura
RAÍZES
Para quem não tem mais pátria talvez escrever seja a única morada Theodor Adorno
E me perguntam onde estou E me perguntam onde moro Tornaram-se enfim questões delicadas Estou morando em minhas palavras Às vezes sede, às vezes navalha Às vezes também girassóis e asas
BURKA
Essa estrangeira sem nome, sem rosto, sem riso Disfarça, mas me olha, de dentro de seu abismo Ela viaja comigo: sombra calada, monja Meio fantasma, meio ferida Sobrevivente de nada, queimada, ardida Sob véus calcada, sob véus contida Me prendendo também Em sua cripta
Clóvis Graciano, Pátio do Colégio (1962)
LOTA DE MACEDO SOARES
Lembro-me bem de minha roupa cor de vinho E pérola e do guarda-chuva Que também tinha cor de sangue Aguardando tua chegada sob a chuva
Meu peito sem rédea era socado por pedras À simples pronúncia do teu nome Um jardim morto Era o que havia então Onde fui bela e forte e tu eras amada
Lembro-me bem do meu pranto de meretriz Dos escândalos que fiz e do consolo infeliz Que tu me davas com aquela maldita frase De Oscar Wilde: "Os corações existem para ser despedaçados"
De Poemas Inéditos e Outros Escolhidos (2010)
Clóvis Graciano, Sem Título (1966)
SANTA CLARA
Amanheci de um modo novo hoje as luzes de sempre não me prendem mais com suas âncoras queimei as lanças e fui deixando para trás a casa, o pátio, a aldeia docemente ensolarada
Rasguei as certezas enterrei os vestidos e agora tenho por riqueza o vento
que sustenta os pássaros
Clóvis Graciano, Homem com Pássaro (1968)
ANÚNCIO DE ANTIQUÁRIO
Aceito toda forma de dor Guardo os cacos, os fracassos Coleciono toda espécie de trapo baús, lustres, quadros bibelôs despedaçados
Até navios desaparecidos guardo
Aceito cores de todos os retalhos todas as roupas vividas chapéus de gente antiga relógios, violas, rádios
E os desejos perdidos debaixo dos guarda-chuvas risos que ficaram presos dentro dos porta-retratos
Aceito o que foi pisado mutilado, abandonado Aceito, como um oceano, toda forma de naufrágio
Clóvis Graciano, Os Retirantes
INVENÇÃO DE EURÍDICE
Havia os cabelos de Eurídice incendiando a praia E os homens com suas redes esperando
Orfandades arrastadas sobre a areia era assim que vinham os peixes era assim que as palavras vinham, sem ar, com olhos vitrificados
Havia os cabelos de Eurídice soltos como velames cortando os ventos semeando bichos que se alastravam
Eram quase mãos, os cabelos de Eurídice, Tentando agarrar alguma coisa Buscando alcançar uma alegria, um êxtase, Uma dor que fosse qualquer coisa quebrada, algum resto, um destroço
algas e conchas dentro das ondas
Clóvis Graciano, Estudo para Painel (s/ data)
O POEMA DE LAURA
Essa moça que amei na tarde fria não a amo mais
Aos poucos estou esquecendo seu rosto, suas formas, seu modo obsceno de gritar meu nome em meio ao gozo
Estou esquecendo suas mãos, seus gestos, Seu modo de fugir, sua alegria. A cada dia que passa eu a esqueço mais como se ainda fosse amor o que sentisse
Estou esquecendo as águas onde a vi banhar-se esqueço as vestes claras, a trança úmida, e os pequenos defeitos de seu corpo
Se me perguntarem se era feia ou bonita, não sei, não lembro tampouco sei dizer se ela era triste
Mas às vezes vinha pela tarde feito um anjo sem abrigo e meu amor mordia suas asas
Assim, ferida, ela ficava presa sob meus cuidados imune à ira dos deuses e do tempo
Mas me escapou um dia Ah, essa moça que amei na tarde fria...
De Invenção de Eurídice (2004)
poesia.netwww.algumapoesia.com.br Carlos Machado, 2014
Iracema Macedo • Poemas Inéditos e Outros Escolhidos Sebo Vermelho, Natal, 2010 • Invenção de Eurídice Editora da Palavra, Rio de Janeiro, 2004 ______________ * Affonso Manta, "Retorno", in Antologia Poética (2013) ______________ - Todas as imagens: quadros de Clóvis Graciano (1907-1988), pintor, desenhista, cenógrafo, figurinista, gravador e ilustrador brasileiro
Caras amigas, caros amigos,
Nesta edição, o poesia.net revisita o
trabalho da jovem poeta potiguar
Iracema Macedo. A autora esteve aqui pela
primeira vez no boletim n. 193, em dezembro
de 2006. Retorna agora, oito anos e dois livros depois.
O boletim de 2006 baseou-se apenas no primeiro
livro-solo de Iracema, Lance de Dardos (2000).
Essa obra de estreia era uma coletânea de poemas
substancial e suficientemente forte para projetar
o nome da poeta como uma das boas promessas
para o século que se iniciava.
Naquele momento, seu segundo livro, Invenção
de Eurídice (2004) já fora lançado, mas eu ainda
não o conhecia. Depois, veio Poemas Inéditos e
Outros Escolhidos, de 2010. Nessas duas coletâneas,
a poeta cumpriu a promessa apresentada em seu
certeiro lance de dardos.
Um traço que se mantém na obra a autora —
tanto nos poemas recolhidos em livro como nos
textos soltos publicados na internet — é o de uma
voz que insiste em visualizar o mundo a partir de uma
perspectiva feminina muito clara. No livro incial, são
muitas as personagens mulheres, com seus problemas,
com seus dilemas, carregando os prazeres e os pesares
de cada dia.
As figuras femininas continuam a multiplicar-se
nos dois volumes seguintes. Invenção de Eurídice e
Poemas Inéditos trazem outra coleção dessas mulheres,
que vão desde a mitológica esposa de Orfeu no título até
a real e trágica Lota de Macedo Soares (1910-1967), conhecida
como arquiteta-paisagista idealizadora do Parque do Flamengo,
no Rio, e como companheira da poeta americana Elizabeth Bishop.
•o•
Iracema Macedo nasceu em Natal-RN, em 1970. Formou-se em
filosofia em 1991 na UFRN e concluiu o mestrado na mesma
área na UFPB, em 1995. Na Unicamp, defendeu o doutorado,
também em filosofia, em 2003. Durante alguns anos, viveu em
Ouro Preto-MG e trabalhou na UFMG. Atualmente, é professora
no Instituto Federal Fluminense, IFF-Cabo Frio, no estado
do Rio de Janeiro. .
Um abraço, e até a próxima,
Carlos Machado
•o•
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