O GRAFITE E OS FLUXOS DA CIDADE
Francisco Antônio Zorzo - Professor da UFBA (Universidade Federal da Bahia - Brasil)
[Artigo publicado
no jornal A Tarde, Salvador - Bahia - Brasil, 22 de Agosto de 2012, Salvador – Bahia]
Vale
a pena tratar do caso da grafitagem, tal como ocorre no bairro do Rio Vermelho,
como uma referência concreta para estudar a cidade e a visualidade. Pode-se
tomar o efeito de uma série de obras pintadas nas ruas de Salvador para
entender o problema dos fluxos urbanos. O grafite é um campo de múltiplos efeitos
e fluxos comunicacionais na metrópole brasileira contemporânea.
Os
grafites, que proliferam nos muros e paredes desse bairro de Salvador, merecem
um acolhimento crítico por darem vista a um olhar que reflete o ambiente urbano.
Essas figurações são feitas por um grupo de artistas que convivem na mesma
cidade e que, mesmo sendo contemporâneos, oferecem uma diversidade de reações e
capturas do imaginário urbano. Eles constroem um olhar que ultrapassa
obviamente o espaço das paredes da cidade, proporcionando uma interação
simbólica muito mais ampliada, cujas exibições são levadas às redes sociais e à
mídia.
Os
artistas da cidade fazem um trabalho de criação de signos para a coletividade,
colocando em discussão o olhar. De um lado, eles exibem signos que criam uma
estética contemporânea, mas, por outro, estabelecem, sob forma visual, uma
fricção sobre a superfície da cidade, colocando-a em crise. A constatação de
que o grafite e a pichação ocupam um espaço não dominado pelo sistema
capitalista, liga-os ao debate teórico sobre a multiplicidade do sentido na construção
da realidade.
Os
grafiteiros oportunizam, no Rio Vermelho, o fato de que o bairro que articula
diversas funções socio-culturais em Salvador. Vale lembrar que, justamente por
cumprir uma função cultural, o espaço atrai a discussão política. Bem ou mal, é
um lugar onde se procura produzir uma cena social, em que partidos políticos
inserem seus comitês eleitorais. Artistas também sacam suas armas e fazem
performances públicas. Esse forma de exposição conflituosa já é antiga no
lugar, basta lembrar de uma pintura de um santinho de Nildão, grafitada no
bairro, tempos atrás, com a mensagem “política é o fim, não vote em mim”.
Sob
as mais diversas condições os grafiteiros constroem um olhar sobre os rumos da
cidade. Os artistas fazem um trabalho de exposição para os cidadãos que usam a
série de grafites e pichações como uma “janela indiscreta” da rua. De um lado
artistas exibem signos chocantes e criam mensagens sempre renovadas, por outro,
o público estabelece uma interação com tais mensagens, o que produz uma chispa
de reflexão, mesmo que fugaz.
O
olhar do cidadão, que percorre as ruas da cidade, a pé, de bicicleta ou de
automóvel, tende a um acionamento rápido perante a contemplação do grafite,
podendo ficar apenas no nível do devaneio. O fato de que o grafite está fixado
sobre a parede, estendendo-se no plano vertical, compensa a velocidade do
transeunte. A mensagem pode não ser entendida numa primeira olhadela, mas, se
for o caso, com o tempo e as múltiplas passagens dos que circulam, uma
percepção mais completa pode se efetuar.
Um
aspecto muitas vezes recorrente que caracteriza a produção atual é que as
imagens grafitadas exibem olhos e rostos que se dirigem ao espectador. Uma das
mensagens mais frequentes que os grafiteiros e pichadores indicam graficamente
é algo assim como: “fique ligado ...”.
Essa indicação pode estar sendo tematizada tanto na atenção a ser dada no campo
do amor, da política, da luta pela sobrevivência ou até contra a violência.
Tendo
em mente uma mostra dos casos observados na grafitagem, pode-se tentar fazer
uma sistematização de dois tipos de olhar que estão pintados nas paredes do
bairro. Os olhos inscritos nos muros da cidade, que predominam no bairro do Rio
Vermelho podem ser divididos em dois tipos, os de atração e os de repulsão. Os
de atração procuram acentuar, por exemplo, a sedução, a beleza e a graça das
trocas de olhar. Já o olhar repulsivo reage ao imaginário urbano contemporâneo,
denunciando a violência e a vigilância. Os olhos que repugnam podem ser vistos
através das caveiras, dos olhos de monstros agressivos e dos olhares que exibem
ânsias e medos.
Os
tipos de olhos pintados nas paredes e muros da cidade tem um efeito de fluxo e
refluxo. De um lado, os olhos grafados pelos artistas nos muros vem emergir da
parede para o exterior e atingir o observador. O refluxo, de outro lado, ocorre
na ativação do sentido derivado da recepção por parte do espectador. Esse
espectador em parte é ativo, em parte passivo. O efeito desse refluxo pode
chegar a ser muito agressivo, como é o caso em que o grafite tende a ser
vandalizado pelo espectador irritado.
A
série de grafites e pichações que está sendo composta por um grupo de artistas,
sob diversas condições e recursos variados, está disposta em lugares sob
constante de tensões e disputas. Não se trata de um lugar de possibilidades
melodicamente ajustadas, mas um bloco espacial ocupado por elementos que se
integram, forçosamente, mediante conflitos. No presente momento pré-leitoral,
convém alertar, belos grafites estão sendo vandalizados e cobertos por
propaganda eleitoral.
Assim,
uma parede grafitada ou pichada tem um caráter específico e cria uma reação.
Tal como uma série de quadrinhos, os muros grafitados enquadram um fluxo. Com
esses exemplos que proliferam nas ruas de Salvador, ao longo do tempo, o urbano
vai compondo-se segundo uma narrativa, na qual as paredes do bairro produzem um
mapeamento cognitivo de uma experiência coletiva. Esse mapeamento expressa um
desejo de produzir e criar. Portanto, a partir de tais imagens, pode-se obter
não apenas um sentido de orientação para movimentação no espaço urbano, mas
também formas de compreensão da realidade sociocultural mais abrangente.